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[os olhos cedem e os dentes começam a bater]

Atualizado: 14 de set. de 2020

de Julia de Souza


Estamos sentados nas almofadas que servem de sofá e I. diz que não quer mais ficar comigo porque está apaixonado por uma mulher chamada Lua Cigana. Eu tento entender, protesto, digo que ontem mesmo ele disse tantas vezes que me ama. Ele diz que eu estou louca. Lua Cigana também é poeta.

[corte-salto]

Voltamos para casa eu, minha mãe e meu irmão, e ele começa a ter sintomas de Covid. Mal-estar e dor na ponta dos dedos (minha mãe liga para a médica e ela diz que esse é um dos sintomas típicos da doença). Eu sei, então, que serei contaminada e provavelmente acabarei morrendo, e resolvo fumar um último cigarro.

[corte-corrimão]

I. passa um tempo na casa da mãe e volta com um macacão-pijama felpudo, daqueles de criança. Eu acho bonitinho. Cozinhamos sopas e carne no quarto da minha mãe e depois deixamos as panelas no criado-mudo, que é também um fogão.

I. sempre indisposto comigo.

[corte-salto]

Centro da cidade, Estação Júlio Prestes, apresento a cidade a ele.

Sushi na Liberdade.

[hoje mesmo, enquanto retomo a lembrança dos sonhos, ele me disse: se eu vier morar em São Paulo, vai ser na Consolação. Eu disse: devia morar no Paraíso.]

[vazio escuro]

Eu cruzo o portão de uma festa à fantasia na Vila Madalena, aonde chegavam jovens ricos [seus corpos e roupas me diziam: somos ricos], inclusive F., que está solteira. Ando rápido, fujo para que ninguém me veja.

[corte invisível]

Perco meu celular numa festa [talvez a mesma festa da qual eu não conseguira fugir]

[corte-em-ação]

Saio atrás do uber que me levou até a festa num carro com toda a sua família de descendência nipônica. Chego a uma central de táxi para a qual ele trabalha. Ele não achou o celular. Pouco depois eu encontro o celular em casa [que é mas não é a minha casa, e sim a própria festa], no meio de roupas emboladas numa mesa de madeira.

[corte profundo]

Durmo na casa de H., uma casa que tem o teto aberto. No meio da noite, um avião passa e joga “bombinhas”, que eram como balas de revolver, sobre nós. A que cai na minha cama não explode — guardo-a e a levo pra casa.

No meu quarto, decido jogá-la no chão com força, e vejo que algo se abre nela, e em seguida acontecem três explosões pequenas. Não me machuco.

[vazio escuro]

Encontro M. [que não é M., e ela tem um filho bem pequeno de olhos claros. Elogio os olhos e ele, o bebê, diz que essa é sempre a primeira coisa que lhe dizem. Eu digo que para mim também. M. se desculpa por ter sido horrível comigo na véspera [como se ela fosse o I.]. Na noite anterior [na noite do próprio sonho] tínhamos dançado juntas, e ela disse que aquilo parecia um xaveco barato. Agora está de bom-humor, mas eu resolvo ir embora.




Honfleur (Nicolas de Staël, 1952)


outra noite

Alguém me liga da escola onde estudei e diz que houve um erro: verificaram que na verdade eu não fora aprovada em alguma matéria de exatas, e preciso cursar outra vez todo o último ano para conseguir o diploma. Alego ter Ensino Superior completo, “inclusive fiz mestrado!”, e então replicam que nada disso é válido se eu não concluir de fato aquilo que pensei ter já ter concluído. [O sonho é recorrente: me pergunto que episódio ou sequência de eventos nutriu meu inconsciente de tanto senso de impostura].

[um ponto de inflexão: uma reviravolta]

Dessa vez, no entanto, em vez de um martírio, o sonho é diferente: estou numa aula de matemática do professor Roberto [como era simpático, o professor Roberto], e tenho um insight: se eu prestar atenção desde o início, consigo aprender e, mais que isso: não ver só técnica, mas também magia na matemática.


outra noite

O fim do mundo chega num dia brumoso e, novamente, com água. Viajamos de carro pela Inglaterra, eu, meu irmão, meu pai e minha mãe. O cataclismo consiste no seguinte fato: as chuvas da noite anterior alagaram toda a região costeira do país, mas de manhã as águas não recuaram ou secaram como sempre fizeram [assim acontecia na realidade do sonho]. Tudo em volta é cinza-azulado, e intuímos que a água avançará lentamente a ponto de nos absorver. Olho pela janela e gracejo [nos sonhos sempre acho graça ou encaro de forma plácida o fim do mundo]. Meu pai e meu irmão me repreendem, ficam ofendidos com a minha leveza de espírito. Afinal, o fim do mundo chegava antes àquele lugar do mundo: o país do meu pai. Não me lembro quem guiava o carro.

[vazio escuro]

Durmo por horas a fio num quarto improvisado com cama de solteiro. Meu irmão entra, me acorda e diz, com revolta: o que te falta é fé.

[Agora não me lembro onde li recentemente: o problema do fim do mundo é que ele acontece aos poucos.]

*

O sonho de Adelia, minha mãe

[aqui é ela quem escreve]

Não sei como fui parar lá, acho que estava procurando alguém. Talvez a minha avó que talvez estivesse em algum lugar daquela avenida larga. Era noite e tinha chovido. Tentava reconhecer algum lugar mais familiar e, à medida que eu avançava, aumentava a quantidade de pessoas deitadas nas calçadas e até na rua depois do meio fio. Lembro de um carro que não podia estacionar perto da calçada porque havia muitas pessoas deitadas, cobertas, dormindo encolhidas. Eu tentava avançar até que não tinha mais espaço para andar entre as pessoas deitadas. Não havia mais ninguém caminhando pela rua escura e as pessoas deitadas estavam cobertas por uns panos que pareciam iguais e se destacavam na escuridão. Não pareciam mortas, apenas dormiam. De vez em quando algum corpo se mexia. Não fiquei assustada, apenas estranhava o silêncio, a escuridão e o mar de corpos deitados cobertos por uns panos. Não estava frio, apenas muito úmido. Um sono imenso me invadiu e acordei.

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