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Prólogo

um conto de Frederico Klumb



Jon Rafman - Nine eyes of Google Street View




Estávamos jantando no restaurante do hotel, em nossa segunda noite de hospedagem, e por alguma razão meu pai decidiu que era o momento certo para me contar em detalhes como ele e minha mãe haviam se conhecido. Ele estava um pouco alto depois de três Camparis, e talvez isso e mais a noite fresca que fazia, com a brisa do mar chegando até nossas narinas, tenham o encorajado. Começou perguntando se ela havia mencionado comigo que a primeira turnê que fez com uma peça saíra justamente de Salvador, por onde tínhamos passado na véspera, a caminho do hotel.


“Sua mãe fazia a Hedda de Ibsen”, continuou meu pai, “o papel mais importante na peça, e sem dúvida o mais difícil. A companhia foi para Salvador um mês antes da estreia, para terminar os ensaios no TCA. Imagine só, Ibsen naquele teatro que parece uma nave espacial.”


“Mas na verdade o teatro não importava tanto”, seguiu ele, “poderia ser qualquer outro, desde que fosse Ibsen. Você deve lembrar que até os seus oito anos eu ainda trabalhava na Stat, aquela empresa de óleo. Quando a companhia da sua mãe decidiu fazer Ibsen, foram procurar apoio lá. Claro, fazia todo o sentido, uma gigante norueguesa deveria se interessar por patrocinar uma adaptação de Ibsen, ainda mais deduzindo impostos, e a turma da companhia da sua mãe não era nada boba. Bem, adivinha quem estava na comissão de aprovação do apoio?”


“Na hora que sua mãe entrou na sala”, continuou meu pai, com seu monólogo, “senti um calafrio. Era seguramente a mulher mais estranha que eu já tinha visto, não só pela mancha vermelha no pescoço, o que de fato chama atenção num primeiro olhar, mas também pela postura, a maneira com que te encarava, segura e distante, como se estivesse incomodada com alguma coisa. Naqueles anos ela parecia estar sempre guardando um segredo, ou a ponto de desabar, mas se fechava como uma ostra, não deixava ninguém participar do que sentia e não dava a mínima se os outros a entendiam ou não. Acho que até hoje eu não entendo.”


Ele fez uma pausa e olhou na direção da piscina, de frente para a área aberta do restaurante. No final do perímetro, a praia era uma só faixa escura e indistinta, com a areia e o mar se misturando na vista.


“Bom”, retomou ele, “você sabe do que estou falando, mas naquela época ainda não havia a doença. Talvez fosse um prenúncio, eu não saberia dizer. Fiquei completamente hipnotizado pela sua mãe. Antes de os três terminarem de falar, porque estavam com ela o diretor da peça e uma produtora, eu já tinha meu parecer. Não dependia só de mim, a proposta precisaria passar por mais gente, mas fiz o melhor que pude para ajudar. Eles tinham um contrato fechado para a temporada em Salvador, mas mesmo com casa lotada todas a noites, não seria suficiente para a turnê que queriam fazer.”


Meu pai parou de falar de repente e torceu o nariz.

“A citronela está te incomodando?”, perguntou. “Acho que acenderam mais tochas do que precisava hoje.”


Falei que não ligava para o cheiro, e enquanto ele chamava um garçom e pedia para afastarem as tochas da nossa mesa, fiquei olhando os telhadinhos dos bangalôs. O hotel estava todo iluminado em meias-luzes e eles quase pareciam de mentira, flutuando acima da grama e de trilhas de tijolo traçadas sobre ela para os hóspedes se guiarem à noite.


“Agora está melhor”, voltou a falar meu pai. “Enfim, não sei como sua mãe contou a história, mas não me lembro de te contar com os detalhes, e por isso pensei que podia interessar. Depois daquela reunião, precisamente três semanas depois, peguei um voo do Rio para Salvador e fui assistir à estreia. Sua mãe estava deslumbrante. A Hedda que fez era memorável, é até hoje, pelo menos para mim. Você chegou a ler? Ela adorava Ibsen.”

Falei que conhecia o texto, minha mãe o tinha lido comigo uma vez.


“Você deve lembrar”, disse ele, “que Hedda parece deslocada de si mesma, num conflito permanente. É um vulcão, mas também se entedia com facilidade, como se dentro dela muitas mulheres batalhassem em direção ao nada. De certa forma, é uma tragédia sobre a condição absolutamente solitária de cada um de nós, com nossa consciência e pensamentos. A Hedda tem uma capacidade de destruição, uma grande vitalidade, e a Hedda da sua mãe era perfeita, acho que exatamente por conta de sua ausência, aquela ausência que eu havia percebido em nossa reunião e que ela foi capaz de dar para a personagem sem tirar a sua força original. Saí do teatro pensando que deixaria minha vida ser arruinada por ela caso fosse preciso. Não é brincadeira. Saí de lá pensando que literalmente gostaria de ter minha vida arruinada por ela.”


Ele fez mais uma pausa. Aproveitei a deixa para dizer que não me lembrava tão bem assim da peça, eu nunca a havia assistido, apenas lido o texto anos atrás. De todo modo, eu achava que minha mãe ficaria contente se ouvisse a descrição que ele fazia de sua atuação.


“Ela nunca se importou com isso”, replicou meu pai imediatamente. “Nunca se importou com elogios. Nem de críticos, nem de pessoas próximas. Na verdade, acho que não lhe agradava nem um pouco receber elogios.”


Ele fez uma careta, como se não entendesse muito bem o comportamento de minha mãe. Depois levantou o copo quase vazio, fazendo sinal para o garçom e pedindo outro Campari. E voltou a falar:


“Acho que posso pular a parte da conquista e todo o cortejo que a envolve”, disse. “Eu estava encantado por ela, que por sua vez estava solteira e acho que também gostou de mim. Nós dois éramos jovens, mas nem tão jovens assim, e descobrimos que tínhamos planos em comum. Parecia que a vida começava a afunilar, era isso o que eu sentia, e achava que era hora de fazer escolhas mais definitivas. Dos primeiros jantares a primeira viagem, foi um pulo. Enquanto a temporada de sua mãe não terminava, fiquei repetindo um mesmo itinerário de voos: do escritório no Rio até Salvador nos fins de semana, e depois de volta para o Rio. Quando a temporada finalmente terminou, o apoio para a turnê tinha sido aprovado, mas esta só começaria dali a três meses, porque os atores precisavam descansar. Propus que nós voltássemos juntos para o Rio, mas sua mãe queria aproveitar suas últimas semanas na Bahia para conhecer Vitória da Conquista, a cidade onde nasceu Glauber Rocha. Não me atrevi a me incluir, mas imagino que ela tenha percebido que eu queria ir e fez o convite. Ela dizia que desde que se tornara atriz sentia vontade de visitar a cidade, apenas andar por ela. Não é um lugar turístico, na verdade não se parece nem um pouco com a imagem que costumamos ter da Bahia.”


Ele fez uma pausa e olhou para a praia escura à nossa frente. “Não se parece com essa Bahia”, completou. “Um lugar cheio de morros, a quase mil metros do nível do mar. Combinei com sua mãe que eu voltaria ao Rio para organizar as coisas no trabalho e que depois nos encontraríamos novamente em Salvador, de onde pegaríamos o avião para Vitória da Conquista. Não levei muito a sério quando ela disse para eu colocar um casaco na mala, e por isso quando chegamos na Suíça Baiana, que é como os moradores chamam a cidade, tomei um susto. Fria de doer, a temperatura caía inacreditáveis dez graus durante a madrugada.”


O garçom trouxe o Campari. Meu pai bebeu um gole e em seguida esticou o copo na minha direção, levantando-o.


“Um brinde ao amor”, disse. Levantei meu copo com refrigerante também e deixei os vidros se tocarem.


“Agora vem melhor parte”, seguiu ele. “Isso eu lembro de ter te contado.”

Perguntei se ele estava se referindo aos passeios de moto.


“Isso mesmo. Mas o que você talvez não saiba é que o planos da sua mãe de fato incluíam uma motocicleta, mas qual de nós sabia pilotar? Não entendo muito bem porque ela cismou com isso, mas a verdade é que estava certa. A cidade era cheia de ladeiras com vistas panorâmicas para seu pequeno vale habitado e seus entardeceres azul-amarronzados, sem um pingo de vermelho, como se fosse iluminada por um sol de gelo. De fato, a melhor forma de se locomover por ali era em uma motocicleta, e quando sua mãe contou que havia imaginado a viagem desse jeito, seus olhos brilhavam tanto que acabei me atrapalhando e inventando uma mentira, dizendo que eu sabia pilotar. Que correria. Passei a semana inteira no Rio aprendendo a dirigir uma moto, todos os dias depois do trabalho ia até a casa de um amigo que tinha uma e treinava umas três, quatro horas. Talvez seja genético, sabe. Na família do seu avô corria uma história que ouvi na infância sobre um tio, irmão dele, que de tanto ver os peões na fazenda dirigindo a caminhonete, os primos dirigindo a caminhonete, quando precisou ele também dirigir apenas sentou em frente ao volante e saiu com o carro como se fizesse aquilo há anos. Comigo não foi assim, digamos, tão satisfatório, mas o fato é que no fim de uma semana eu conseguia pilotar motos, razoavelmente.”


Ele deu uma espécie de suspiro.


“Espero que não esteja te aborrecendo”, disse depois. “Faz tanto tempo que não nos vemos.”


Falei que estava gostando da história, eu a conhecia pela versão de minha mãe e as menções a ela que ele mesmo fizera em outros momentos, mas não com esses detalhes. Perguntei porque ele nunca tinha me contado tudo aquilo. Meu pai disse que não havia encontrado o momento certo. Que quando saiu do país, na época que mudou de empresa, eu ainda era muito novo, e que a partir daquele momento tínhamos nos distanciado demais, o que admitia ser sua culpa.


“Enfim”, retomou ele. “No final das contas deu tudo errado. Quero dizer, não tudo, porque logo depois veio você. Mas sua mãe não ficou bem naquela viagem. Olhando da distância que tenho agora, diria que alguma coisa se quebrou mal tendo começado, algo parecido com um acidente infantil, talvez, uma coisa terrível, porque desestabiliza nossos conceitos de promessa, de futuro. É difícil admitir a nós mesmos que algo apodreceu pouco depois de vir ao mundo, mas sinto que sua mãe de alguma forma sabia que não estava bem e que algo de errado aconteceria, ela sempre pressentia esse tipo de coisa, e nunca fazia nada a respeito. Comigo, como você sabe, é o contrário. Não sou de prestar atenção no que me acontece, dificilmente tento significar as coisas enquanto estão ocorrendo. Só que quando aquela moto alugada quebrou no alto de uma ladeira, tarde da noite, confesso que até eu senti um negócio estranho. Eu pilotava aos trancos e barrancos, às vezes me enganando com as marchas, forçando o motor, mas não sei se era o suficiente para fazer com que a moto quebrasse. De repente, nos vimos no meio de uma cidade totalmente desconhecida, no escuro, sem saber para onde ir e tendo que empurrar uma motocileta. Falei para sua mãe que precisávamos descer para o vale, pois faríamos menos força descendo a ladeira, e eu poderia usar os freios, que ainda funcionavam, mas ela não concordou comigo, queria seguir subindo até o final da ladeira, queria subir mesmo sem a menor pista de uma casa, ou restaurante, ou bar, nada até onde conseguíamos ver. Sentamos os dois no chão por um momento. Acho que só não brigamos bem sério naquela hora porque ainda estávamos apaixonados, mas discutimos até nos cansar. Então, depois de uns minutos em silêncio, quando já não tínhamos nada a dizer, ouvimos um barulho que parecia uma música. Era sutil, bem baixinho, mas não parecia vir de tão longe. Aquilo foi como uma bofetada da vida bem na minha cara, como um recado do silêncio. Percebi que antes não ouvíamos os ruídos à nossa volta porque não parávamos de falar e de nos desesperar um com o outro. De repente, ao ficarmos quietos, era possível ouvir o barulho de música, uma coruja piando em intervalos e um ou outro caminhão cruzando o vale lá embaixo. Até o vento eu conseguia ouvir, se ficasse quieto tempo o bastante. É. Nessa hora sua mãe venceu. Arrastamos a moto até o alto da ladeira, de onde parecia vir a música. Talvez ela tenha te contado o que encontramos lá em cima, no meio do nada.”

Respondi que sim, eu me lembrava dessa parte, mas queria ouvir sua versão assim mesmo.


“Claro”, disse meu pai. “Mas o clímax não terá nada de novo. Nós encontramos um terreiro. Era noite de festa, não lembro exatamente qual. E o final da história você já sabe: nos deixaram entrar, chamaram um guincho para a moto. Enquanto esperávamos pelo reboque, ficamos observando o que acontecia lá dentro, embasbacados com a visão das mulheres vestidas de branco e girando, os enfeites nas paredes e cadeiras, as cores, tudo o que para nós, que havíamos sido conduzidos até ali pelas mãos do acaso, parecia quase irreal. Então, depois de uns minutos assistindo às danças, sua mãe se sentiu mal e desmaiou, teve uma espécie de teto preto. Posso dizer que o pessoal de lá foi nota dez com a gente. Uma mulher levou sua mãe para um quarto, a deitou numa cama, até rezou por ela. Alguns dias depois, quando estávamos indo embora, pouco antes da hora de pagar o hotel e pegarmos o táxi para o aeroporto, sua mãe sumiu. Eu saí do banho e não a encontrei no quarto. Naquela época não existia celular, por isso fui até a recepção perguntar se alguém a tinha visto ou se por acaso ela havia deixado um bilhete, mas descobri que nem uma coisa nem outra. Fui até a rua, já um pouco preocupado, porque se eu havia entendido algo sobre sua mãe é que ela podia ser bastante imprevisível. Felizmente não precisei me agoniar demais. Em frente ao hotel havia uma barraquinha de acarajé e outras comidas típicas, e lá estava a sua mãe, conversando com a menina de no máximo doze anos que estava atrás da panela. As duas sorriam como se se conhecessem há tempos e a cena era bonita de ver. Depois, quando voltamos para o quarto, para pegar as malas e tomar o táxi, sua mãe, que tinha ficado monossilábica ao me ver lá embaixo, disse: ‘Às vezes acho que a vida humana é um milagre.’ Falou assim, sem preâmbulos ou explicações, mas nunca esqueci isso.”




Fotografia: Bruno Machado



Frederico Klumb é escritor e cineasta. Publicou Máquinas mancas da manhã (Edições Garupa), Cinema Circular (7letras), bichos contra a vontade (7letras), entre outros.


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