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Cabinda guia: André Vargas em La Rochelle

por Flávio Morgado



O Atlântico não é Pacífico. Grita o continente. Ou grita o desterro? Seja qual for, nessa paúra que nos confunde como lar a encruzilhada de tantas diásporas, foi esse um dos recados do artista André Vargas à La Rochelle, cidade francesa que esteve em residência artística nos últimos quatro meses.

O atlântico não é pacífico (2023). Acrílica sobre tecido



Em um programa que passou pela parceria entre a Galeria Vermelho, o Consulado da França em São Paulo e o Centre Intermodes da França, o artista, nascido em 1986 em Cabo Frio, no Rio de Janeiro, pode pela primeira vez expor seu trabalho em uma produção inteiramente feita em uma vivência internacional. E se afirmo este ineditismo em seu trabalho, ainda que recente, mas não menos promissor, é porque fiz questão de acompanhar cada um desses passos, com a curiosidade de quem reconhece dois aspectos fundamentais no trabalho de André, e os quais pretendo ter como alicerce desse breve texto: a fidelidade espiritual e o improviso de enfrentamento.


Conheço André Vargas de longa data, mas só recentemente nos aproximamos, quando com alguma sabedoria, um amigo me mostrou seu trabalho. Fazia tempo que não olhava com entusiasmo a um artista, e não necessariamente um objeto de arte, mas ao desdobramento, ao porvir que está posto nesse trabalho. E, de antemão, já antecipo aqui minha tese: André é um poeta.


E definir um trabalho de artes visuais, que tem como centralidade a palavra, como um trabalho poético é fácil, e a própria dinâmica verbal proposta por André Vargas é um índice de seu trato fino com a palavra, Mas não é a isso que me atenho, embora o uso da palavra, constantemente em artes visuais possa incorrer em perigos, a fluidez com isso se impõe em seu processo é o sinal claro de que é o seu ponto de partida; no entanto, o que me salta aos olhos é o que de maneira sutil compõe esse devir-poeta.



A doré as almas (2023). Gravação a laser e acrílica sobre banco de madeira


Havia pouco que tinha voltado da residência, quando marcamos uma cerveja pela Tijuca. Sempre sereno, algo raro a um ori de Xangô, André me diz que não havia uma premissa ou vontade prévia de expressão antes de chegar até La Rochelle, mas uma guiança: “eu sabia que era para abrir uma gira de preto-velho lá!”. E imediatamente passa a me explicar a composição do belíssimo trabalho “A doré as almas”, como quem em uma primeira fagulha, porém sempre fiel ao seu malabarismo linguístico, o artista, em um mesmo gesto-frase-grito-revisão, propõe a releitura da ancestral saudação ao povo das almas, os pretos-velhos: em um banco de terreiro, a inscrição “adore as almas” saúda os donos do trono, mas a inflexão linguística que há numa polissemia que nos leva a uma outra origem possível da palavra, “doure as armas!”, é o rastro desse lugar obstinado de um improviso de enfrentamento que há em sua forja.


André reiterou várias vezes a dificuldade na comunicação lá, mas em momento algum isso impede que seu primeiro trabalho, seu cartão de visitas, seja a proposição dessa encruzilhada-verso que assenta às santas almas benditas e rememora um grito de luta que parece subscrever todo seu percurso (sempre devoto de Ogum). Serenidade com faca amolada, até as ervas tem a sua medida certa de cura ou veneno. Como o trabalho é a quem lê, André devolve à outra língua essa indigestão – encontra uma palavra em comum (adore) e guarda a metáfora em suspensão – ou feitiço.



Grita (2023). Acrílica sobre garrafa de rum



Ou outro de seus gestos, que reitera seu devir-poeta, desta vez numa escrita de rasura, outra característica que se desdobra em seu trabalho com muita fluidez, seja na rasura do espaço público, como com as performances “Todos os malês virão para o bem (2022)”, da Série Proféticas, ou “Queima de estoque” (2023), mas no caso de “Grita” (2023), há a escolha consciente de um objeto de conotação colonial, como o rum “Negrita” (bebida comum entre os piratas, e vale lembrar que o Corso foi uma das atividades primeiras na expansão marítima francesa), que com sua garrafa embebida em acrílica preta, deixando entrever apenas a sílabas “grita”, é a reinvenção possível, de uma mão atlântica (avisada desde o princípio que não era pacífica), cuja fidelidade incontornável só pode “empretecer” ao que toca, e nesse signo, redescobre, mais uma vez, o valor da devolução furiosa de uma revisão histórica: um molotov preto com a inscrição grita é o símbolo dessa lealdade de guerra e desse improviso no enfrentamento. O que derem, será devolvido como merecem: é isso que me faz querer ver seu trabalho em todos os cantos. Porque é fundamentalmente sobre o dialógico, o combativo e o revisto que alçam voo seus objetos.



L'ESPÉRANCE Ç'EST UNE DOULEUR (2023). Tinta acrílica sobre tecido



Perfomance "Queima de estoque" (2023), Praça Saens Pena, Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro. Fotografia: Rafael Salim




Todos os malês virão para o bem (2022)”, perfomance na Gamboa, região central do Rio de Janeiro. Fotografia: Silvana Marcelina


La Rochelle é uma comuna francesa relativamente próxima de Paris, o que a dá um certo ar metropolitano, como a de construir iniciativas de intercâmbio como essa, no entanto, que pese aqui algum bairrismo, mesmo Paris, dado o bolor que envolvem as questões europeias hoje em dia, para certos enfrentamentos ainda não está acostumada. Convocar a fala de um imigrante em solo europeu é quase que naturalmente convocar a rebelião de todos os signos que erigem aquela sociedade branca e burguesa. Daí que assombre, como se deve, a faixa erguida em prédio histórico da cidade, nela se lê: “L'ESPÉRANCE Ç'EST UNE DOULEUR “ (“a esperança é uma dor”). André Vargas faz referência ao primeiro navio negreiro francês que atracou no Brasil. Irônico nome a um “tumbeiro”, esperança só pode ser uma dor – que reescrita quatrocentos anos depois, só pode revelar o óbvio, sua ubíqua ordem e presença.


Deem-lhe um muro, ele devolve o soco.



Quebrando quebranto da beira do mar (2023). Acrílica sobre tecido



Pois que ao cabo disso tudo, na rota de seus signos, muitos de uma serenidade majestosa, fico com a ternura de ”Saravá, os pretos velhos! Saravá, meus ancestrais! (2023)”, que escrevendo a café, como repõe liricamente o que antes foi o objeto da faina injusta, André alude aos pretos-velhos não só como as entidades conselheiras, comuns em terreiros de Umbanda pelo país, muitas vezes cumprindo as demandas de uma terapia aos mais pobres, as santas almas saíram do cativeiro para a caridade de um ouvido sempre atento; mas não é só a essa fidelidade espiritual seu tributo, até porque o que identifico como espiritual, embora seja sua expressão marcada pelo terreiro, é de um espiritual como obstinação, uma fidelidade que se sustenta em não andar fora de uma proposição de seu próprio devir, de uma construção artística que entende a urgência de sua fala como uma missão de devoção e luta.


O que está em jogo nesse trabalho é essa urgência, em todas as suas escolhas. Como, por exemplo, a inscrição do nome de seus ancestrais, outrora escravizados, mas sempre atentos a não esquecer Cabinda, como as entidades que o guiam. Floriano, seu avô, ex-escravizado e colono em uma fazenda de café em Minas Gerais é agora uma guiança. E o que mais seria? Se quem lhe deita a cabeça, além de fúria justa e sanha de genealogia, como poucos negros no Brasil conseguem desenhar, o repõe em uma fidelidade que atravessa o oceano para devolver tua memória aguerrida? Temos aí, numa tacada só, um gesto de amor, um gesto histórico, um gesto de rebeldia, e por que não, um gesto de ternura?




Saravá, os pretos velhos! Saravá, meus ancestrais! (2023). Café e lápis sobre algodão cru.



Como quem caminha com o que produz no pescoço, André não desvencilha do trabalho nem quando a ele posa. Seu olhar em direção à genealogia, que o acolhe num desenho de casa, ao redor de sua silhueta relaxada, é quase como a devolução desse afago familiar. Ou um dengo – mas nem sempre tão pacífico.

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