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A impossibilidade do amor no cinema asiático: Wong Kar-Wai e Tsai Ming-liang em foco

por Maria Cabianca



Pra viver no teu tempo é que eu faço

viagens no espaço,

de dentro de mim.

Das conjunções improváveis

De órbitas instáveis

é que eu me mantenho

E venho arrimado nuns versos,

tropeçando universos,

Pra achar-te no fim

deste tempo cansado

de dentro de mim.

“Tempo e Espaço”, Paulo Vanzolini


Wong Kar-Wai e Tsai Ming-liang são dois dos nomes mais interessantes do cinema asiático contemporâneo. Nascidos com apenas um ano de diferença, compartilham a origem chinesa de suas famílias. O primeiro desenvolveu sua carreira principalmente em Hong Kong e o segundo, em Taiwan. Começaram a dirigir ao final dos anos 1980, começo dos 1990, e enveredaram por duas estéticas cinematográficas bem distintas. Nesta coluna, proponho o olhar sobre um filme de cada, em uma espécie de investigação do que converge tematicamente enquanto diferenças formais delimitam a abordagem de cada um: Amores expressos (1994 — frames à esquerda), de Kar-Wai e Rebeldes do Deus Neon (1992 — frames à direita) de Ming-liang.



Responsável por projetar o nome de Wong Kar-Wai no circuito internacional, Amores Expressos é o quarto longa em sua filmografia, e também seu primeiro grande sucesso. O filme chegou aos Estados Unidos pelas mãos de Quentin Tarantino, tão apaixonado pela obra que comprou seus direitos de distribuição. Centrado nas inquietações amorosas de dois jovens policiais, o roteiro é uma adaptação de um conto de Haruki Murakami. Sob os neons de Hong Kong, o agente 223 especula seu destino a partir de uma coleção de latas de abacaxi em conserva. O encontro com uma misteriosa traficante de peruca loira tira-o desse estado de letargia. A segunda história gira em torno do agente 663 e do fim de seu namoro com uma aeromoça, fato que chega aos ouvidos de uma típica manic pixie dream girl que trabalha como balconista na lanchonete que ele frequenta. Com cores vibrantes, música pop e um ritmo efervescente, Amores Expressos foi filmado em apenas 23 dias, durante o intervalo de um épico que o diretor estava realizando, e converteu-se em um dos filmes mais icônicos dos anos 90.


Kar-Wai tem por hábito estabelecer verdadeiras sagas de indivíduos que atravessam dias, semanas e por vezes décadas em um moto-contínuo do desencontro. Essa passagem de tempo é marcada pelo uso de contadores na tela (relógios e calendários), em uma valsa com uma câmera que movimenta-se próxima às personagens e que revela seus reflexos. Neles, o punctum da imagem localiza-se quase sempre no vazio entre dois corpos. Em Amores Expressos não é diferente: o Tempo permanece como lembrete e senhor absoluto, e o incansável desejo de amar e ser amado, seu escravo. O sentimento subsiste entre o turno no serviço público e a barraca da feira livre. Cada um sonha como pode. Após o delírio do apaixonamento, resta a dura tarefa de seguir em frente, seja através de barganhas espirituais, jogos de gato-e-rato ou correndo, literalmente, afinal, “o corpo perde água com o suor — então não resta nada para lágrimas”.



Por outro lado, em Rebeldes do Deus Neon (1992) — filme de estreia de um dos expoentes do Cinema Novo Taiwanês, Tsai Ming-liang —, temos a presença da água não somente como reminiscência, mas como uma espécie de metáfora temporal. Na realidade, aqui a água não pode sequer ser preterida: ela invade as casas e os planos com semelhante intensidade. Os rebeldes do título são quatro jovens: dois irmãos que cometem pequenos furtos, uma garota que trabalha no ringue de patinação e Hsiao-Kang (Lee Kang-sheng), adolescente que sai de casa após uma briga com a mãe. Este último, personagem-fetiche do diretor, viria a se tornar uma recorrência na filmografia de Tsai Ming-liang que, com sua câmera, o acompanha durante as mais diversas épocas de sua vida: de adolescente em fuga, passando por ambulante vendedor de relógios (Que Horas São Aí?, 2001) chegando a viver em situação de rua, onde é resgatado por alguns trabalhadores de Bangladesh (Eu Não Quero Dormir Sozinho, 2006).


Aqui ainda não havia a estética rígida, ancorada em um certo realismo dos sentidos, que o diretor viria a desenvolver em seus títulos seguintes. A montagem é dinâmica, sem tomadas particularmente longas. Diferente do filme de Wong Kar-Wai, aqui a câmera é testemunha distante de transbordamentos de toda a ordem. Paralelamente, qualquer tentativa de estabelecer um lar ou uma relação interpessoal é atravessado por um ressecamento geral, contra o qual não há antídoto possível. Se em Amores Expressos o problema do amor era questão de timing, em Rebeldes do Deus Neon o mero toque é uma impossibilidade.



Em Rebeldes, estamos em uma Taipei onde o deus neon nada mais é do que a luz que emana dos comércios à noite, dos rinque de patinação, das casas noturnas e lanchonetes mas, sobretudo, das máquinas de fliperama que servem de ponto de encontro para os tais rebeldes da ilha. Vivem em uma época de total falta de perspectivas; a comunhão possível é aquela que encontra na contravenção o eco de um mal-estar generalizado, de tudo aquilo que não pode ser dito, por conveniência ou falta de uma linguagem comum. A incomunicabilidade prevalece como sintoma nessa distopia cyberpunk que é familiar a qualquer grande cidade.


Justapor estas duas obras que tematizam os desencontros do amor, atravessados pelo tempo e pela delinquência — de forma praticamente simultânea — é como traçar o marco zero de uma diferença radical entre duas ontologias cinematográficas. O que o primeiro traz como o sintoma, o segundo evoca como diagnóstico. De um lado, há o lírico (Wong Kar-Wai), de outro, o hermético (Tsai Ming-liang). De forma diferente, dizem algo parecido: se o Amor é mesmo uma impossibilidade — ou nunca forte a ponto de frear a contingência da vida —, isto talvez seja menos por falência ou incapacidade pessoais mas, sobretudo, porque é isso mesmo que o Tempo faz: como um deus raivoso, obriga-nos — todos! — a dobrar os joelhos em sua presença.


Os dois títulos estão disponíveis em: http://abre.ai/cineplongee




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