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Mais ao sul do sul da América

dois poemas inéditos de Julia de Souza



São João, 1961, de Alberto da Veiga Guignard





Mais ao sul do sul da América


Uma noite por semana cantamos juntos

o fim do mundo — que certamente começará

de dia, mais aflito que os meus sonhos

em que observo pela janela do carro

com um sorriso no canto

tudo aos poucos se desesperando:


é bonito, as árvores dançam como nunca,

nuas, a chuva já não é uma estrondosa

ou enigmática chuva, mas a própria

vigência — ou, como dizem

os surfistas, um estilo de vida.


Mas não, o fim do mundo ainda não é a voga

caso o fosse, teria sido anunciado nas ondas

como fez Orson Welles

é agora é agora,

a invasão a expulsão

empunhem as câmeras subam nos telhados

não, metam-se no metrô, atenção

evitar bicicletas, eram mentira as montanhas

(apesar de sabermos que o fim do mundo

começará pelas canelas).


E haverá mato, sim, mas mato

em estado de espera:

o poeta Eduardo disse que mais ao sul

do sul da América o fim será mais longo,

o que pode ser vantajoso

para os últimos festejos.


E haverá rojões e foguetes cor-de-rosa

e teremos que abraçar os cachorros

e escutar pela última vez os discos

e talvez não haja tempo para poemas

mas ainda a tempo você verá

a graça e o desarranjo da garota

quando prende os cabelos

engolindo a chuva.




__________________________





Estio


Você brada um poema triste

por trás a madeira da escada estala

e me avisa que as coisas

são elas mesmas feitas de coisas

que não são propriamente coisas.


Você brada um poema triste,

um réquiem, eu digo,

não grite: é um poema triste

e a madeira da escada estala.


É cedo demais para as lágrimas,

eu penso, eu penso em dizer

e digo, e você enrubesce e então

chora sua melhor lágrima.


Agora estalam os livros deitados

na cama, algo estala sem vento

sem grito algo estala e me assusto

sem você me assusto

algo me assusta sem lágrima





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