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Sessenta e três

poema inédito de Marcelo Reis de Mello







63


Nel mezzo del cammin di nostra vita

mi ritrovai per una selva oscura



Enfrentar a selva escura

do sangue – este nosso

rh negativo

sem barqueiro sem Beatriz

não é tarefa trivial.


Ramiro, meu analista, que o diga.


Mas pra cada galho genealógico

espera, pacientemente, um machado.


Como este que em teu nome – Antero Machado

corta, toda vez que assina, a família.


Sessenta e três não é tudo

e, no entanto, é muito

se consideramos que cem é uma meta quase impossível.


Ter de ver envelhecer de longe esta árvore

não foi a escolha mais fácil, ainda não é.

Talvez apenas o jeito de encontrar

em meu próprio nome, mais parecido a um martelo

afiação que segue.


Desculpe, isso já vai ficando metafórico demais.

Queria que se parecesse mais a uma carta vinda de longe

do que a um Quintana deixado embaixo do travesseiro.


Se pudesse escreveria algo como o longo lindo início

de A Morte do Pai, do Karl Ove Knausgård:

para o coração a vida é simples:

ele bate enquanto puder.


E riríamos juntos da obviedade escandinava.


Se o seu câncer tivesse prosperado

e você estivesse mijando por uma sonda

bastaria copiar à mão

numa folha do seu próprio receituário

os versos que o Dylan

dedicou ao velho:


Do not go gentle into that good night.

Rage, rage against the dying of the light.


Dramático, mas irretocável.


E se você insistir em fumar

porcarias mentoladas

e uma metástase de repente fizer colônia

na sua bexiga, já deixei preparado

para o momento mais solene

do velório, numa capela com cheiro

de flores enjoativas

A Tempestade shakespeariana:


Full fathom five thy father lies

Of his bones are coral made;

Those are pearls that were his eyes


que eu traduzi (está no meu livro Elefantes...):


Muitas pás sob os seus pés repousa seu pai;

Dos seus ossos cresce o coral

E pérolas do que outrora foram seus olhos


Palavras palavras

mas o que mais poderia eu lhe dar?


Talvez a memória de outras palavras

enterradas e desenterradas

um século depois.


Talvez os fósseis catados num barranco

à beira do hospital psiquiátrico.


Talvez a última respiração do seu próprio pai

enquanto você lhe dizia ao lado da cama

que morresse bem

que os Mello sempre souberam morrer

e ele morreu, em seguida.


Talvez o último lampejo de lucidez da sua mãe

do qual só nós dois fomos testemunha

a palavra Julia dita como um mantra

vindo das cinzas da Montanha Mágica:


Lembrar o nome da mãe de um escritor alemão

enquanto mergulhava em morfina

para suportar os ossos se tornando cal.


O que mais posso eu lhe dar

neste seis de janeiro de 2023

senão um pouco do que nos separa


E do que nos repõe um pouco

a partilha dos mortos

a nossa morte


Que só a palavra nos põe em contato com as coisas mudas

pai, meu pai:


Algum silêncio há de bastar, enfim

para ser, entre nós, adiado.



________________





Marcelo Reis de Mello (Curitiba, 1984 - Rio de Janeiro) é poeta e professor de literatura. Publicou, entre outros, José mergulha para sempre na piscina azul (Garupa, 2020, finalista do Prêmio Jabuti).


E-mail: m.r.mello@hotmail.com




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