por André Vargas*
Comissão de Frente da Imperatriz Leopoldinense, 2011. Fotografia: Thamine Leta/G1
O carnaval esse ano foi um terrível silêncio e, com este silêncio, surgiu na gente uma desagradável melancolia foliã, uma abstinência daquela farra anual que marca nosso calendário como celebração de um ano novo verdadeiro, nossa cultura como identidade mais primordial e, me arrisco a dizer, marca em cheio a nossa fisiologia. Sentimos com o corpo todo e entendemos nossos sintomas mais agudos dessa forma. O maior de todos esses sintomas: a falta que faz o Samba. As disputas dos cortes dos Sambas enredo na quadra das escolas, a mobilização das cidades para a construção do espetáculo da Marquês. Meu carnaval é esse das arquibancadas. É esse de ainda comprar o CD e saber todas as letras de cor. Ano após ano. Ano após ano... Esse ano não, esse nó na garganta, não houve Samba na avenida. Não ouvi Samba... Mas não se pode deixar cair dessa maneira: contra a ausência do Samba, tome Samba.
O Samba, em todo o seu esplendor, nos ensina, mais do que qualquer doutor, conhecimentos infindos. De mais a mais, o Samba é o doutor no que faz. Doutor em matérias ancestrais de cura para as agruras do tempo. Professor sincopado de seus fundamentos abissais. O Samba é quem rege o momento. É a batuta de mestre Marçal[2]. O Samba nos apresenta o poder de seu conhecimento a cada vez que o escutamos, cantamos, dançamos, sentimos. E esses saberes, que se revelam nas mais distintas frentes, são o que compõem a existência sambista.
Nem todo dizer vem da boca, como bem o mestre Candeia já cantou: “ Joguei meu dicionário as favas/ Mudo é quem só se comunica com palavras”[3]. O Samba diz com o corpo, com os sons, com o ritmo e com o seu próprio silêncio. Há, por exemplo, sobre essa perspectiva uma gramática específica que se elabora no toque de suas baterias quando dizem, através de suas toadas, mil coisas para além do que indica o enredo, como podemos ver no que nos contam Luiz Antônio Simas e Luiz Rufino no capítulo “A gramática dos tambores” de seu livro, Fogo no Mato – A ciência encantada das macumbas: “Os tambores rituais possuem gramáticas próprias. Eles, afinal, contam histórias, conversam com as mulheres, homens e crianças, modelam condutas e ampliam os horizontes do mundo”, e mais: “Fala-se muito que as escolas de samba, durante boa parte de suas trajetórias, contaram em seus enredos a História oficial, as efemérides da pátria e os propalados grandes personagens. Isso é verdade se atentarmos apenas para os enredos e letras dos sambas. As baterias, todavia, contavam outra coisa, elaboravam outros relatos, perceptíveis para aqueles que conheciam a gramática dos tambores.”
Há ainda outros meandros do Samba através dos quais também podemos conhecer e recriar nossos mundos, pois o complexo sistema epistemológico sambista reside em tudo o que lhe participa: em cada partícula vibrada do corpo rítmico-místico de qualquer passista, na história que se conta na travessia do barracão às avenidas, ou mesmo no enredo de cada tomada de palavra que a boca do Samba abisma. O Samba nos ensina a vida, quando a morte é certa. O Samba nos ensina a cura em tempos enfermos. Nada melhor, então, do que vasculhar no próprio Samba a bula para melhor compreender as nossas adversas reações ao tempo do agora, ao carnaval que se guarda e aguarda um momento mais propício para o seu próprio festejo e, ao silêncio dos surdos, tamborins, repiques e foliões, uma resposta: há no Samba uma maneira de enfrentar o silenciar do Samba. Afinal de contas, “vai passar” é mais do que uma frase da música do Chico Buarque, é um mantra que ressoa a esperança de onde o Samba tem seu sustento desde os tempos do cativeiro.
O Samba, quando ainda dava seus passos iniciais em terras cariocas e ganhava aos poucos trajes mais urbanos e apressados, devia muito da sua abrangência àquela época à festa da Igreja da Penha, onde sambistas de toda sorte e terreiros de toda parte se juntavam as famílias portuguesas pobres em seus piqueniques em torno da igreja para festejar Nossa Senhora da Penha em franca comunhão e ecumenismo característico desse caldeirão fervente de culturas que é a religiosidade popular. O Samba, afinal de contas, é exatamente isso: como que um reflexo da antiga festa da Penha, um ponto de encontro entre o que nos forja a existência, um caldo fervendo toda gente e seus costumes de sabores alquimicamente elaborados sem querer.
Durante a festa da Penha nas primeiras décadas de 1900, os grupos se reuniam para cantar, improvisar e brincar suas batucadas e, aquele Samba mais cantado até o final da festa, acabava por ser o mais repercutido pela cidade afora no seguir do ano, justamente porque era esse encontro das camadas populares na Penha o marco inicial do período carnavalesco na cidade.
Em 1918, ano em que o Brasil ainda sofria o duro impacto da pandemia da gripe espanhola, tendo sido inclusive o ano em que o presidente do país, Rodrigues Alves, se infectou, um compositor, até então mal sucedido nessa de tentar emplacar um sucesso de carnaval, chamado Oscar José Luis de Morais, mas mais conhecido como Caninha, teve a proeza de criar um samba amaxixado, chamado “Gripe Espanhola” e que dizia assim:
A Espanhola está aí / A Espanhola está aí / A coisa não está brincadeira / Quem tiver medo de morrer não venha / Mais à Penha (Maxixe “Gripe Espanhola” de Caninha, 1918).
Era um sinal de alerta de Caninha, pois naquele momento era preciso se resguardar em segurança, não era ainda tempo de festa. E esse alerta ainda ecoa hoje em dia para quem tem cabeça boa e pés saudáveis.
No ano seguinte, em 1919, a farra foi grande, neste que foi, para muitos, o maior carnaval da história. A vacinação em massa surtira efeito e a pandemia estava controlada no país. Foi um momento de catarse coletiva, depois de muito sofrer com a reclusão, o povo estava novamente livre na rua e muito se ouviu da marchinha composta pelo poeta Barros Tigre, que dizia:
Assim é que é! Viva a folia!/ Viva Momo – Viva a Troça!/ Não há tristeza que possa/ Suportar tanta alegria./ Quem não morreu da Espanhola,/ Quem dela pode escapar/ Não dá mais tratos à bola/ Toca a rir, Toca a brincar... (Marchinha de Barros Tigre, 1919)
Nesse tão catártico ano, o carnaval viu surgir um dos blocos mais tradicionais do Rio de Janeiro, o Cordão do Bola Preta e ainda viu, também pela primeira vez, a aparição do repórter e folião Julio Silva, que daquele ano em diante, muito por causa das medidas restritivas quanto proximidade com outras pessoas dos anos anteriores, desfilou com a fantasia “Bloco do eu sozinho” por seis décadas. Era o alívio e a bomba de confete criativo espalhando pela cidade novidades que mais tarde se tornariam tradição. Ranchos e cordões naquele ano desfilaram com o rubor nunca antes visto. Eram alegorias imensas passando pelas ruas da cidade que fazem lembrar os carros alegóricos das escolas de Samba que 9 anos depois, em 1928 começaram se organizar e passaram a reunir, então, boa parte desse empenho carnavalesco e dessa festa do Samba que nos apresenta a esperança de ano inteiro.
Inspirado num lampejo/ O meu primeiro desejo/ Saúde em demasia não faz mal/ (Vamos nessa que é legal) (Primeiro desejo – G.R.C.E.S. Nenê de Vila Matilde – Santaninha/ Clóvis/ Barbosinha/ Baby/ Rubens Gordinho, 1993).
Isto, próximo da virada do século XX para o XXI, mais precisamente em 1993, quando se completavam os 66 anos do nascimento da primeira escola de Samba[4], a escola paulistana, Nenê de Vila Matilde. Essa que nem sonhava com o que nos aguardava o futuro, mas já emanava um desejo por saúde em primeiro lugar, como que um prenúncio do apelo à sensatez nas decisões atuais dos diretores de carnaval, para que sempre pontuem, que, para que haja carnaval de escola, seja necessário que a vacinação esteja em um estágio avançado, senão, concluído. Enquanto essa vacinação em massa não acontece, a “saúde em demasia” que cantou Nenê, reside na beleza de podermos observar o desfile de grandes nomes do Samba, bambas e baluartes de várias escolas cariocas, que na Sapucaí, que se transformou em ponto de vacinação, estão tirando nota dez em consciência.
Em 2011, quase cem anos depois do samba de Caninha sobre o medo da proliferação da gripe espanhola na festa da Penha, a escola de Samba carioca, Imperatriz Leopoldinense, à época conduzida pelo carnavalesco Max Lopes, atravessou a avenida da Marquês de Sapucaí com um enredo dedicado a contar a história da medicina. Entre tantas mazelas da saúde abordadas pelas alas e alegorias da escola, uma doença em estágio de pandemia, a gripe H1N1 (famosa gripe suína) também se fez presente, quando essa ainda nos assombrava em um período de pós-vacinação. Poucos se recordam desse período em grandes detalhes, mas o álcool em gel, que hoje em dia é figurinha fácil na mão de pessoas do mundo inteiro, àquela época chegou a ter seus minutos de fama e, como um experimento do que viria pela frente, profetizou a esperança na ciência a escola de Ramos e adjacências.
No Carnaval, uma injeção de alegria/ Dividida em doses de amor/ É a minha Escola a/ me chamar, Doutor!/ Posso ouvir o som da bateria/ O remédio pra curar a minha dor! (A Imperatriz adverte: sambar faz bem à saúde – G.R.E.S. Imperatriz Leopoldinense – Drummond / Flavinho / Gil Branco / Me Leva / Tião Pinheiro, 2011).
Já para a escola Vai-Vai de São Paulo, a premonição pareceu ainda mais clara, uma vez que em seu enredo de 2009, assinado pelo carnavalesco Chico Spinoza, para celebrar o corpo humano na busca pela saúde, falava, entre outras coisas, sobre uma vacinação em massa que traria a salvação para a população. Desfilou campeã desse ano – poucos meses antes de aparecerem os primeiros casos de H1N1 do tipo A no México e a OMS declarar que estágio de pandemia, que atingiria o Brasil logo em sequência – e arrebatou a avenida com uma ala de baianas que representavam a “globalização microbiana” que tem seu início marcado pelo período da história ocidental das Grandes Navegações, o que acabou gerando, entre tantas outras moléstias, a possibilidade de doenças endêmicas se tornarem epidêmicas e pandêmicas.
Era para ter sido como um ensaio técnico para o que veio a nos suceder anos depois, quando, em 2020, finalizado mais um carnaval, tivemos que nos isolar das outras pessoas para garantir que a taxa de contágio de Covid19 ficasse o mais baixa possível, mas a gente esqueceu, ou fez pouco do que viu com a H1N1 e ela, por sua vez, realmente, não nos disse toda a dureza do que nos aguardava o tempo. E começamos quase do zero, fazendo força para errar a cada passo e agora estamos atravessando a avenida a compassos trôpegos, negando a ciência, negando a vida... Mas o Samba da Vai-Vai ensina o caminho ao saudar a fé na ciência brasileira.
Arde o rio! É febre na cidade inteira/ A vacinação trouxe a salvação/ Salve a ciência brasileira (Mens sana et corpore sano – O milênio da superação – G.R.E.S. Vai-Vai – Danilo Alves / Naio Denay / Vagner Almeida / Zé Carlinhos, 2009).
O poder da cura, em 2017, foi o tema da Unidos de Padre Miguel do carnavalesco Edson Pereira, como maneira de contar em seu enredo as histórias do orixá Ossain, o senhor das folhas de cura. O orixá que, em seu itan[5] mais conhecido, compartilhou o conhecimento das ervas com os outros orixás para não ser mais alvo de inveja, mas que manteve consigo o poder maior sobre elas. É justamente aquele capaz de nos fazer entender o que é que de coletivo há no compartilhamento de informações, tecnologias e conhecimentos, quando esses só respondem a nossa própria vaidade, ou quando rebaixam as vaidades ao nível dos ratos, sobretudo, quando as informações e conhecimentos são falsos e atrapalham o entendimento mais amplo do que realmente está acontecendo. Ossain compartilhou para aplacar o jogo das vaidades dos outros e, justamente por isso, seguiu soberano de seu próprio saber.
Vai ter xirê, ogans e alabês/ Ossain motumbá/ Hoje a Unidos de Padre Miguel/ Tem o poder de curar! (O poder da cura – G.R.E.S. Unidos de Padre Miguel – Alan Santos / Cabeça Do Ajax / Carlinhos Do Mercadinho / Cláudio Russo / Dilson Marimba / JR Beija-Flor / Marquinhos / Ribeirinho / Samir Trindade / W. Correa, 2017).
Parte do problema da pandemia atual é a desinformação e o negacionismo de agentes muito influentes e de boa parte da população, o que nos faz calcular que o “poder de curar” da Unidos de Padre Miguel seria ainda maior se essas notícias falsas, esses remédios sem comprovação e essa negação da ciência não tivessem feito parte do nosso cardápio diário de horrores. De acordo com o itan, Ossain é um líder com muito poder, afinal de contas ele é o detentor de todo axé, mas ele decide compartilhar seu poder sobre as ervas com os demais por buscar a harmonia entre todos. Já no nosso caso, compartilhar falsos poderes “cloroquinescos” em um momento de fragilidade socioeconômica e de saúde demonstra o quanto uma pessoa em posição de liderança pode produzir desarmonia e lucrar com sua própria vaidade. Falta a energia e o caráter de Ossain aos nossos governantes desgovernados, mas, infelizmente, não se podia esperar nada diferente.
Apesar de não ser comprovado ainda pela ciência/ O meu samba cansou de mostrar sua eficiência/ Pra curar toda melancolia e os males do tédio/ Samba aqui, samba ali/ Que o samba é o melhor remédio (O poder da cura – Arlindo Cruz/ André Rocha/ Montgomerry Ferreira Nunis).
O poder da cura do Samba pode estar no que ele prescreve de nossa história, pois, a despeito desses que aí estão atravancando nosso caminho, o Samba nos guiará em sua própria evolução à franca exaltação do convívio, à roda, à palma de mão, ao corpo que se estende e se entende na entrega de um bom refrão que só as escolas de Samba nos ensinam. A meta é ser bamba e aprender sobre o tempo com escola de Samba para saber confirmar outras notas na apuração e no desfile das campeãs em que sermos todas. A cantar um Samba inédito com toda a força, cíclico como o retorno de um Jamelão[6] à cabeça do Samba, tantas vezes em um só desfile, mas sempre diferente. E como se fosse a última vez, a derradeira cerveja com gosto de saideira de nunca acabar, sentiremos tudo de uma vez só e misturando, nós, o caldo da Penha, para sempre nos lembrarmos desse jubilo depois, pois só a gente vai saber o que passou, quando for carnaval.
Notas
[1] Frase da música “Desde que o samba é samba” de Tropicália 2, de Caetano Veloso;
[2] Nilton Delfino Maçal, mais conhecido como Mestre Marçal foi um importante mestre de bateria da Portela;
[3]Trecho do samba “Mora na Filosofia” composto por Candeia em 1955;
[4]1928: Ano de fundação daquela que é reconhecida por muitos historiadores como a primeira escola de Samba do Rio de Janeiro, a lendária “Deixa Falar” do bairro do Estácio;
[5] Itan é o termo em iorubá para o conjunto de todos os mitos, canções, histórias e outros componentes culturais dos iorubás. Para os iorubás, os itan são como um fato histórico, eles confiam no itan como sendo uma importante verdade na resolução de suas disputas. Os itan são passados oralmente de geração a geração;
[6] Famoso cantor da história da Estação Primeira de Mangueira.
Referências textuais:
SANTOS, Ricardo Augusto. A gripe espanhola, carnaval e greves - Simpósio Nacional de História - Londrina, 2005;
SIMAS, Luiz Antônio/RUFINO, Luiz. Fogo no mato: A ciência encantada das macumbas – Morula Editorial (2018);
CONY, Carlos Heitor. Carnaval da Gripe – Folha de S. Paulo (25/02/2001);
COSTA E SILVA, Alvaro. Bloco do eu sozinho – Folha de S. Paulo (23/06/2013).
*A partir desta edição, durante cada trimestre, contaremos com a curadoria da Seção Bônus feita por um colunista convidado. Começamos com André Vargas.
André Vargas é poeta, músico, educador e graduando de Filosofia pela UFRJ. Como escritor publicou dois livros de literatura infantil: “Caraminholas – poesias do fundo da cachola” pela editora Multifoco, em 2012 e “Roupa de Camaleão” pela Zit Editora, em 2017. Como artista visual participou de exposições coletivas como “Africanizze - Performática”, no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica em 2018, “Renovação Carismática” na Caixa Preta, em 2019 e “Rua!”, no Museu de Arte do Rio, em 2020 e, como educador trabalhou para o MAR, IMS-RJ e BPE.
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