Civilização 102
eu quero viver, ela diria
eu ofereço a você
os freios de emergência
eu ofereço em um buquê
os uivos dos cadáveres
os cânticos seculares
e esconderijos cobertos de pólvora
eu ofereço canções e panfletos
a bagunça e o cheiro de suor no rosto
eu ofereço a nostalgia do primeiro jardim
o paciente zero
o primeiro sopro em seu cabelo
eu não vou durar muito, ela diria
os jovens já não são tão jovens agora
o paraíso não está perto
E eu me enchi de melancolia & vertentes demais
veja: este livro que você está lendo
não vai escovar seu cabelo à noite
ou te beijar para dormir
não vence a luta contra o homem mais fraco desta encruzilhada
ele poderia rasgá-lo
em um segundo, se quisesse
homens e mulheres passaram por mim
como se fosse a última chance
e talvez fosse
os freios já estão sujos e pegajosos
E as mãos - de Shanghai até aqui -
marcaram com a digital todos os cabos de aço
mas eu quero viver, ela diria
as partículas estão se movendo sem parar
e você sempre abrirá seus olhos novamente
eu acho que ela diria
às vezes nos beijamos com os olhos abertos
e eu consigo ver o centro disso
nós estamos nos movendo entre fábricas e máquinas à vapor
que são como os esqueletos
que usamos para erguer essa esfinge
e às vezes o tempo passa
como se estivéssemos presos como gárgulas
após a explosão de um vulcão furioso
mas eu queria viver, ela diria
embora saiba que não dure
eu também quero tocar
a pedra angular
dessa imensa vespa
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ALGO SOBRE A SINCRONIA
Para Cris
e olhamos pela janela
a cachorra lambendo minhas pernas
enquanto
eu te via de colete vermelho, descalça
a chuva escorrendo pela varanda
e você me dizia algo sobre a sincronia
e o romantismo e como não escapamos dele
já eu respondia com a dialética e as escolhas dos ministérios
os desastres e má estrela
mas você disse que devemos ser otimistas
já eu disse: talvez não
conversamos sobre amigos antigos
como eles estão espalhados agora
fracos mudos
levados à loucura
com uma fome que corre nas veias
nas mãos
lembramos da fome, mas não sentimos falta
este oco
e disse: ninguém aqui vai vagar para baixo
talvez para os lados
você sempre brilha quando falamos do amor
como tentou se proteger e não deu
mas ninguém aqui vai vagar para baixo
eu falo como encontrei minha casa
e você se prepara para uma viagem
e a chuva escorre a cachorra late
mas o brilho nos seus olhos é bonito
gigante
Ana Botner nasceu no Rio de Janeiro em dezembro de 1999. É poeta e graduanda de Ciência Política na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Seu primeiro livro, Andar Barato, foi lançado pela Urutau em 2021.
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