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Os aprendizes do fogo: alguns comentários sobre Não Vale Morrer, de Leonardo Marona

por Italo Diblasi



Ainda me lembro como se fosse ontem: estávamos no início de 2019 quando Leonardo Marona me disse que tinha começado a escrever um romance, o romance, que viria a ser, dentre outras coisas, um retrato de nossa geração. Importante frisar, de saída, este “dentre outras coisas” porque o livro que estava por vir, e que agora foi publicado, é bem mais do que isto — um retrato do que quer que seja —, mas se começo por esta referência é graças ao fato de que, naqueles dias, os dias tão distantes e até felizes de 2019, começou a circular a brincadeira, entre amigos, leitores e entusiastas, de que o Marona estava escrevendo aquilo que seria o seu Detetives Selvagens. Uma carta de amor à sua geração. As comparações deste tipo, sabemos, acabam por ser sempre um pouco bobas, mas resguardam um carinho tão profundo que até peço o favor de perdoar o exagero apaixonado. Até porque de falta de paixão ninguém poderá nos acusar. Além do mais, creio que o Marona tenha mesmo esse tamanho.


O livro, que àquela altura se chamava, ainda, Os Aprendizes do Fogo, foi publicado no último mês de março, pela incrível Macondo, com o título Não Vale Morrer. Gosto quando a morte é colocada nesse lugar um pouco constrangedor. Como se o valor valesse algo. Como se não valesse! Imaginemos que a vida não seja por si só um espetáculo autossuficiente, indulgente, cruel. Ela não é. E quão difícil admitir: quem leva o sonho verdadeiramente a sério acaba, por vezes, torcendo para acordar. E precisamente nisso a primeira grande questão do romance: a realidade bate à porta e pede passagem. Quem se equilibra demais acaba por se arrebentar. Quem solta a corda demais, se arrebenta também. É necessário zarpar para uma outra semiótica. Todo o apelo desse livro está em esfregar nas nossas caras que não sabemos, em absoluto, fazer essa passagem (para onde?). Mas que a tentativa é tão, tão, tão… que só não vale morrer. E mesmo assim não basta. Daí que todos os personagens estejam sempre por um triz, o que equivale a dizer que participam o tempo inteiro de um conforto — esse sim — desesperado, frágil e, no limite, inaceitável. Tanto que acabam sendo, em algum momento, o mesmo e nenhum. Razão pela qual Leon Trapani é um narrador que dropa a própria narrativa no meio do caminho. O tipo detestavelmente amável. Um espelho sujo e querido, que protege a autoindulgência com autoironia; outro sinal de nosso tempo.


É por isso que nesse livro tudo é urgente, mais ou menos brilhante, e ridículo também. A leitura do mundo que vemos brotar em Não Vale Morrer se dá sob o signo do desmonte, isto é, nada está necessariamente perdido, tudo está em vias de. E que coragem nos exige o chamado da vida, que é o chamado da invenção propriamente dita. Inventar é foda, quando o cansaço é a ordem do dia (outra denúncia que salta das páginas). Mais fácil seria investir num pessimismo inteligente. A literatura ocidental está repleta dele, e alguns de nós já não aguentam mais. O livro de Leonardo Marona é um atentado contra a inteligência, contra uma certa inteligência, e só admite o pessimismo “casmurro”, aquele permeado por uma ambivalência quase constrangedora: que faz a denúncia com um riso preso no canto da boca, riso que revela, antes, um nervosismo do que propriamente um deboche. O riso esquizo, disse Deleuze em certa ocasião, é o que sobressai dos grandes livros, um riso sem direção, um riso-gesto, anterior ao significado, que nos impele a ter de nos haver com ele, justamente porque mal posicionado, polissêmico. Pensamento mesmo. E há uma comédia em Não Vale Morrer, uma comédia de erros, tanto no sentido de errância (motor de toda a narrativa do Marona) quanto de fazer as coisas “erradas”, e levantar delas (com elas) as proposições que interessam à vida.


Não Vale Morrer é, em seu cerne, um livro de proposições. Enumero algumas: há, nele, a proposição de (1) uma radicalidade. E ela aparece quase tão madura que chega a nos confundir. Nós a vemos no Manifesto Livreiro (uma das partes mais bonitas do texto); na incendiária Lorena; nas referências ao AA (a moralidade, quando levada ao limite, dá a volta ao globo do sentido e se torna disruptiva pelas costas, como uma invasão à Califórnia via Pacífico); na imperiosa e triste aventura de Dino Liakos (o mais bonito dos personagens); no último e decisivo NÃO de Trapani ao alcoolismo - seu primeiro SIM, custoso e preciso. Um xadrez sem xeque, só jogo de resistência e invenção. (2) Uma responsabilidade, num sentido muito distante da responsabilidade burguesa — pautada pela esfera da segurança —, mas uma responsabilidade ancorada no valor das coisas, da vida em si, da consciência de estarmos diante (e fazendo parte) de algo tão grande que não pode ser jogado fora. Ética propriamente dita. Nós a vemos em absolutamente todo o entorno do livro, no mundo que está desenhado enquanto a narrativa dos sujeitos acontece em primeiro plano. Uma “geografia política” que é, inclusive, o ponto mais cinematográfico de Não Vale Morrer: a narrativa por trás (e no entorno) do burburinho, que compõe magistralmente a própria ação dos personagens, inevitavelmente dentro do tabuleiro (mas qual?). (3) Um romantismo tão cansado que chega a ser a última trincheira do conceito. Ele se revela nos eventos que permeiam a vida na livraria, na mesquinharia tão humana de nossos corações, nas trocas mais banais, no editor que esconde a cocaína em plena noitada, no livro da saga Star Wars que Liakos lê dentro de um estúdio. No perrengue generalizado. No absurdo amor que imprime, em Não Vale Morrer, a marca das coisas mais belas e esquecidas, ou melhor, coisas que eles querem que esqueçamos e que este livro faz questão de nos lembrar, ainda que a machadadas, ainda que permeadas por um leitmotiv mais trágico do que qualquer coisa.


A própria estrutura do livro, sua divisão em partes nas quais narrativa e narrador se transformam, aponta para uma intenção processual quase de afunilamento das coisas. Há um peso que vai se agregando à medida que o romance avança, e através do qual o livro vai se tornando mais amplo, mais político e veloz. Se a primeira parte, toda em primeira pessoa, constrói um cenário (eu ia dizer cena) literário da cidade do Rio de Janeiro, referente a seus personagens; a segunda e a terceira expandem a “paisagem” para o contexto do país, com suas quimeras e contradições, ponto em que o tal retrato geracional se torna retrato de conjuntura, fruto e denúncia do tempo que vivemos. É aqui o ponto em que o entorno se torna personagem desfocado da narrativa, reposicionando tudo e levando adiante a desventura, grave e excitante, dos personagens e do país em si. E nisso outra virtude do livro: constitui um zeitgeist dos anos 10 no Brasil, ainda que a partir de um recorte, coisa que talvez veremos com maior clareza e importância daqui a um tempo.


Se somarmos a esses fatores a impressionante qualidade de escrita e domínio de ritmo, além da inventividade narrativa que se revela, por exemplo, nos capítulos de sonhos que entrecortam parte do romance e compõem, quase como negativos de fotografias, o imaginário da trama, temos todos os elementos para dizer, sem medo, tratar-se de um grande livro. Coisa curiosa se considerarmos que a obra de Leonardo Marona, até aqui, desdenhava e fugia de qualquer ideia cristalizada de “grande”, essa categoria um pouco mofada, investindo numa proposição das coisas menores (tão valiosas ao seu modo). Entretanto, creio poder arriscar que Não Vale Morrer vai sem medo ao grande, como o tempo que estamos vivendo exige, sem mesuras e manobras. É, por isso, um livro que encara de frente o desafio de responder ao tamanho de nosso buraco. These violent delights have violent ends. Não é à toa que, como se pode ver ao final, acaba por ser uma espécie de Brás Cubas pervertido, indo de encontro a uma referência canônica de nossa literatura como último gesto trickster, quase que dizendo “é aqui que me encontro”, ou “você pode me ler por aqui também”.


A literatura, não podemos esquecer, é um campo de proposição de Pensamento, e esse livro não falha em sê-lo. O tipo de coisa que você termina de ler torcendo para que outras pessoas o façam, torcendo para falar sobre ela e com vontade de escrever a respeito. Escrever sobre algo é ler aquilo de outra forma. Não Vale Morrer é um livro para ser relido. Fico pensando no que ele dirá daqui a um tempo. Sinto que estaremos cada vez mais sem munição. Por isso, será necessário retornar ao Marona para aprender a morrer melhor.

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