por Júlia Gonçalves
(Diógenes sentado em seu barril cercado por cães. Pintura de Jean-Léon Gérômede 1860)
Amadurecer é aprender a deixar coisas pra trás. Quando a gente é criança temos todas as possibilidades, tudo está ao alcance da mão. Somos cozinheiros, astronautas, cientistas, engenheiros, mães, pais, filhos, mágicos, água-viva, Mordecai, quebra-cabeça. Daí a gente cresce e os caminhos se afunilam: agora temos que escolher entre ser água-viva ou filho, mágico ou engenheiro. Pra escolher ser cientista, temos que deixar algo pra trás. Pra escolher ser pintora, deixei de ser arquiteta; pra escolher estar com minha família por um tempo deixei de estar só; pra comer macarrão deixo de comer pão, e assim por diante. Toda escolha implica em escolher não preencher esse vazio com outras coisas. Dói, a gente quer ter tudo, a gente deixa um rastro de migalhas pra infância, desapegar do passado é difícil porque quando aprendemos a finalmente nos adequar as condições e gostar delas somos obrigados a deixar de ser, mas quanto mais isso for visto como uma derrota ao invés de um ganho, mais difícil o processo se torna. Parece cruel, mas é dinâmico. Não se afeiçoar demais as derrotas é importante, mas não se afeiçoar demais as conquistas também é. A gente tem que aprender a largar o osso porque ele é osso e não carne, já foi comido, já deu. É importante perder o medo de caçar coisas novas e isso só é possível quando aceitamos o processo de amadurecimento. Pra chegar no arcano X precisamos sobreviver ao arcano IX, pra Roda da Fortuna girar é preciso viver o desprendimento do Eremita. E ele é velho. O Eremita larga tudo pra se isolar nas montanhas. Consigo ele carrega só essa luminária que, em breve, vai largar também. As vezes os outros vão tentar ajudar, mas ao Eremita os outros mais atrapalham do que ajudam: ele precisa chegar ao cume da montanha sozinho. Aliás, hoje os nossos velhos estão mais solitários do que nunca com a condição de grupo de risco. O velho não deixa um fio preso de onde saiu pra traçar o caminho de volta. A gente só consegue sair de um labirinto quando desiste de achar a saída. A boa notícia é: você pode escolher. O sacrifício é inevitável, mas pelo menos você escolhe do que abrir mão e pra onde mirar. O arcano 9 na Árvore da Vida cabalística é o caminho que liga o Sol (Tipharet) a Jupiter (Chesed). Abandona o que reluz, vira de costas pro brilho do sol e sua beleza pra andar em direção a misericórdia e a entender sua verdadeira integridade. Carrega consigo a luminária, ainda carrega um pouco de sol, mas pra iluminar as brechas onde o sol não alcança por si só. Se recolhe a escuridão trazendo a luz generosa, abre o caminho pra aqueles que ainda irão escalar a mesma montanha - não a toa muitos modelos renascentistas do taro chamam o arcano 9 de Diógenes. A busca do Eremita é solitária e legítima, como de certa forma o que muitos estamos sendo obrigados a fazer durante esse período de isolamento. Revelar os segredos de si, entrar nas cavernas, encarar a solidão e dela beber. Tal qual a velhice, a solidão não é simpática, não é confortável, não é glamurosa - e há os que aí pintam glamour: estão errados. É importante, é necessária. Um idoso que pensa que está só porque foi abandonado, mas esquece - essa magia cruel do tempo - que o isolamento é uma postura de cuidado da família. Estamos descobrindo que se ausentar da companhia dos que amamos é uma outra forma de amor. Difícil, e talvez por isso mais valiosa. O desconforto nos cria cascas, fugir dele nos torna moles. Ninguém é criança pra sempre, mas até que tem sua beleza - não glamour, beleza. A verdade é lindíssima, há de se perder o medo dela.
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