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Processo administrativo no RH

por Pedro Gomlevsky (autor convidado)




- Começa se apresentando, um pouco da sua história, o que te trouxe aqui. - Ah, doutor, é complicado… Não sei nem se eu queria vir pra dizera verdade. - Pelo que eu estou vendo aqui é um requerimento da empresa, né?(levantando a folha de rosto e conferindo as demais numa prancheta) - É… todos nós temos que passar por uns testes semestrais, vamos dizer assim, e eu sempre fui bem, sempre passeiem todos, já estou na empresa faz quinze anos, sempre passeiem todos, mas dessa vez não consegui… - Por que você acha que está aqui? - Um lado de mim não quer aceitar que eu não passei no teste e quer te dizer que com certeza teve algo de errado com ele… a gente faz umas sessões, cumpre o protocolo aí e eu posso voltar pra minha rotina de trabalho logo… - Ooutro lado…? - Ooutro lado… é que eu sei que tem algumacoisa de erradocomigo, eu não deveria ter interferido, eu não deveriame apaixonar… - A paixão é humana, você sabe… não é algo que se possa controlar, quando acontece, acontece. - Não se pode controlar, faz parte da humanidade, isso o sentir,doutor, o sentir… - Oproblema é o que fazemoscom isso, como agimos a partir daí. - Exatamente, exatamente… e eu fui treinado, fui bem treinado, eu devia saberme comportar numa situação dessas,me declarar suspeito… mas aí… - Então, você demonstra estar ciente dos procedimentos… Por que você não se declarou suspeito? (rabiscando alguma coisa na prancheta) - Ah, doutor, não é óbvio? Eu já disse, eu estava apaixonado, eu… eu… se eume declarasse suspeito iam mudar o meu sujeito designado e eu não ia ver ela nunca mais. Nunca mais! Como uma pessoa apaixonada pode aguentar isso? Eu não tive coragem de me declararsuspeito e aí perder o contato com ela… - Entendo… enfim… você acha que fez algo de errado? - Eu fiz… eu fiz, doutor, não deveria me apaixonar, já disse isso, não disse? - Pois sim. Mas também disse que a paixão é algo que não se controla…Então o erro foi do destino, não foi teu? - Claro que o destino tem a sua parte nisso, né… Por que caí com ela depois que meu último sujeito morreu? Por que Deus colocou nela aqueles olhos… aquela boca…? Aquele jeito de sorrir depois de ficar um tempo pensando em nada,encarando a parede…?(suspirei, pensando nela) - Você acha então que era o destino que deveria ter falhado na avaliação semestral, e era ele quem deveriaestar tendo essa consulta comigo? - Veja bem, doutor, não é assim…eu sei disso, eu sei disso tudo,é só que… ah…. é difícil doutor,quando se está apaixonado é difícil… - Olha, (examinando a prancheta), o seu caso não está bom, não está nada bom… - Eu preciso desse emprego doutor, pelo amor de Deus, eu nunca fiz outra coisa da vida, eu não sei como… não sei se eu sobreviveria lá fora sem esse trabalho!


- Émesmo um trabalhomuito específico, não é como se você pudesse fazer a mesma coisa em outro lugar… - Pois é, doutor, pensa nisso! O senhor tá com a caneta na mão aí e vai me demitir… vai mandar um homem pra rua, numa situação dessas doutor, olha como a coisa tá por aí… Não está fácil doutor, não está fácil… muito desemprego, muita insegurança…inflação, um ar que mal se respira doutor, as pessoas desempregadas não tem acesso à quantidade de ar puro recomendada pela OMS, é muito caro, o senhor quer viver com esse fardo nas costas doutor? - O fardo não seria meu… Como você disse, foi o destino, uma fatalidade… (nessa hora ele me olhou por cima dos óculos e deu um sorrisinho leve, quase imperceptível, levantando o canto direito dos lábios, ele estava querendo me dizer alguma coisa… ou melhor, querendoque eu lhe dissesse algumacoisa) - A paixão, doutor… a paixão foi uma fatalidade, mas os erros cometidos foram meus, primeiramente que eu não me declarei suspeito, mas teve outros… (nessa hora ele sorriu, passou a ponta do dedo na língua e mudou de folha na prancheta, como quem insinuaque estamos chegandoa algum lugar) - Então houve outros erros? - Teve sim, doutor… teve sim… - Cometidos por você, ou pelo destino? - Foram meus, eu assumi,já disse pro senhor, meu erro foi me deixarlevar pela paixãoe cometer uns desatinos… - Estamos avançando… que erros mais você cometeu? - Ah, eu estava apaixonado, doutor… eu queriaestar com ela 24hrs por dia… - Isso não seria um erro, seria apenas parte do seu trabalho… - Eu, sei, eu sei, e é por isso que… - Por isso que você deveria ter se declarado suspeito quando percebeua paixão. - Eu sei disso, doutor,esse erro eu já admiti,eu só estava tentando construir um raciocínio… - Perdão, prossiga… você estava apaixonado e se aproveitando de poder observá-la o tempo todo… e então? - Então, quando a gente ama, quandoa gente está apaixonado, a gente quer fazer algumacoisa pra agradara pessoa… - Entendo tudo isso, mas afinal, o que você fez de errado…? - Eu parei de limpar todos os bugs… - Como isso é estar apaixonado?(ele disso isso meio indignado) Isso certamente não iria agradaro seu sujeito designado… Posso te dizerque em situações anômalas onde se acumulam muitos bugs os sujeitos se sentem muito perturbados, alguns chegama querer tirara própria vida…quando não fazem coisa pior…colocam a operação em risco… - Não… é… eu sei, eu sei disso, já trabalhei numa força tarefa quando um programa deu ruim e precisaram de vários de nós pra consertar a cagada… o sujeito estavaquase entendendo que aquilo ali era uma simulação… - Não sei por que lançaram aquelefilme pra eles, isso foi uma loucura,um risco desnecessário, se você me perguntar…


- Éverdade, doutor, o senhor tem razão… eles são espertos,eles podem ficar desconfiados e… - E… e… nós, estamos fugindo do tema da nossa conversa… Como você pensava estar agradando o seu sujeitodesignado parando de supervisionar todos os bugs? - Não, não tooodos…eu não me expressei bem… - Pois se corrija. - Está bem doutor, não fique impaciente, o que eu quis dizer é que ao invés de corrigirtodos os que eu encontrava, eu passei a escolher. - Como assim, ‘escolher’? - Eu selecionava, eu queriadiminuir o sofrimento dela… - Por exemplo? - Por exemplo…. ela esqueciaas chaves de casa e só percebiaquando estava na rua, ao invés de ela precisarvoltar até em casa, eu fazia a chave aparecerno bolso dela, ou cair no chão por perto, fazendo um barulho de modo que ela encontrasse a chave… - Sem ter de se dar ao trabalho de ir procurar… - Exatamente, doutor… e eu fazia, olha eu faziade um jeito profissional, eu excluía a chave que tinha ficado em casa, eu nunca deixei nenhuma duplicidade… - (remexendo nos papéis da prancheta) De fato, você não foi reportado nenhuma vez, só perceberam o seu deslize por conta da avaliação semestral… - Eu sou bom no que eu faço, doutor,eu estou aqui tem quinzeanos…Não posso ser mandado embora,eu faço bem o meu trabalho… - Então seus erros foram dois e um deles nem foi seu, se apaixonar e recortar umas chaves de casa e colar no bolso dela… - Teve mais… Ela, por exemplo, ela odeia lavar louça. Então quando tinha ficado muitacoisa, num dia em que ela tivesserecebido os amigos,tivesse cozinhado pra muita gente… eu aceleravao processo. - Como assim? - Eu garantia… eu já falei pro senhor que não teve duplicidade, eu fazia tudodireitinho… eu garantia que aquele era um momento em que ela não ia precisar interagir com mais ninguém e botava o tempo pra passar mais depressa pra ela… Aí, depois, até que desse o tempo que levaria pra ela terminar a louça eu deixava ela pausada…. ficava só olhando… contemplando ela… sabe? Ali parada, na pia, com aquele sorriso de trabalho cumprido… aí eu liberava ela, deixava a coisa rolar normal e a rotina dela encaixavano fluxo normalmente… - Realmente, você é um excelente profissional, esse tipo de incongruência temporal pode ser muito grave… - E eu não sei doutor? Um menino novo dormiu no ponto e quase apareceu um cidadãodo século XVII no meio do XXI… foi uma confusão pra arrumar aquiloali! - Éverdade, eu me lembro dele, aquele foi demitido… - Também pudera, doutor, ele fez mal feito… Não tô dizendo,doutor, não tô dizendo que eu não errei, eu assumi meus erros, tá aí, tá gravado, né? - Sim, a sessão está sendo gravada,é protocolo da empresa…


- Eu sei, então, eu sei e não quero dizer que eu não errei, mas eu não cometi nenhum erro grave… e mais, doutor,eu não cometi nenhuma falha técnica… eu fiz tudo direitinho… tudo… errei? Errei. Mas não teve nada grave, nada fora do lugar… Eu sei qual é o meu trabalho,ninguém viu nada antes porquenão teve problema, não teve incongruência, não teve duplicidade… e assim, umas coisas estranhas acontecem vez ou outra, eu tenho certeza que ela não percebeu nada também, uma certa quantidade de bugs é até normal…

- De fato, nos primeiros anos, os erros geravam demissões sumárias, eles eram muito menos tolerados, mas com o tempo se foi percebendo que uma continuidade perfeita, também geravauma desconfiança nos sujeitos, quasecomo acontece quandohá bugs demais…

- É verdade doutor, os bugs tem que ser bem poucos, mas se não tiver nenhum eles começam a desconfiar também, aprendi isso no meu treinamento… e bem, como eu tava apaixonado eu não queria que ela enlouquecesse, eu só queriadar uma ajudinha, um agrado aqui,outro ali…

- Era quase como se ela fosse uma pessoa com uma ‘sorte’ acima da média…

- É isso doutor… ela se sentia feliz, sortuda e feliz, mas tenho certeza de que nunca desconfiou de nada…Como eu disse, eu não apresento risco, eu faço tudo de um jeito muito profissional, o senhor tem a minha ficha aí…

- (mexendo e olhando mais uma vez para os papéis na prancheta) Certo,certo…

- Então doutor, tudo certo?Estou apto? Posso voltar ao trabalho?

- Olha, eu acho que eu vou poder te deixar passar,você assumiu seus erros… Você estava apaixonado… Você não permitiu que ocorresse nenhuma falha grave…(aquele discurso estava estranho, eu vi que ele queria alguma coisa de mim, e sob ameaça de demissão, eu não estava em posição de negar muita coisa…)

- Você vai ter de continuar se tratando comigo,semanalmente por algumtempo, para monitorar essa situação.

- Mo… pra monitorar? O senhor… Doutor,o senhor vai permitir eu continuar com a… com a minha… com o meu sujeitodesignado, doutor?

- Sob minha estrita supervisão. (ele disse isso desligando o gravador) Você vai comparecer a essas sessões comigo semanalmente, e me relatar tudo o que tem feito e observado durante seu horário de trabalho. (ele tinha um sorriso maliciosono rosto quando dizia isso, só faltou babar)

- Muito obrigado, doutor! Muito obrigado! Eu não vou decepcionar, toda semana estareiaqui e não vou vacilarno serviço, uma quantidade aceitável de bugs, um agrado aqui, outro ali, nada demais eu prometo, não vai dar ruim.

- Até semana que vem. (ele me disse, me acompanhando até a porta do consultório, enquanto eu pensava que ele tinha escolhido bem a profissão, um psicólogo voyeur,que loucura… Mais um dia na vida de um continuísta da matrix…)



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Pedro Gomlevsky é professor de filosofia, pode ser visto pedalando no aterro e gostaria de escrever mais.

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