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Um grito ou um silêncio veemente

Entrevista inédita com João Gilberto Noll, por Julia de Souza




João Gilberto Noll por Gilberto Perin




Em março de 2011, quando eu me preparava para ingressar no mestrado do Programa de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo, fiquei sabendo que João Gilberto Noll daria um curso de criação literária no b_arco, um centro cultural da capital paulista. Naquele momento eu ainda não me entendia exatamente como escritora, sobretudo porque a norma uspiana ia de encontro com qualquer aspiração que desviasse do trabalho estritamente crítico e acadêmico.


Meu contato com a obra de Noll era recente: o professor Jaime Ginzburg, que orientaria minha pesquisa de mestrado, incorporou o livro de contos O cego e a dançarina à bibliografia da disciplina Literatura Brasileira VI, e essas narrativas — marcadas pelos personagens errantes e de origem indeterminada, por um erotismo desvelado e conflitivo e por uma memória alvejada pela violência — desestabilizaram minha experiência como leitora. Havia ali um tipo de perturbação da linguagem que era novo para mim, e não fora contemplado pelo currículo tradicional da faculdade de letras que eu cursara até então.


Autor de treze romances (entre eles, Harmada e A fúria do corpo), dois romances juvenis e três livros de contos (O cego e a dançarina; Mínimos, múltiplos, comuns, e A máquina de ser), o escritor gaúcho vincula-se a uma geração de ficcionistas cuja produção, sensivelmente inflamada pelo cenário de repressão política que se impôs desde o golpe militar de 1964, rejeita qualquer imagem positiva do Brasil, bem como a possibilidade de representá-lo de forma totalizante. Além dele, Caio Fernando Abreu, Sérgio Sant’Anna e Silviano Santiago são alguns autores que não passaram ao largo dos aspectos corrosivos de um país que vive até hoje sob a insígnia de um “autoritarismo socialmente implantado”, para usar as palavras do cientista político Paulo Sérgio Pinheiro. “O meu nome não. Vivo nas ruas de um tempo onde dar nome é fornecer suspeita.” — assim João Gilberto Noll abre A fúria do corpo (1981), seu primeiro e incontornável romance.


A rarefação da experiência e do sujeito, as situações violentas, de exceção, e a falência de qualquer estrutura institucional organizadora despontam na obra de João Gilberto Noll tanto no que diz respeito à estirpe de seus personagens — que são mendigos, fugitivos, homossexuais, artistas, prisioneiros —, como na ruptura radical com elementos canônicos da narrativa: a linearidade e a objetividade realistas são ultrapassadas por uma profunda fragmentação discursiva.


Noll se define como um escritor de linguagem. Disse que escrevia diariamente, numa espécie de improviso ou especulação poética sobre as coisas, para “povoar um instante que é vazio”.


*


Me inscrevi, então, na oficina “Dar alma à correnteza”. Foram quatro encontros semanais, para os quais Noll se deslocou semanalmente de Porto Alegre até São Paulo. “Ser gaúcho é a minha cruz”, disse ele. Durante os encontros, o escritor apresentou suas análises de alguns textos de ficção (entre eles A paixão segundo GH, de Clarice Lispector), e nós, alunos, líamos em voz alta aquilo que produzíamos entre uma aula e outra. Sua presença oscilava entre uma circunspecção meditativa e alguns rompantes de humor. Quando lia algum dos trechos — seus ou de outros autores — que elegera para mobilizar nosso contato com a ficção, sua voz e dicção se transformavam, adquirindo um tom lamentoso, quase torturado.

E era sobretudo admirável a generosidade com que recebia a produção textual e a iniciativa crítica de uma turma constituída, em sua enorme maioria, por amadores.


Algum ímpeto juvenil me fez tomar coragem para sugerir ao Noll uma breve entrevista. Ele aceitou, um pouco contrariado, e marcamos um café meia hora antes do início da terceira aula. Levei um pequeno gravador e uma folha de papel com as questões que havia elaborado na véspera.


Não sei por que nunca levei essa entrevista a público. Talvez o ímpeto juvenil tenha se convertido em constrangimento — até porque, na época, eu era apenas uma aspirante a pós-graduanda, e nunca tinha publicado um poema sequer. Só agora, já passados três anos de sua morte, tiro-a da gaveta. Percebo que as questões levantadas por mim talvez tenham perdido algum frescor: além de denunciarem uma certa carga de romantização estudantil, foram também pautadas por algumas tópicos vigentes no cenário cultural de então. De todo modo, e quase dez anos depois, publico aqui a conversa que tive com o autor de “Alguma coisa urgentemente”, cujo personagem, filho de um perseguido político da ditadura civil-militar, “balbuciava uns pensamentos perigosos”:




Como sugere o título do curso de criação literária que ofereceu — “Dar alma à correnteza”—, seu processo criativo parece ser muito afeito às descargas involuntárias do inconsciente. Em que momento de sua escrita o esforço racional ou técnico tem vez?


É, no primeiro momento existe isso que você chama de descarga do inconsciente. Perfeito. Quer dizer, do espaço em branco, do estado de vazio, eu preciso preencher aquele instante vazio com uma voz... hoje eu trabalho muito mais com a voz do que com personagem. Eu não estou tão preocupado em construir personagem, mas em dar vazão a essa voz. Num segundo momento, realmente, há um trabalho extremamente racional, de mexer com a língua, tirar os excessos, complementar, refazer... é o que eu chamo do tempo artesanal do trabalho. Mas realmente, o primeiro momento é isso que você falou... uma certa cegueira. Eu vou com essa necessidade de seguir, não sei muito bem onde é que a coisa pode dar, enfim... eu não sabia que era assim. Antes de escrever pra valer, eu não sabia que seria assim, nem sabia que podia haver esse método. Eu lia depoimentos de alguns escritores afeitos a um certo realismo, a uma certa objetividade — até onde é possível haver objetividade no ato da criação literária — e eles diziam que os personagens tomavam corpo e criavam autonomia, faziam seu destino a partir de si próprios, não estavam esperando que o autor ditasse alguma coisa. E é isso mesmo que ocorre. Agora, não acho que essa seja a única forma de criação, há autores mais cerebrais, que eu até curto muito.




Você já declarou que os seus protagonistas são sempre o mesmo, apesar de não possuírem contornos nítidos. O que quer dizer com isto?


É sempre o mesmo. Não há uma continuidade explícita de um livro para o outro. Mas a alma é a mesma. Num livro ele é vagabundo, no outro ele é escritor, no outro é ator — duas vezes ele foi ator, pois eu aprecio enormemente o campo do ator, porque realmente é a utopia, né... mas trata-se sempre da mesma figuração: é esse o homem que habita em mim, mas que não sou eu.




Há um grande alarde na mídia, ultimamente, a respeito da dissolução entre os limites da literatura de ficção e da autobiografia. Como você observa essa suposta tendência e até que ponto a sua escrita tem um caráter confessional?


A literatura deve ultrapassar a imediatice do desabafo. Pode ter ares confessionais, mas não é biográfico, não estou contando a minha vida. Às vezes eu penso: quem me dera viver o que esse cara (o personagem) vive, a radicalidade desse cara como cidadão. Em outros momentos também não quero isso pra mim, acho um horror essa escolha dele.



Suas narrativas são, quase sempre, escritas na primeira pessoa...


Quase sempre escrevo na primeira pessoa, pois acho mais adequado para fazer uma reflexão sobre a ação. Acho que nunca vou escrever um livro todo em terceira pessoa. Meu mundo interior sofre de hipertrofia. Desde a infância, falava muito sozinho...




Em um debate sobre literatura brasileira contemporânea promovido em Abril deste ano (2011) pelo Instituto Moreira Salles, o crítico literário Alcir Pécora, ao defender a existência de uma crise da produção literária atual, fez a seguinte declaração:

Se a literatura não for experiência intensa, se não for radical (...), se não tem impacto, não presta pra nada. Literatura ou é o lugar do domínio mais radical em que a linguagem pode se produzir — ou ela é problema, ela é doença, no limite, ela é maldição — ou não é nada.

Pécora esclarece seu ponto de vista em um artigo denominado “Impasses da literatura contemporânea”, publicado alguns dias após o debate, de onde destaco o seguinte trecho:

Ocorre certo triunfalismo da produção contemporânea, que enfaticamente se nega a pensar seus impasses, ou enxerga neles apenas má vontade gratuita, tirania acadêmica ou conservadorismo crítico. Acho que essa recusa de sequer considerar a ideia de impasse tem qualquer coisa de cegueira deliberada.

Na sua opinião, qual a importância da crítica para o fortalecimento de um campo de criação que, supostamente, encontra-se diante de um impasse?


Ele tem toda razão. Eu não sei, eu estou num momento da minha escrita em que tenho pensado tão pouco na crítica... eu quero que a crítica me surpreenda! E se não surpreender... aliás, eu estou revidando o que ele disse na mesma moeda! Eu acho que eu tenho uma função de radicalidade, no sentido de não escrever autobiografia, como já disse, mas de avançar nessa questão da radicalidade da linguagem. O que eu quero dizer com isso é que eu acho que se você escavar, escavar, escavar, isso que parece intransferível, único na linguagem, você vai encontrar uma coisa comum. Esse dado antropológico que me interessa. Qual é o grito ou o silêncio veemente que a alma humana está conseguindo expressar nesse momento? Então eu penso a literatura como algo antropológico, de conhecimento da espécie.




A questão do apagamento do sujeito e da incomunicabilidade estão muito presentes no conto “Alguma Coisa Urgentemente” (do livro O Cego e a Dançarina), uma clara alusão ao período de repressão da última ditadura militar brasileira. De que forma se dá, em sua escrita, a articulação entre experiência empírica coletiva e o trabalho com a linguagem?


Pra mim a forma é sempre estruturante do tema. Quem determina o tema não é, digamos, uma divagação prévia minha, “eu quero falar sobre isso ou aquilo”. Há uma determinação mesmo, ligada ao indivíduo que eu sou, um sujeito até com dificuldades de encarar o mundo real. Até por isso não há uma questão autobiográfica. A forma dá estrutura para que o tema se realize. A primeira opção é estrutural. É por isso que eu sempre me coloco como um escritor de linguagem. O que realmente me leva, me conduz, é a linguagem.

A linguagem vem antes. Há uma historiografia interna, mas que eu só vou captar nesse atrito com o instante da criação. Eu nunca me vi pensando “quero escrever sobre os Anos de Chumbo”. E esse livro descreve isso. Claro, eu não quero descrever o sexo dos anjos, pois eu estou com veias abertas para o momento histórico, para as coisas que estão se passando nas ruas. Com certeza... eu sou um homem político, todos sofrem as diferenças políticas do seu tempo. E naquele momento a questão política era muito delimitada, havia um inimigo comum. Isso que eu disse (sobre a linguagem vir antes) não quer dizer que eu seja virgem da história. É uma questão que tem a ver com a filosofia da criação. Jornalista eu realmente não sou, não tenho a menor vocação. O que me faz escrever é um páthos bastante vago, muitas vezes, mas brutal. Quer dizer, a vida, mesmo com os quase cem anos que vivemos de aprimoramento da medicina, eu ainda acho um mistério insondável. A gente não sabe o que significa, não tem sentido. E acho que a literatura produz um pouco de sentido. Por que ela capta coisas que à primeira vista o teu coração não consegue captar. São sentimentos subterrâneos da experiência. A literatura não relata apenas a experiência, ela relata aquilo que foi adormecido no decorrer da experiência... então ela tenta revitalizar o que estava no ventre da experiência, reanimar algo que estava dormitando.

E esse conto fala da impossibilidade do conhecimento. Quer dizer, o cara que lhe deu origem (ao personagem) não está dando conta de responder as coisas mais centrais sobre o que significa aquela perseguição. É um pouco Deus também esse pai que não diz nada, é segredo absoluto. O cara quer saber e o pai não responde. É esse silêncio cósmico mesmo. Não é apenas sobre os Anos de Chumbo da ditadura militar. Porque as coisas têm que ser ambíguas, têm que falar das circunstâncias, mas têm que falar também da condição humana. E literatura não tem de construir mensagem edificante.




Há uma predominância, em sua obra, de personagens solitários. O trabalho do escritor é também pode ser de um profundo isolamento. A opção pelo ofício de escritor pode parecer um disparate, diante do imperativo atual de consumo acelerado de informação. A conquista de um espaço estritamente voltado para a criação ficcional exige uma resistência constante ao crescente imediatismo das linguagens midiáticas?


Sim, é um disparate. Mas acho que essa questão do atrito com o instante é uma resposta a isso. Pra que essa acumulação de conhecimentos, de coisas, de fabricações...? Por que não reverenciar o que possa ser produzido num certo vazio? O vazio aqui é político, inclusive. No sentido em que realmente esperneia contra a acumulação.


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