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Um lugar para habitar

por Pollyana Quintella



Os dias vão-se.

Eu não.

Adília Lopes.



Como fazer do encontro com o mundo um pacto de intimidade? Ou de que maneira fundir as linhas da paisagem e os contornos da casa, no desejo de, a um só tempo, estender a morada e aclimatar o entorno? Habitar implica fincar raízes ou traçar e negociar rotas que abriguem um corpo? São algumas perguntas que fazemos diante do trabalho de Brígida Baltar, interessada há quase trinta anos em desfazer e refazer o limite das coisas.


Ainda nos anos 1990, a casa onde morava, no Rio de Janeiro, ofereceu-lhe matéria de trabalho para uma vida inteira. Como quem dedica uma atenção meticulosa aos detalhes, a artista escavava a própria parede de modo parecido a quem abre uma gaveta em busca de não se sabe o quê. Talvez desejasse ouvir o murmúrio de um segredo, alcançar o cerne de uma matéria misteriosa. Dali, coletava secreções diversas: goteiras, resíduos, cascas, feixes de luz; tramava um diálogo silencioso entre corpos íntimos que não falam a mesma língua, mas insistem em se comunicar.


O desejo cirúrgico de fuçar os esqueletos, ir além das epidermes, a conduziu a transformar parte dos tijolos em pó. Daquela casa, onde se mudou em 2005, Baltar levou consigo inúmeros tonéis de poeira avermelhada em diferentes tonalidades, espécies de memória presentificada. Desde então, eles vem servindo a todo tipo de transmutação — deram forma a livros, cobogós e tijolos novos; misturaram-se em terras outras, edificaram pequenas montanhas, transformaram-se em desenhos sobre paredes, pisos e papéis, entre tantas outras ações. Era preciso alastrar sua poeira fundamental pelas superfícies do mundo, no intuito de que a casa, pouco a pouco, se transformasse em condição viva e movente.


Aqui, gostaria de comentar dois trabalhos recentes que nos levam a fazer um percurso do corpo à casa, da casa ao cosmos, não necessariamente nessa ordem. No desenho, a habitação é abstração onírica, pois o pó dos tijolos, junto ao lápis preto, figura como poeira cósmica. “O mundo bate do outro lado da minha porta”, diria Pierre Albert-Birot. Não era a casa o seu próprio universo? Estamos distantes, porém, de qualquer estrutura arquitetônica, a casa é antes um estado, uma atmosfera fluida e etérea, campo infinito de possibilidades: anywhere is my land. E a composição, de força centrípeta, nos convoca para dentro tal qual uma narrativa fantástica. Curiosamente, porém, há algo de microscópico nesse desenho, dado que é possível enxergar o mais íntimo do corpo — alvéolos, células, micro-organismos em profusão, cochichando: não é preciso ir muito longe.



Casa cosmos, 2010/2020, pó de tijolo e lápis preto sobre papel, 150 x 100 cm



Já nos mamás de Corpo-casa, vinte tijolos esculpidos adquirem a forma de seios irregulares e diversos. São topografias de um outro lugar, relevos acidentados, mamás-montanhas. A despeito da aspereza da matéria, sua morfologia fálica reforça o convite para o encaixe perfeito da boca, anseio de plenitude. É lícito supor que todo espaço ou objeto habitado traz em si algo de casa e, mesmo por isso, esses seios porosos guardam consigo certa condição de ninho primevo. “Só as casas explicam que exista / uma palavra como intimidade”, nos lembra Ruy Belo. Se reside aqui a lembrança de um acolhimento exemplar, esses mamás são também (e estranhamente) pedras a serem arremessadas, ferramentas de um uso perdido.



Corpo-casa [mamás], 2020, 20 tijolos esculpidos e vitrine de ferro e madeira, 100 x 118,7 x 44,7 cm



Tais peças nos conduzem ainda a uma experiência temporal longínqua, pois remetem à crueza de algumas esculturas pré-históricas, as chamadas figuras de vênus de acentuado valor mítico e simbólico. Na própria obra da artista, a compreensão do tempo se dispõe de maneira distendida e circular. Obras construídas em 2020, como as expostas aqui, podem dialogar com trabalhos produzidos há quase trinta anos, como Corpo-casa [cérebro] (1993), Vênus (1997) e Para voar (1995) ou, mais posteriormente, Um tijolo uma casa (2004), todos esculpidos em tijolo. Trata-se de uma produção que não busca responder ao calor dos acontecimentos, contrariamente, o que se costura é uma outra temporalidade, mais interessada em compreender o presente enquanto condição extemporânea. Ecos do passado e rumores do futuro se condensam nessas estranhas formas escultóricas, talvez por isso elas nos transportem para o tempo dos sonhos.


O gosto em transmutar os materiais — da casa ao tijolo, do tijolo ao pó, do pó ao desenho e à escultura —, tem menos que ver com os procedimentos científicos e mais com dinâmicas próprias do mundo animal e vegetal. Não à toa Baltar mimetiza abelhas e marias-farinha,[1] ela produz como uma lagarta ou um bicho-da-seda, para quem os casulos são a um só tempo força estruturante e vetor de transformação. Ou como os moluscos, cuja concha-esqueleto é a casa que se leva a qualquer parte. Daí lembramos que “todo ser vivo é apenas uma reciclagem do seu corpo, uma manta de retalhos construída a partir de uma matéria ancestral”, como tão bem ensina Emanuele Coccia. Ao que parece, também estamos continuamente refazendo nosso próprio pó.


Brígida Baltar, que se demora sobre a casca e a matéria das coisas como quem investiga a si mesma, nos oferece um jogo entre estruturar e desestruturar; construir e desconstruir. Nesse entremeio, somos levados a reconhecer corpo e casa como sendo ao mesmo tempo objeto e sujeito, condições reflexivas de um mútuo engendramento, cuja episteme é de fato epiderme. Mesmo por isso, o que a artista esculpe não é tanto os tijolos que leva consigo, mas antes a imaterialidade própria de um exercício subjetivo: o de construir para si um lugar para habitar.


Nota

[1] Refiro-me aqui aos trabalhos Casa de Abelha, realizado em 2002, e Maria Farinha Ghost Crab, realizado em 2004.

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