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Frank O’Hara no centro de toda a beleza

Atualizado: 14 de set. de 2020

por Italo Diblasi



O poeta Frank O'Hara. Fonte: Pinterest



(…)

And here I am, the center of all beauty! writing these poems! Imagine!

(Frank O’Hara, autobiographia literaria)


É uma estranha alegria, a poesia. Algo como se perceber dentro de um pesadelo: você ainda não é capaz de acordar, mas já sabe que está dormindo, que a coisa toda tende a passar. Isso não chega a ser confortante, mas já não é desesperador. Tampouco almejamos conforto qualquer. Partamos do seguinte princípio: para os bichos da linguagem só há o vazio, algo tão pequeno e decisivo que requer toda uma vida de invenção. É preciso erigir sobre ele. E que trabalho nos exige a aventura, construir uma paisagem à espera de um dilúvio. A tarefa pode parecer hercúlea – e é – mas é possível que haja beleza no caminho. Encontrar beleza no caminho, isto é, no pesadelo, e evidenciá-la é o que alguns chamariam “poesia”. E não é por capricho que digo “alguns”, mas porque tanta coisa passa sob o rótulo do “belo” que é preciso, talvez, nos livrar-nos das significações em prol de uma presentificação, um estado de paroxismo. Creio que seja isso o que sobressai na poesia de Frank O’Hara, e gostaria de arriscar algumas ideias em torno dela.


De saída, há em Frank O’Hara algo que nos assombra à primeira leitura: uma produção de intensidade sobre as coisas, mesmo as menores delas, como se o poema fosse uma lupa agravando as cenas, os gestos, agora um tanto miraculosos, importantes. Nada se perde àqueles que notam com atenção o cinema sonso da existência. “Os Piratas de Pittsburgh gritam porque venceram/ e em certo sentido estamos todos vencendo/ estamos vivos”, anota no poema Steps, que não passa de uma descrição da rua num dia comum. Como são vivas as coisas, quando consideradas com ênfase! Frank O’Hara escreve com um marca-texto sobre o tecido das coisas, destacando o que nos acostumamos a não notar, conferindo fluorescência aos detalhes da paisagem. Não é à toa que o neon seja um elemento tão presente em seus escritos. Trata-se de um colecionador de nadas. Um poeta curador.


A este respeito, numa publicação de 1960 intitulada The New American Poetry, Frank diz: “O que está acontecendo comigo, permitidas as mentiras e exageros que tento evitar, vai para os meus poemas. Eu não acredito que minhas experiências ganhem clareza ou beleza por mérito meu ou de qualquer outra pessoa, elas simplesmente estão lá seja qual for a forma com que consigo encontrá-las. Minha postura se encontra na encruzilhada onde aquilo o que sei e não consigo ter encontra aquilo que restou do que eu sei e posso suportar sem ódio. Pode ser que a poesia torne os eventos nebulosos da vida tangíveis a mim e restaure os seus detalhes. Ou, ao contrário, que a poesia traga à tona a qualidade intangível dos incidentes que são tão concretos e circunstanciais. Ou cada qual em uma situação específica, ou ambos ao mesmo tempo”.

Não causa espanto o fato de que um ano antes, em 1959, Frank tenha escrito Personismo: um manifesto, texto que se propunha a um só tempo debochar do formalismo “iluminado” e virtuoso de certa poesia majoritária, e conclamar um retorno à descrição livre e atenta das coisas, devolvendo ao mundo o protagonismo no poema, contrariando certo ensimesmamento da ars poética. Ainda que seja comumente associado ao Expressionismo Abstrato, parece ser de Rimbaud que o poeta toma esta lição. E é também em sua predileção por questões como a paixão & seus melindres que vemos aflorar o enfant terrible em seus poemas, seja num bate-boca surreal com o sol ou no acerto de contas com os Mouros quinhentos anos depois. A poesia de Frank O’hara está sempre buscando se haver com mundo, a História, a própria linguagem.

E há uma afirmação trágica da vida (no sentido grego da coisa) nessa operação de dar foco àquilo que ele chamou de qualidade intangível dos incidentes. Tudo é perfeitamente real na medida em que participa. Conjugar passionalmente as camadas da paisagem. O que podemos entender por presentificação, que é menos uma retenção das coisas no tempo do que uma fratura temporal direcionada a elas, constituída sobre elas. Entra em jogo o regime de sentido no cerne da própria linguagem, produzindo algo que, na falta de um termo melhor, aproximamos de efeito. Poesia e paroxismo. Daí a aproximação com o cinema, imagem-tempo, trazendo à tona a ideia de acontecimento. É nela que opera a poesia de Frank O’Hara, produzindo o acontecimento ao passo em que se alimenta dele. Nós passearemos como poodles, “and the landscape will do/ us some strange favour when/ we look back at each other/ anxiously”.


A insistência na ideia de paisagem, que é, em última instância, a insistência na noção de cena, talvez encontre raízes no fato de que Frank era um Crítico de Arte profundamente envolvido com as discussões que estavam em voga no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, onde trabalhava. A presença deste universo em seus poemas se dá não apenas do ponto de vista do método, mas também do tema. Em Why am I not a painter, poema escrito a partir da observação do trabalho de Mike Goldberg, seu amigo e pintor ligado ao Expressionismo abstrato, O’Hara chega a aproximar o ato de escrever e pintar justamente pelo procedimento de presentificação. Depois, traça uma diferença bastante significativa quanto ao estatuto da palavra. Ao pensar na cor “laranja”, escreve uma linha sobre ela. Depois outra, e outra, e finalmente outra, enchendo uma página de palavras. E poderia escrever inúmeras páginas que tratassem do laranja sem que tivessem a cor laranja. A linha, em última instância, é um instrumento que escapa à escrita, pois é constituída de palavras, e não de cores, por exemplo. Não são laranjas as frases sobre a cor laranja, de modo que é preciso escrever apesar de. Há uma “falha” fundante na escrita que a direciona contra a representação, em favor da evocação. Neste mesmo poema chega a dizer “eu sou um verdadeiro poeta”, pois reuniu as páginas que havia escrito e lhes deu o título de “laranjas”, enquanto que o quadro laranja de Goldberg tinha por título “sardinhas”. A cisão da linguagem escrita é o mecanismo de sua libertação, recurso pelo qual atinge o coração do acontecimento, o “centro de toda a beleza”. O berço do poema.


É por isso que o ato de evocar implica uma celebração, um agravamento. Reside nisso cerne da poesia de Frank O’Hara: dar a ver algo sem propriamente mostrar, pelo “à tona”, o que faz dela uma poesia de encantamento e espanto, fluxo e estancamento: acontecer. “Você está sorrindo, você está esvaziando o mundo/ para que possamos estar a sós”. E então vemos uma costura de signos encadeados por palavras, a vocação imagética delas, direcionando nossa atenção ao fato de que as coisas acontecem, agora. Meditations in a Emergency. Com a poesia de um Frank O’Hara, a vida sai sempre vencendo.


Ainda é preciso mais. E quão irônico pode ser o fato de que tal poeta tenha morrido aos 40 anos, vítima de um atropelamento. A coisa é tão banal que até faz sentido. “nada poderá acontecer/ senão agora”. Ou: “a culpa é do arquiteto”, como mais de uma vez chegou a declarar em poemas, sempre eles, os projetores das coisas que nos circundam, nos abraçam. As gaivotas, o neon, o símbolo da Pepsi espalhado pela cidade. Bocas de todos os formatos e pensamentos tão negros quanto a noite. Um inventário de signos na paisagem chamuscada é o que nos deixam seus poemas, como lembrete terrível de um pequeno e único milagre: estar aqui. É uma estranha alegria, a poesia. O vazio se impõe; é nossa única garantia. Celebremos.

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