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A esfinge que se diz: reflexões sobre a forma e o luto em O Tango do Viúvo e seu Espelho Deformador

por Maria Cabianca


Todo filme é um documentário. Mesmo a mais extravagante das ficções evidencia a cultura que a produziu e reproduz a aparência das pessoas que fazem parte dela.

Bill Nichols [1]



Ainda que seja um filme de ficção, o média-metragem chileno O Tango do Viúvo e seu Espelho Deformador, filme captado em 1967 por Raúl Ruiz e montado em 2020 por sua viúva, Valeria Sarmiento, traz consigo as marcas de seu tempo. Não por ser um filme datado, mas por conservar aspectos que dizem de sua captação e são completamente reinventados por sua montadora e segunda realizadora, a companheira de vida do diretor. Trata-se de um filme extremamente metalinguístico, pois reatualiza a agonizante mágica do cinema e o luto em lugares inesperados.


A empreitada de Valeria Sarmiento foi a de resgatar parte do material que havia sido captado como primeiro filme e jamais finalizado por falta de verba.


“Todo lo que empieza, hay que terminarlo”, enuncia o professor Iriarte Gossens, protagonista da película, ainda nos minutos iniciais.


Valeria ainda não conhecia Raúl à época da produção e ficou sabendo que o material fora encontrado quando ele já havia falecido. As imagens redescobertas, sem registro de banda sonora, narravam um homem suicida que, após a morte da esposa, viu-se amalucado pelo luto, entre rios de sangue e perucas que andam sozinhas.



O material encontrado rendia aproximadamente 30 minutos de filme e ela precisava de pelo menos o dobro de duração para cumprir o acordo com os mecenas da produção de 2020. Mas se tem uma arte que paga seus demônios em dia, esta é o Cinema, e Valeria encontrou saídas técnicas, tanto para a falta total do som quanto para a parcial falta de película. Para o primeiro problema, contratou mulheres especialistas em leitura labial para ter indícios do teor dos diálogos filmados; para a segunda questão, duplicou a história. A segunda metade do média é toda contada em reverso, com imagens que já vimos. Engana-se quem deduz alguma previsibilidade a partir dessa técnica.


Através de outros tempos, ora dilatados, ora ampliados pelos diálogos – algo que a realizadora sabe trabalhar com habilidade –, em procedimentos que remetem diretamente ao cinema de Chris Marker e a Aristóteles – quando este prescreveu que a boa tragédia deve ser inevitável e inesperada –, somos conduzidos a uma revelação que só poderia ser adequadamente feita depois de sentirmos empatia pelo assombro do viúvo sofredor.


PROFESSOR


O que tá acontecendo?


SOBRINHO


O mundo está caindo aos pedaços. Nada importante.


A primeira metade do filme, que evidencia as escolhas estéticas feitas por Raúl nos anos 60, é impressionante. A câmera na mão é uma aula de como enquadrar diálogos de formas pouco usuais. A todo momento estamos confrontados com espelhos, vitrines e outras superfícies luminosas como receptáculos da história, captadas por uma câmera angulosa, que mergulha nos ambientes em frequentes triangulações entre personagens e objetos.





A sequência que mais me impressionou é a do primeiro pesadelo do viúvo com Maria, a morta, que é sucedida por chá noturno e leitura, ansiolíticos de primeira. São dois raccords de movimento que não se ligam através da continuidade, mas da repetição. Ao invés de emular uma continuidade de movimento por sucessão, a montagem repete a trajetória.


Este procedimento parece-me a chave de Valeria para a construção do filme.


Através da matriz sonora e da montagem duplicada, a realizadora desfibrilou o filme morto de seu marido morto – jamais negando suas limitações, mas trabalhando com elas e por elas. Repetiu-as até transformá-las.


Para tanto, o som é central neste filme, seja pela reconstrução diegética (tique-taque, água, fogo queimando o papel, sons ambientes em geral), seja pelos diálogos imaginados e ampliados, capazes de adicionar camadas narrativas ao filme, que não poderíamos conhecer se não pela palavra.


O áudio tem um poder de sugestão que vai além do que está na tela: preenche os vazios que a imagem fragmentada possui. Como num processo de simbiose, a imagem e o som se nutrem, produzindo um interpretante potencial que age na reconstrução da realidade ficcional para além dos limites dos planos e de sua montagem, nessa continuidade que a mente de pronto cria.



Ao lembrarmos que trata-se de uma realização feita a partir de restos de película, o filme ganha ares de testamento, pela indexicalidade da imagem analógica. O mundo visível e os objetos apreendidos pela câmera se estendem a nós como pura alteridade, como extracorpóreos captados e impressos na película. Entretanto, dada a magnitude e complexidade destes objetos em relação ao espaço circunscrito e delimitado dos fotogramas, a única possibilidade de capturá-lo se reduz a fragmentos de partes da realidade visível.


Gravados em fotogramas, esses objetos luminosos trazem partes do todo, fragmentos do real, e são provavelmente a mais literal fantasmagoria cinematográfica. Como uma esfinge que se diz, essas imagens nos gritam: basta um leve deslocamento e um mesmo filme pode ser isto ou seu completo contrário, como num jogo de espelhos. Como diria um cineasta muito querido: “Não se preocupe, filho, isto é apenas um filme”.



Mesmo diante de uma construção (ou reconstrução) fílmica tão engenhosa, talvez o maior ensinamento de Valeria Sarmiento – primordial numa época em que a morte bafora à nossa nuca cotidianamente – não seja o fôlego em chafurdar no pântano bolorento de um filme perdido para transformá-lo em matéria viva através do virtuosismo do som e da montagem, mas, precisamente, uma total abertura de espírito em encarar o luto e seus demônios de frente.

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NOTA

[1] Bill Nichols, Introdução ao Documentário, Editora Papirus, Ed. 2010









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