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Breve antologia da oficina "é isto um poema?"

Atualizado: 6 de out. de 2020


Durante o último mês de agosto abri uma oficina de poesia com a simples indagação: é isto um poema?


Foram quatro aulas, quatro poetas contemporâneos por vez, quatro diferentes exercícios propositivos de escrita.


Queria encontrar gente disposta a botar a cara do poema na fogueira das análises, desdobrar toda uma geração de poetas que hoje balança nesse equilíbrio fino que nos jogou o nosso tempo: entre a ruína visível e a utopia viável. Essa oficina foi uma dessas encruzilhadas utópicas: dezessete alunos aplicados, apaixonados por literatura, bons poetas, atentos, generosos. Seguiria aqui uma lista extensa de elogios, mas me atenho a publicar alguns de seus poemas como uma espécie breve antologia desse orgulho todo.

Flávio Morgado




arte: Melvim Brito




americano acha mensagem em garrafa ao mar jogada há 50 anos por marinheiro russo


sentado numa beira de calçada do alasca

Ivanoff ironicamente americano

encara a garrafa verde ao lado das estacas de madeira

saca-rolhas

abre a garrafa

50 anos navegando pelo mar

Botsanenko

marinheiro russo, de 36 anos, a bordo do navio sulak

"Sinceras saudações do navio-hospital VRXF

Sulak da Frota do Oriente Próximo russo"

tenho um sonho louco que me diz com certeza

que a guerra fria não acabou

que ela segue se espalhando pelas beiradas do mundo

perdida e refeita em bocas confusas

enquanto seu lobo não vem

Ivanoff assombrado por seus avós

tem os que sonham o monstro do comunismo

e temos nós que desejávamos que ele estivesse vivo

mas ele não é muito mais que um zumbi-sonolento

boneco do inimigo

fosse o caso roubar o sonho e sonhar por nós

: o fantoche vermelho tomando terras dividindo bens

monstruoso espalha-se rugindo

against social-democracy

cresce na calada da noite em becos

e nas armadilhas bem montadas

usurpa grupos de famílias missas e votos

monstro monstro monstro

ressurge e nasce como te desenham

imponente vermelho guloso

esquece o tempo e os maus tratos

apaga a fome e os panfletos no chão

cresce e governa e tirano saca dos ricos e dá aos pobres

e pinta de vermelho toda a nação américa

muda a bandeira

o currículo

cumpre sua sina monstro fiel cumpre

mas o capitão Botsanenko

já não se lembra de mensagem alguma

e é só sua assinatura a que reconhece

vermelha rasgada no final da carta

a mensagem está seca mas a garrafa cheira a vinho

o que dizer ao velho russo,

que sonhava?

Gabriela Faccioli (Rio de Janeiro – RJ)


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Iluminação:

substantivo diverso em uma linguagem binária

do português bem-falado: iluminar, alumiar, incêndio, clarear as ideias, saquei o que

você disse, luz no fim do túnel, luz no fim do brasil, Cemig, pagar as contas, enobrecer;

um corpo ao chão

lâmpada que se estilhaça

apagar as luzes

embrulhá-la no jornal

em que se lê

cem mil mortes

Carolina Flausino (Belo Horizonte - BH)


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afterlight





Maria Cabianca (São Paulo - SP)


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2.

as mãos se espelham

as pernas se imitam

em inversão.

em desespero

para se ver e conferir

se si existe

fora

e dentro do espelho




Isabella Corradi (Belo Horizonte - MG)


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laudo

descaso e circunstância

arder provisório

clarão de laranja e choro

sem revolução ou aviso

ensurdecedor e sintético

esse anti-sol inscrito no espaço

de um armazém,

apenas oculto

entre os fardos de farinha

foi descrito, mas até certo ponto -

o estrondo é mais velho

que a língua




Peppe de Souza (Rio de Janeiro - RJ)


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l'amour fou




Fabianna Pellegrino (Rio de Janeiro - RJ)


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descrição

a marcela


é um díptico.

(vou trair meu objeto)

criadas em lirismo duro,

cento e oitenta e cinco,

duzentos e vinte.

acima:

"amai o próximo como a ti mesmo"

putas ou vagabundos. amém.

ao fundo:

roxo, lilás, magenta, rosa, laranja, amarelo, vermelho.

imagino assim o fundo de uma buceta.

é fogo,

elas transpiram quentes; o calor

pode subir ao corpo: pernas abertas.

à esquerda da tela: cadeira mesa tomada.

à direita da tela: azul menina entrada.

e um aviso? um menu? um catálogo? uma prece?

uma bola de espelhos, que reluz, que não brilha.

a frente:

me encara. late entre nós

uma jaula. (mas quem é engaiolada?)

a pose. são panteras;

babalu entre as feras;

e a noite vermelha de

sophia de mello breyner

andressen; a posse.

nessa paisagem não

opera. o

mistério das coisas

estremece, e o

desconhecido cresce

como vejo daqui, um pouco assim:

cada corpo transpõe um mundo;

contorno profano consagrado: não

encosto no que foi devotado. tudo

no mundo saiu de uma mulher.

A matéria,

a mátria, de marcela, tudo pode,

e de pernas

abertas.


Carolina Torres (Rio de Janeiro – RJ)


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elogio da velocidade

faço gato

com fios entreabertos

busco uma luz

ou a companhia

de um animal doméstico

junto aqueles fios

vejo um clarão

3 segundos depois

um cacarejo.


Helena Elias (Belo Horizonte - MG)


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Mãe Maria de Santo Antônio

Eu quis captar ânsia em 3 jogos

Abdiquei antônimos

Cria

Os seios latejantes ao pai

ao filho

e aos espíritos dos eguns

São gerações em que venho re-suscitando

Folhas de figueira

-pus aos mamilos

-amo como papel movediço

-corro em caracol

Direitos autorais?

Povere

Soledad eu jurei

Carta sacerdotisa

Amamentação prantos

Perdi 3/4 tanto:

Povere

Ao mastro ainda

Lágrimas sonetos

Manter figura

Descarrego

Povere

Decapitar estômagos se deu

Em pisar em ovos hoje

Povere

Fiz a trinca

de 7 de três coringas

Ademais, Adelante

Fui grama

Povere

Meu custo foi 3 cruzados e 2000 euros

Dos seios ao zelo nenhum cabelo

Saio em pus

Povere

Grito abundância

Deflorar em ventre o branco

Risco em medo

Minha marca é a ranhura

Açoite claro

Calo calmo

falecer de meu filho

Desarmado é a porta

Vá meu menino,

Povere

Nila Clara (Rio de Janeiro – RJ)


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FRANCIS BACON 2

Um Papa perfeito copiado

Dá régua ao meu perfeito par.

O espanhol me obstina.

Meu amante faz o que eu busco

No espanhol:

Guia meu olhar obtuso

Na convulsão viva do verdadeiro.

Reajo do que vejo, com a mão!

Contorce o que represento,

Fixa a realidade que é gauche,

‘Desposiciona’, amplia: síntese.

O ‘subjeto’ está aqui!

Como posso mostrar o que leio?

Você está vendo tudo isso?

O papa, meu amante, a realidade...

O contrário é quase impossível.

Tempo, corpo e espaço

Sintetizados entre a tela e observador.

A quem pertence o meu olhar?

Com quem dialoga quando fala?

Entre o papa e o amante,

Sou o fruto.

Dou gosto e cheiro.

Guilherme Martins Pinheiro (Rio de Janeiro – RJ)


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GARIMPO

Mundicão, terra, terreiro de danar

Pedra, bateia: Carajás

Povo, peleja: multidão, multidão

É assim, mata, mosquito, no Pará

Supra-suplício: vai ‘guentá

Some na selva: é capim, é capim

“Num me vô”, grota, grilhão, um igarapé

Cinta, chicote, caixão qualquer

Círio, silêncio, pelo Senhor,

“não sinhô”.




Ulisses Dias (Rio de Janeiro - RJ)


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PARIR É UMA METÁFORA

para Alice Guy Blaché

embora excitada com a ideia

de uma cegonha enfiando o bico

na pureza assexuada

a falta de orçamento para penas

e sangue cenográfico

me levou à realização da fada

que arranca meninos de repolhos

na horta do quintal

foi o máximo ouvir o berro

dos operários enquanto ela apagava

o número de série do bebê

que reluzia na cena final.


Adriana Gama de Araújo (São Luís – MA)


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ENCONTRO 4

gosto das noites bem dormidas,

quando a palavra se enrosca ao sono

e reforma o delírio,

quando você me visita

(bem na hora em que me dou conta de que o relógio já deveria ter tocado)

é que você sempre chega atrasado

você tem hora marcada com o quase

a porta fechada da mercearia já conhece seus

d e s a p o n t a m e n t o s

os ponteiros estão soltos na mesa de trabalho

e você já não sabe dar corda ao tempo

você chega quando a Revolução esfria

e, na verdade, você nem chega

(a Revolução, tampouco).

Carla Ferroli (Rio de Janeiro – RJ)







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