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Três fragmentos litorâneos

por Italo Diblasi



Lua, de Cela Luz, 2020



1.

A cena não chega a constituir um milagre, mas na falta de uma expressão tão distante do banal quanto do maravilhoso, acaba por valer. É assim que as coisas são: vão nos escapando um pouco, sempre e a cada instante, com um capricho constrangedor, até que a linguagem as enreda no movimento estúpido e perfeito de nomear. E então estamos de volta ao jogo: é a nossa maneira de participar um pouco mais do Acidente. Somos um pouco como deuses, percebe? Valemos o mesmo nada, e no entanto...


Milagres por toda parte. Já passava das quatro da madrugada quando alguém sugeriu ir à praia. O tipo de proposta que não se recusa quando se está tão perto. Distante da cidade o caminho iluminado apenas pelas pontas dos cigarros e as risadas bêbadas de uma juventude insistente, que vai se alongando conforme pode, apostando seus tentáculos contra a sorte, uma juventude pela qual se paga um preço em algum momento, e que faz viver também. Nada se via sob os olhos e no horizonte, apenas o contorno das formas duvidosas sob a luz escandalosa das estrelas e o som do mar, que de tão profundo (eu ia dizer gutural) ganhava contornos, como se a visão já não dependesse do olho e se formasse um pouco atrás da cabeça, em um ponto mínimo onde os sentidos se confundem inapelavelmente.


É sobre esta confusão que o milagre deita seu trajeto, e vai desfilando, sacana, à espera de nós. Não me recordo o momento em que me livrei das roupas, mas quando percebi já tinha mergulhado e sentia a água mais ou menos quente e salgada enredando meu corpo, e posso jurar que com um pouco menos de atenção teria me perdido para sempre nela. As ondas, ao contrário do que se supõe, foram se amansando, preguiçosas, e preencheram tudo, poupando meus olhos, num movimento que senti como uma espécie de carinho. Foi como se o mar tivesse aceitado que eu lhe interrompesse o sono. E então compreendi, primeiro com a pele, que se arrepiou inteira, e depois com as ideias, já avariadas pelo acúmulo de tudo, o sentido mais profundo do espelho.


Isto porque em meio à escuridão vi, de uma só vez, todas as minúsculas partículas de luz que se debatiam dentro da água, projetando-se sem rumo por toda parte e acompanhando, ainda, o movimento tonto de nossos corpos, que as intensificavam, e por um instante quase achei que as estrelas haviam baixado ao mar. Eram plânctons. Vi uma infinidade deles, minúsculos e milagrosos brilhando sob o véu denso da água, dançando com a graça indisciplinada das antigas bailarinas romenas. Balancei os braços e as pernas sem me importar se engolia água, e torcendo, até, para engolir ao menos um daqueles pequenos pedaços de estrelas, e se exagero na metáfora é porque ali foi como se o mar, de fato, espelhasse o céu, ou como se este tivesse espelhado desde sempre o mar sem que tivéssemos a menor ideia disso. É a dança das formas breves, a vida ínfima da quimera, um balé tão antigo que nos bota torcendo para que haja sempre alguém a reivindicar tê-lo visto também.




2.


O sonho começa como começam os piores sonhos: dentro de outro. Quando me dou conta estou nadando entre corais, o mar é profundo e esverdeado, envolto num silêncio perigoso. Observo tudo como um filme lento, há peixes por toda parte mas são os crustáceos que protagonizam a cena. Brigam como gladiadores romanos, jogando-se uns sobre os outros e levantando areia do chão. Pelo que lutam os crustáceos? Não os compreendo como gostaria e sinto falta de respirar, lembro que sou humano. Penso em voltar à superfície mas não a encontro. Tomo a consciência de estar sonhando, mas não consigo acordar. O sufocamento, aos poucos, transforma o sonho em pesadelo, e vejo um polvo enorme se aproximar. Os crustáceos cessam suas brigas e se escondem sob as pedras do fundo do mar. Sou grande demais para fazer o mesmo e fico observando. O polvo é violeta e passa sem me notar. Despeja tinta sobre as pedras, afugentando os crustáceos como se fosse uma espécie de lei. Sinto empatia por eles, mas não me movo, tenho cada vez menos ar. O polvo enreda alguns bichos em seus tentáculos e dispara rumo a algum lugar. Deixa um rastro de tinta que resolvo seguir. O polvo é mais rápido e a tinta começa a se dissipar. Perco seu rastro. Estou quase sem ar e olho ao redor. Vejo uma garrafa de vidro com um pergaminho dentro, no ponto exato onde a tinta dissolve seus últimos resquícios. Com meu último esforço pego a garrafa, que está aberta e retiro o papel, mas antes de conseguir ler morro sem ar.


Desperto dentro da mesma cena, mas desta vez consigo respirar. Agora eu sou o crustáceo que luta, mas ainda não sei o porquê. Tomo ciência da repetição e tento avisar os outros de que o polvo vai chegar, mas ninguém entende minha fala. A incomunicabilidade me desespera. Penso em me esconder, mas me lembro da tinta e começo a nadar. Minhas garras me atrapalham e vou vagarosamente andando pelo fundo. Ao fazer isso, percebo que o mar é como o mundo, só que molhado. Este pensamento me diverte e paro para observar. Vejo um humano ficando sem ar, o humano que talvez já tenha sido, em outro sonho. Meus pensamentos são interrompidos pela chegada do Polvo, que repete seu procedimento anterior. Desta vez não sinto empatia por ninguém. Sigo o o rastro do polvo, a tinta que vai se dissolvendo, e encontro a mesma garrafa. Pego a garrafa e, respirando, retiro o pergaminho. A água começa a borrar a tinta, mas leio a primeira frase escrita. Ela diz: todo o sofrimento desses anos. O humano toma o papel da minha mão e morre sufocado. Pego o pergaminho de volta, mas já não há mais nada a ser lido.


Desperto novamente, mas dessa vez o cenário é um deserto. Percebo que a cena é a mesma, como se o mar tivesse secado e tudo o que sobrasse fosse muita areia. Sou humano novamente e tento andar, mas não há nenhum lugar no horizonte onde chegar. Penso que é muito bom respirar. Penso em crustáceos que brigam e em tinta preta. Uma memória distante me recorda a garrafa, e começo a procurar por ela. Ando muito tempo, não sei se por horas ou dias, e começo a definhar de sede. A perspectiva de morrer novamente é um terror, e tenho a impressão de que a sede é pior do que morrer sem ar. Magicamente tropeço em algo: é a garrafa. Ela tem o mesmo pergaminho dentro, e desta vez está cheia de água. Abro a garrafa e bebo a água: ela é salgada, piorando minha situação. Percebo que o deserto é como o mar, só que mais seco. Este pensamento já não me diverte. Neste momento gostaria muito de acordar, mas novamente não consigo. Abro o pergaminho e a tinta está toda borrada, ilegível. Tento traçar padrões nos borrões e decifrar a escrita, mas apago antes de conseguir. Desperto com muita sede e a sensação de estar perdendo algo importante.




3.


Aqui vai uma anedota paradigmática sobre morrer na praia: em 1824, aos 36 anos, Lord Byron, o poeta, assolado pelos vícios, as dívidas, os escândalos e as repressões morais de seu mundo aristocrático, atende a um último e importante chamado da vida: vende suas últimas propriedades e junta todo o restante de sua avariada fortuna, contrata um exército de mercenários e algumas dezenas de navios e embarca rumo à Grécia, para lutar na Guerra de Independência contra os Turcos Otomanos. Sua armadura, feita do mais forte metal, foi adaptada para ajudar sua perna coxa, e seu elmo, que ostentava uma pena azul-e-branca era leve, para facilitar a locomoção. Ao longo do caminho, o poeta escreve seus últimos textos, que seriam perdidos, e faz longos discursos sobre Atenas, Esparta, Olímpia e a cultura grega, que os mercenários fingem gostar. Todas as noites banqueteiam, comem crustáceos, e cantam odes à liberdade e ao espírito humano. Cantam à Tragédia e a Homero. Torneios de luta são organizados a cada dia, nos navios, e os vencedores recebem o título de campeões da Grécia. Em uma noite quente, embriagado, Byron luta contra um mercenário e o vence, mas as tropas riem pelas suas costas, pois o adversário o deixou ganhar. Quando os navios se aproximam da costa grega, já circula, na sociedade inglesa, a notícia de que o poeta Lord Byron havia enlouquecido de vez e espoliado a própria família para ir à Grécia lutar. Quando a grande hora se aproxima, pouco antes do desembarque de Byron & seus mercenários, o poeta contrai uma febre avassaladora que o derruba. Insistente, chega a desembarcar na praia com seu exército e morre pouco depois, à caminho da libertação da Grécia. Sem saber o que fazer, os campeões de Byron se reúnem e decidem abortar a missão. Morto o contratante, não se engajariam em uma guerra que não era deles. Gastam parte da recompensa em bordéis turcos e retornam à Europa com os soldos já pagos. Guardam, em uma garrafa, o pergaminho com os últimos escritos de Byron e o lançam ao mar. A garrafa que ninguém jamais haveria de encontrar. A independência da Grécia ainda teria que esperar. O mundo perde o poeta Lord Byron, que muito tempo depois seria declarado Herói Nacional. As cortinas se fecham em um drama sem apoteose. Alguém no escuro se põe a aplaudir.

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