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Foto do escritora palavra solta

A Estrela - Arcano XVII

Atualizado: 14 de set. de 2020

por Júlia Gonçalves



Ver beleza nas coisas tem sua poesia e o texto de hoje vai ser mais leve — a gente precisa de um respiro. As estrelas são historicamente a nossa orientação — geográfica ou filosófica. Colocam a gente num lugar no universo, no mar, na mata, nos estudos místicos. A astrologia pautava as grandes decisões da medicina, política e economia — em alguns lugares do oriente ainda pauta. Olhar pro céu conta uma história do passado, já que até elas chegarem aos nossos olhos algumas já estão mortas. O sol leva oito minutos pra chegar até aqui. “Somos poeira de estrelas” já disse Carl Sagan e um jovem cafona tentando te conquistar no primeiro encontro. Somos mesmo, a ciência diz — sempre muito poética a ciência — o cálcio que fez os nossos ossos data de pouco depois do Big Bang. Já estava por aí, no espaço, nos esperando. Nos orientar através da nossa origem é parte da história da humanidade. O documentário Nostalgia da Luz, de Patricio Guzmán, conta a história do deserto do Atacama, no Chile, que une no ponto mais seco do mundo duas formas de olhar o passado: a astronomia que aproveita da transparência do céu e a arqueologia que conta com a decomposição lenta da falta de umidade. Quanta esperança precisamos pra acreditar que podemos tocar as estrelas com a mão? Neste cenário, muitos durante a ditadura de Pinochet foram desaparecidos e suas mulheres — sempre elas — mães, irmãs, esposas seguem na busca incansável pelos restos. Prisioneiros estudaram juntos astronomia, que logo foi proibida pelos militares por medo de que pudessem fugir do cárcere se orientando pelas estrelas. A esperança, em diversos lugares na linha do tempo, sendo combustível pra feitos incríveis. 



Cena do documentário Nostalgia da Luz, de Patricio Guzmán, em que mulheres buscam por partes de ossos de desaparecidos da ditadura chilena no deserto do Atacama.



Astronomia e astrologia só foram separadas a 400 anos atrás, na revolução científica, depois de quase 6 mil anos de casamento. Crescemos olhando pro céu e buscando nele um norte, daí o significado do arcano que nos acalma com a boa notícia de que estamos no caminho certo, o destino é gentil conosco e o céu sopra segredos no nosso ouvido que somos capazes de ouvir. O arcano XVII também fala do encantamento, daí a inspiração, as artes, a poesia. O signo de aquário é representado pela Estrela, e notamos ai uma aparente contradição visto que em sua maioria é representado por figuras masculinas portando um receptáculo só. Porém no zodíaco egípcio de Denderáh o homem traz duas ânforas, que falam sobre a transmissão dupla de forças, ativo e passivo, evolutivo e involutivo, como está escrito no Dicionário de Símbolos, de Juan-Eduardo Cirlot. A partir do século XVI e da criação da imagem que conhecemos hoje da carta da Estrela, as representações aquarianas, até então exclusivamente masculinas, passam a se feminilizar. Seria a Estrela uma carta de transição? A pureza, o destino prometido, a elevação não poderiam ser representados por uma figura masculina, parece. Não sou eu que digo, são as cartas. Na Árvore da Vida, é representada por Tzaddi, a letra hebraica que significa anzol — mais uma vez o resgate das águas — e une as esferas de Netzach e Yesod. Ambas representadas por uma mulher nua e linda e um homem nu e lindo, respectivamente, e mais uma vez a dualidade da Estrela, unindo os opostos em sua origem e beleza.



“Fantasmas da esperança” pintura de Marcela Cantuária, técnica mista sobre tela, bandeira ao fundo 3,20m x 4,50m e círculo suspenso a frente, 1m de diâmetro. 



A Estrela nos lembra da humildade em perceber que somos parte da natureza, temos a benção da regeneração. A Estrela se lava em busca da purificação para poder falar com os deuses: um batismo. A nudez, o contato com a natureza, tudo fala sobre a origem da vida, “nascemos nus e o resto é drag”. Não fala da queda, mas do começo da reestruturação. Uma carta gostosinha, cheia de esperança, um solzinho da manhã. Abrir mão do sofrimento pode ser difícil, depois de muito tempo fazendo café pros fantasmas a gente se afeiçoa a eles, parece que fazem parte da gente e que sem eles ficamos vazios. A felicidade pode soar meio burra quando se passa muito tempo amargo, o ressentimento dá a sensação da profundidade através do peso. A dor faz a gente refletir mesmo, já disse o Eremita, mas não precisamos depender dela pra isso. A Estrela nos manda olhar pra fora, olhar ao redor, contar os grãos de areia, contar as estrelas, notar que temos muito, de certa forma. Aceitar o consolo que está ao alcance da mão, não deixar a resiliência ser roubada pelos que nos querem sempre mansos e cuidado com até onde o sentimento de revolta pode amargar a gente por dentro mais do que precisamos.


Sobre o equilíbrio falamos quando o texto for sobre a Temperança, mas a Estrela traz o contraponto do que está em alta ultimamente. Os tempos são feios, sabemos. A positividade delirante tem se tornado tóxica — a palavra da moda — mas não vamos cometer o erro de fugir de um extremo abraçando outro. O ressentimento já perdeu seu charme e digo que saber rir da própria tragédia por ter noção de que é temporária faz bem. Não se apegar às vitórias assim como não se apegar às derrotas, diz o budismo. Reconhecer que faz parte de algo maior do que você, nisso há um desafio pro ego, mas um alívio de certas responsabilidades que na verdade nunca estiveram sob nosso controle: chamam isso de fé. 


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