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Feitiços do tempo

Atualizado: 13 de mar. de 2023

por André de Lemos Freixo (autor convidado)




Acabou o Carnaval. Foto: André de Lemos Freixo



Eram 13:38. Lembro que essa foi a última vez que eu pensei sobre o tempo antes de entrar. Último registro de memória que fiz do tempo do relógio, digo. O tempo dos homens, da abstração e da ordem. Tempo social mais ou menos compartilhado por todos, imposto, obrigatório. Tempo do trabalho, do estudo, do descanso… tudo planejado, tudo previsto e calculado ali também. Mas ao mesmo tempo não; não ali.


O sol quente ardia na pele. Não havia uma nuvem no céu. Nenhuma. Maldito tempo seco. Tempo… Fazia tempo que não passava por isso. E eu, por um segundo, imaginei um descanso daquele calvário sob o sol. Um oásis, talvez… Ousei entrar. Passei pela porta. Tudo girava, desordem, redemoinho, mas não encontro libertação. A jornada de “descanso” se iniciava com violência. Logo fui constrangido a me despir de minha dignidade. A força é bruta, é policial e armada. Ela me alertava de tudo, enquanto me privava de tudo, e eu esvaziava meus bolsos. A tudo revistava. “Para sua própria segurança”, dizia a voz rouca de um homem de farda.


Após o ritual de iniciação, seguido de perto por muitas outras pessoas, o mundo que conhecíamos se desfez quase integralmente. A partir de agora, tudo era novo e frio. O suor lentamente secou em mim. Todos os direitos também. Secando, suspensos como num varal ao sabor do tempo. As regras conhecidas do lado de fora também secaram sobre nós e com elas o tempo.


O registro desta chegada, deste nascimento natimorto e bastardo, é feito em papel vagabundo. Do tipo daquelas vias de pagamento com cartão, descartáveis hora ou outra. Papelzinho desgraçado, levemente carbonizado e impresso numa máquina impessoal. Eu não sabia disso, mas esse papelzinho apagaria meu nome. Guardou meu número e, com ele, a minha nova identidade: A626. Testemunho e guarida do único direito que me resta, ser ali mais um dejeto zumbi. Guarda a minha vez, temporariamente, se apaga e desfaz com o tempo, quem diria…


Encostados na parede, quase em silêncio, observamos atônitos, um a um, o movimento ao nosso redor. Olhos vazios, olhares perdidos. Emulamos, copiamos, sussurramos, obedecemos aos imperativos do lugar. Tímidos murmúrios de indignação dos recém-chegados encontram apenas os ouvidos moucos dos agentes ali dispersos. Sua indiferença é absolutamente brutal.


Não há janelas em lugar algum, apenas as telas dos computadores e máquinas inteligentes. As paredes separam a todos. Escadas, degraus, biombos, segredos e máquinas “entre-as-gentes”. Tudo é “smart” ali dentro. A distância da porta de entrada afasta os incautos de sua ingênua noção de que lá fora o tempo não para. A mera abstração da luz ou escuridão na rua, se há sol ou lua, aliena. Nada aqui dentro é orgânico ou natural. A luz é fria, branca, absoluta, universal. A decoração é feita com simulacros de plástico, pequenas plantas de um verde-musgo artificial. É tudo tão triste. O cheiro no ar é nauseabundo. Os sons se misturam numa cacofonia interminável e indecifrável. Morte em vida.


Não há relógios. Não se pode consultar os “smartphones”, nem a internet. Há apenas telas com números e seu apito sonoro. Toda simetria ali é falsa. A ordem dos números não obedece qualquer regra cronológica, alfabética ou aritmética. Não… A ordem do tempo ali é outra; uma simultaneidade opressora. O dia não possui mais suas 24 horas, mas irreais 30 horas. A lógica, os imperativos e os valores… Tudo ali opera sob regras próprias, um tipo de absolutismo autoritário. Torna todos nós peças numa engrenagem sinistra. Como pequenas pecinhas que fazem um imenso relógio funcionar. Não sabemos disso, claro. O relógio não funciona sozinho, nem por conta própria. Ele depende de suas obedientes pecinhas. Que devem cumprir seu papel com diligência e nenhuma vontade própria. Cada uma dessas peças precisa estar em absoluta sincronia com o restante da máquina. Ademais, o relógio não marca as horas para si, mas sim para o seu dono. E ali dentro, o tempo é muito mais do que relativo. É reativo, é privativo, premium, personalité… E ele não se mede realmente por horas, minutos ou segundos. Não ali.


O aviso sonoro, aguardado ansiosamente, é o anúncio. A cada novo número, um passo dessa gente rumo ao seu destino. Não há qualquer semblante de esperança, apenas uma expectativa e um gesto neurótico e repetitivo. Olhamos mecanicamente para o papelzinho maldito em busca de nossa vez, nossa identidade descartável. Lamentamos, entre trocas de olhares culpados e uma porca resignação. A cada sinal, de novo e de novo, o ritual se repetia…


O ambiente é inóspito, nada hospitaleiro, a espera nos sufoca. Olhos eletrônicos por toda parte, apontados para todas as direções. Somos todos suspeitos. Todos culpados, na mira do grande irmão nesta linha de desmontagem e desumanização. O desalento toma conta de alguém, que subitamente puxa assunto:


– Ó… lá vai mais um “P”. Esse “P” é de que? – Hum? “P”? – Sim, sim. Tem lá no papelzinho deles… “P” e um número. Olha a tela aqui, ó: “P205”. – Ah! Bom, pela idade da tiazinha, deve ser prioridade, certo? – Isso, prioridade… “Pri-o-ri-da-de”. Palavra bonita. Não vejo a hora de me tornar prioridade também, sabe? Questão de cidadania, né? – É…


Mas a espera é tortuosa. E quando somos reduzidos a um mero rebanho, parece que pensamos a lápis… Prioridade atrás de prioridade, passam por todos em direção à chegada. A ânsia nos consome e a raiva nubla tudo. A vista escurece. Quanto mais próximos da linha final, menos solidários e mais humanos.


– Porra! Mas quantas prioridades existem aqui? – Pelo visto, muitas… – Quantos estão trabalhando lá na frente? – Pelo visto, poucos. Mas os biombos fecham a nossa visão. Não temos como ver adiante. – E a minha cidadania? – Hum? – Essa prioridade já está virando privilégio. Quero privilégio também, né, não?


Mais humanos. Mais egoístas. O “P” prioridade cidadã virou “P” de privilégio rápido. O “agitador” insuflou a multidão em linha com piadinhas e pequenas tiradas sarcásticas para que todos ouvissem. Logo foi lembrado pela segurança que o único direito que lhe cabe ali é o de “permanecer calado”. E que se continuassem as insinuações e piadinhas ele seria convidado a se retirar dali.


Enquanto eu observava o andar das coisas, percebia que o “P” era, de fato, indicativo de prioridade. Mas a cada nova “prioridade”, o mesmo protocolo se repetia. Entendi, finalmente, que a prioridade não era uma questão de cidadania. Não eram prioridades porque eram idosos, acima dos 60 anos, aguardando. Nem por ser gesto de fidelidade a alguma lei do mundo lá de fora. Foi quando entendi, pela primeira vez, que o tempo não significa nada ali dentro. Nem o tempo, nem a lei, nem os direitos, menos ainda a tal da cidadania. Eram “P”, porque prioridades, isso é certo. Mas prioridades por quê? E, acima de tudo, para quem? Prioridades porque eles são os alvos prioritários do tipo de negócio que se faz ali naquele pináculo do templo, para onde pobres-diabos são conduzidos à tentação. Para quem? Bom… Ouve-se tudo na medida em que nos aproximamos da linha de chegada:


– Bom dia, D. Genésia. Como a senhora está hoje? – Tudo bem, meu anjo. E c’ocê? – Tudo ótimo! Dona Genésia, em que posso lhe ajudar? – Tenho que pagar essas continhas, bem. – Certo, certo. A senhora pretende pagar em dinheiro? Se a senhora for correntista e tiver o nosso cartão, pode pagar com ele. – Sou sim. Vou pagar pelo cartão. – Ótimo. Só um segundinho. Dona Genésia, posso ver aqui pelo meu sistema que a senhora tem direito a um empréstimo de até 5 mil reais. – Minha filha, não tenho como pagar empréstimo não. – Dona Genésia a senhora é casada? – Viúva, misifia. – A senhora tem filhos? – Tenho osfii e os neto… Tudo mora cumigo lá na roça. – Então Dona Genésia, imagina só se alguma coisa acontece com a senhora? Deus me livre! – Pois é, a senhora tem que pensar nos seus filhos e netos, o que será deles se a senhora não estiver por perto? – É verdade, misifia. – Por sorte, como sou eu que estou atendendo a senhora, posso estar fazendo para senhora um seguro de vida superbaratinho que a senhora vai amar. – Ô moça, eu não tenho muito dinheiro não. Ganho só a minha aposentadoria de um salári-mímo. Não posso pagar esse tanto de coisa não… mal dá pra pagar as conta… – Não se preocupe, Dona Genésia, aqui a senhora pode tudo! As prestações são mínimas e a taxa de juros é a menor do mercado. A concorrência não consegue nem acompanhar a gente. Tudo parceladinho, em débito automático, a senhora não vai sentir. – Ôxe… Sei não, minina… – Confia em mim, Dona Genésia, pensa na segurança econômica da sua família! – Segurança? É… Eu amo muito minha família. Família é tudo, né, bem? – É sim, por isso aqui no banco todos somos como uma grande família que cuida uns dos outros e nos preocupamos com a senhora e seus entes queridos, claro. – Tá bom, meu anjo. Pode fazer.


E assim se repetiu algumas vezes. Todo “P” que chegava ao seu destino, uma prioridade diferente era empurrada goela a baixo. Esse “P” pode ser de peixinho, sabe? Daqueles que pescamos aos baldes com isca barata. Prioridades sendo prioridades para esse mercado de venda de serviços e produtos para pessoas simples e cansadas. Quando não tão simples, ou nem tão ingênuas, muda-se o tratamento, mas permanece a lógica de um balcão de agiotagem. Empurrando serviços, produtos, empréstimos, seguros, planos de investimento ou finanças etc… A única prioridade é bater meta.


Quando chega a minha vez, ouço o sinal, vejo na tela “A626”. Chego ao balcão e resolvo rápido. Cadastro de biometria. Desbloqueio de cartão. Fazer senha nova. Tudo só poderia ser feito ali, no caixa, presencialmente, passando por uma revista completa, senha, fila e as “prioridades”. Tudo para que eu pudesse me libertar e usar o banco online, o app e a segurança de um “token”. Lembrei do início da jornada, quando o segurança disse que era tudo “para minha própria segurança”. Mas eles me protegem do que? De quem? E quem me protege deles?


Resignado com a situação, aceito que essa jornada de submissão aos poderes do mercado e do capital financeiro são humilhações que passamos quando nos despimos de qualquer vestígio de dignidade humana, direitos ou cidadania, e adentramos no único solo sagrado que existe no mundo de hoje: a propriedade privada. Nos tornamos uma peça numa engrenagem que nos usa e nos explora, até secarmos. Depois nos descartam. Nosso tempo não significa nada ali; não vale nada. Nem o tempo, nem as vidas, nem nada. Não temos direitos. Não temos um nome. Não somos ninguém. Apenas um “token” humano… Como correntista, ou um CPF, uma senha, uma conta, P de “peixinhos”…


Dirijo-me à porta giratória para voltar ao mundo. A agência estava bastante vazia. Tudo escuro do lado de fora. Saio em silêncio e respiro aliviado, quando, finalmente, percebo que já são 18:40. A temperatura amena do final da tarde me consola. A eternidade não poderia demorar mais do que essa jornada. No inferno, o tempo não se mede com minutos ou segundos. No banco, algo entre o purgatório e o inferno, também não. Feitiços do tempo.



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André de Lemos Freixo é um andarilho e um fabulador. É professor, leitor, baixista, pai, esposo e se aventura quixotescamente pelas artes. Publicou "[Porno]Graphic Novel e Outras Assombrações de um Andarilho", seu primeiro livro (antologia) de textos ficcionais, em 2023 (Editora e-Galáxia).


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