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Marielle Franco e a Força da Natureza de Mulambo

por André Vargas (colunista convidado)



Força da Natureza (2018), Mulambo



Na imagem, fotografada por Bárbara Dias em 2018, vemos a vereadora Marielle Franco descendo os degraus da escada da Câmara dos Vereadores do Estado do Rio de Janeiro cercada por policiais agitados e atentos. Os signos de poder dessa fotografia são violentos, pois violenta é a nossa realidade. Um corredor de policiais se abre, como um mar de brutalidade que apresenta um frágil pontal em maré baixa, para que Marielle possa passar na segurança mais insegura que pode haver. O pórtico da câmara municipal vigia ao fundo, com toda a sua pompa histórica de representação política popular, a representatividade dessa mulher preta, favelada e lésbica a atravessar o bloco de distintivos e cassetetes, impávida e colossal. Por cima da fotografia, o desenho simples de um artista de olhar muito aguçado para os vazios das imagens que se estabelecem e se cristalizam na regra hegemônica das opressões como a história. Mulambö percebe nesses vazios a forma das peças, como em um jogo de quebra-cabeças, capazes de restituir aos personagens dessa memória outra razão de protagonismo. No desenho em questão, o artista prescreve roupa, armas e adornos que, talvez, muitos de nós já havíamos sentido diante da presença de Marielle, mas que sempre nos faltou ver.


Mulambö, João, meu amigo, esse foi o primeiro trabalho seu que eu vi, e nunca mais deixei de acompanhar com expectativa e alegria cada passo que você dá nesse mundão das artes. Você em “Força da Natureza” vestiu Marielle com as roupas e as armas de Iansã e, com isso, nos trouxe ainda mais forte a ideia do poder de frutificação dessa nobre vida de lutas, sobretudo onde o território é o do indizível e onde o ciclo vida e morte é indivisível. Para muito além da ausência, esse seu trabalho me organiza o entendimento sobre a força do encanto e da continuidade.


Nesse mês de março completamos três anos sem respostas mais conclusivas sobre o brutal assassinato da vereadora. Três anos de desamparo político sobre os rumos democráticos de nossos poderes. Três anos de ausências e retrocessos. Três anos de mobilizações e promessas. Três anos de perguntas suspensas. Três anos que Marielle virou uma das mais fortes ideias de representatividade política em todo o país. Três anos que a potência Marielle se tornou a bandeira mais brandida de uma nação em profunda redefinição identitária. Três anos e eu não poderia deixar de retomar essa imagem produzida por Mulambö, porque dela eu pude retirar muita esperança num momento em que eu e todos ao meu redor estávamos reféns do medo e compartilhávamos da mesma dor. Esse trabalho me ajudou a entender que a Marielle estará sempre presente em nossa luta, ainda que não possamos mais avistá-la, como era de costume, nas ruas, nas frentes de batalhas do dia-a-dia.


Roupa, armas e adornos forjados por Mulambö no invisível de uma imagem, mas o que será que essa roupagem de Orixá desenhada pelo artista pode nos dizer sobre o caminhar solene que Marielle prescreve da Câmara para a rua divisada por policiais? Talvez consigamos coletar mais maneiras de olhar para essa imagem simplesmente ouvindo algumas músicas e pontos dedicados a Iansã[2], Orixá que Mulambö sobrepõe na imagem, prestando bastante atenção a suas letras. Recorro, com alguma frequência, às letras das canções para pensar e repensar tudo aquilo que me circunda, pois acredito que passam pela poesia as tais nuances do invisível, do indizível, que Mulambö atina e que só somos capazes de sentir brevemente nas coisas. Além do mais, nada mais honesto para pensar a poética de Mulambö, que também tem sua pesquisa bastante influenciada pela música, do que construir uma trilha sonora para ouvir enquanto vê, diluindo as próprias noções de ver e ouvir, para, assim, tentar reelaborar as relações que construímos num primeiro momento com esse trabalho.


Mulambö pôs na mão esquerda de Marielle seu eruexim, ou irukerê, instrumento sagrado de Iansã, semelhante a um rabo de animal, com o qual ela lida e controla os eguns, espíritos ancestrais desencarnados e Marielle é também a força desse domínio quanto à ancestralidade negra. Aquele reconhecimento estranho que se avultava para mim, quando sua campanha caminhava, também era um reconhecimento de ordem ancestral, um reconhecimento de um parentesco perdido pela violência da escravização de nossos antepassados e dos reflexos que vivemos até hoje dessa história. Era o reconhecimento que ressoa no pendão das matriarcas negras. Ela é minha tia, ela é minha avó e ela é minha irmã. Em dias atuais, sobretudo em alguns países da África Central, carregar um eruexim é sinônimo de nobreza e status, o que solidifica ainda mais a coerência de este instrumento estar nas mãos da vereadora que, sem sombra de dúvida, figura entre as mais altas patentes de nossa cultura de luta e resistência.

Na mão direita de Marielle está postada a sua espada. É o símbolo de sua luta e a marca distintiva de sua caminhada. Com essa arma ela abre caminhos e, ao mesmo tempo, segue a batalha. De alguma maneira eu consigo imaginar a espada afiada de Iansã com a palavra categórica de Marielle quando discursava e, seguindo essa analogia, imagino também o poder do eruexim de Iansã, com a ancestralidade evidenciada pela própria presença marcante de Marielle.

A eparrei ela é Oyá, ela é Oyá

A eparrei é Iansã, é Iansã

A eparrei

Quando Iansã vai pra batalha

Todos os cavaleiros param

Só pra ver ela passar

“Ela é Oyá”, Ponto de Iansã de Sandro Luiz


Quando Marielle Franco despontou como candidata a vereadora, eu soube de pronto que ela seria avassaladora como um fenômeno da natureza; eu soube que ela seria vasta como o vento e soube que ela seria crítica como o raio. E, mesmo à distância, acompanhei sua campanha, fazendo a minha própria, de modo pessoal quando revelava o meu voto sempre que era possível a qualquer pessoa que me perguntasse, “Eu vou votar na Marielle!”, não havia segredo nisso, era um voto aberto. Eu agia naquele momento com a certeza inquebrantável de quem estava assistindo uma guerreira se apresentar para comandar nossas batalhas. Ao mesmo tempo, eu percebia que outras pessoas que, assim como eu, não a conheciam de perto, também reconheciam essa força que vinha dela. Um reconhecimento diferente, uma coisa que era impossível descrever e que agora percebo que talvez fosse um reconhecimento desse poder invisível tornado visível por Mulambö.


Não à toa Marielle foi recordista de votos em sua primeira participação em uma eleição, sendo, com 46 mil votos, a segunda mulher mais bem votada em uma campanha com poucos recursos e que, em muito se pautou pela velha dinâmica do contato boca-a-boca. De qualquer maneira, sem sequer suspeitar da minha singela campanha pessoal, Marielle foi pra batalha e sua voz, seu discurso, suas palavras eram as armas de que dispunha para enfrentar toda a sorte de conservadores que enxergavam nela, e em tudo o que a presença dela representa, a sua algoz. Mas, tanto aqueles que lhe faziam oposição, quanto àqueles que lhe eram parceiros de luta, paravam para ver e ouvir Marielle falar. Quando não paravam de imediato, ela se impunha e reestabelecia o respeito. Pois era forte o que falava e a forma como falava sempre muito certeira, segura, não deixava que ninguém a subjugasse com facilidade, como na parte do discurso que fez no dia 8 de março do fatídico ano de 2018, seis dias antes de seu assassinato. Quando, em plena Câmara dos Vereadores, interrompida de sua fala por um manifestante conservador disse: “Não serei interrompida, não aturo interrupção dos vereadores desta casa, não aturarei de um cidadão que vem aqui e não sabe ouvir a posição de uma mulher eleita Presidente da Comissão da Mulher nesta Casa.” e reestabeleceu a ordem de sua presença. Era como se a sua fala recolocasse cada sujeito em conflito com ela em sua dimensão de insignificância, para, então, se recolocar.


Obviamente recaiam sobre Marielle as mais obscuras formas de preconceito existentes em nossa sociedade. Quer sejam quanto a sua raça e cor, ou quanto a sua origem, ou ainda quer sejam quanto ao seu gênero e sexualidade. Marielle abria com sua entrada, aos poucos, com seus projetos e sua forma de apresentá-los bem como com seus discursos incisivos, como que a golpes de facão em densa mata, um caminho em meio a uma estrutura política grosseiramente racista, misógina e homofóbica. Mas o caminho que por ela foi aberto agora é conservado e expandido por outras guerreiras da mesma falange e que despontaram com bravura justamente ao caminharem com e por Marielle, trilhas em que vencer demandas é a única forma.


Eparrei, Iansã, ilumine o dia de amanhã,

A tarde desceu mais cedo,

Quando da taça bebeu

Na caminhada, trovejou mas não choveu.

“O Bailar dos ventos. Relampejou, mas não choveu”, Acadêmicos do Salgueiro 1980: Zé Di, Zuzuca, Edinho, Haydée, Moacir Arantes e Pompeu


Nessa caminhada que se embrenha na floresta do conservadorismo, o céu traz avisos de guerra e de paz. Mas é preciso estar com olhos fustigados para o ver das coisas invisíveis.


A sabedoria de olhar para o céu e compreender a hora exata de voltar para casa. O domínio de ver no céu a rota certa para chegar em seu destino. O ensinamento que se tem ao olhar para o céu e perceber que foi desleixado ao esquecer um guarda-chuva. Ou o simples olhar para o céu e saber que a nuvem é passageira. Tantas coisas o céu pode nos recomendar e nos confessar. Mas nem sempre o que o céu indica de fato se cumpre, às vezes os avisos são somente para nos lembrar do seu poder. Só para nos lembrar que o céu é maior e é uma força maior. Como o trovejar que muito acompanha os ventos de Iansã quando muda o tempo, mas que, nem sempre, cumprem o temporal que anuncia.


Apresentar o poder sem que seja necessário a utilização do mesmo é como um lembrete da pequenez da humanidade diante de fenômenos naturais e místicos. Vestir Marielle de Iansã é também atentar para essa face da política que experimentamos e que necessita muitas vezes parecer forte, apresentando poder sem fazer uso do mesmo como forma de se estabelecer nesse meio que, como já dito, ainda é dominado por uma hegemonia branca, masculina, cis, heterossexual e rica. Em outras palavras, aparentar ser aguerrida, trovejar e não chover, em alguns momentos, é a única forma de se conseguir impor respeito diante de pessoas que, de antemão, menosprezam a aridez de sua caminhada.


Não haveria motivos pra gente desanimar

Se houvesse remédio pra gente remediar

Já vai longe a procura da cura que vai chegar

Lá no céu de Brasília as estrelas irão cair

E a poeira de tanta sujeira há de subir, Oyá.

“Iansã/Oyá”, Arlindo Cruz e Arlindo Neto


Não deveria ser uma condição, para que outras políticas se apresentem como possibilidade de mudança, que elas tivessem que ser, ou aparentar ser, aguerridas para que só assim detivessem respaldo e atenção das instituições, partidos e outros integrantes da política. No Brasil, no entanto, a forja que sustenta as opressões nos cria como lutadoras e lutadores e, que em muitos momentos precisamos radicalizar em discursos e gestos para que esse imenso grupo de privilegiados tomem nota de que nossa existência e persistência é nossa réplica.


Manter-se com esperanças, na “cura” das nossas doenças sociais e que essa mesma “cura” foi, é e será, tarefa de uma guerreira como Oyá, única capaz sacudir a poeira das velhas políticas e a sujeira dos velhos políticos, não é tão fácil quanto parece. A luta é cheia de medos e descaminhos aporéticos. Mas a lembrança de Marielle por si só restaura nossa armadura contra o desespero, e a imagem de Marielle como Iansã de Mulambö instaura nos inimigos o terror de que responderemos, porque já estamos respondendo.


Rainha dos raios, rainha dos raios, rainha dos raios

Tempo bom, tempo ruim

“Iansã”, Gilberto Gil


Aquela que anuncia a mudança do tempo, ou a mudança dos tempos, a rainha dos raios, está tanto no tempo bom, quanto no tempo ruim. É quem coordena os eguns, portanto, está tanto na memória quanto no esquecimento. E é quem faz a transição de quem falece sobre a terra, logo, está tanto na morte quanto na vida. É presença sempre, nunca bipartida. É o que ganhamos e o que perdemos ao continuar.


O tempo mudou! Fez o céu brilhar

O Sol e a Lua irradiam energia

Para renovar

Que renasça o amor e fortaleça a fé

Pois Iansã está soprando pelo mundo

Um vendaval de Axé!

“A guerreira vai reinar”, Ponto de Iansã de Sandro Luiz


Um vendaval de Axé, Marielle se fez semente no peito de muitas outras mulheres pretas que aceitaram a missão de guerrear na frente politica por uma sociedade mais justa e respeitadora da diversidade que é toda a nossa riqueza. Ultrapassando a barreira da vida, como que renascendo todo dia em cada uma das guerreiras que se levantam contra as conservas autoritárias da hegemonia. Renasce como amor aos oprimidos, fortalecendo a fé de que a luta contra as opressões é a única digna em um caminho contínuo de renovações.


Mulambö, ao vestir Marielle de Iansã, demonstrou que tudo o que se move no invisível demove a visão de sua predominância sobre os demais sentidos, escancarando a existência de mil outras batalhas em outros planos, em outros ditos, ajudando a soprar pelo mundo a esperança que Marielle simboliza de que toda essa luta há de nos apresentará a novidade.

Salve Mulambö!

Marielle vive!

Epahei, Oyá!





NOTAS

[1] Título do trabalho de 2018 do artista Mulambö e referência à Iansã

[2] Iansã é um título que Oyá ganha de Xangô. Iansã quer dizer A mãe do céu rosado ou A mãe do entardecer. Ele a chamava dessa maneira, pois ela era radiante como só o entardecer pode ser.


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