curadoria de Marcelo Reis de Mello
Antonio Borrego, mais conhecido como Tony Borrego (1962-2019), foi um poeta cubano de Las Tunas. Apesar de sua formação como diretor de arte audiovisual, Tony é lembrado como uma figura carismática nos meios literários e boêmios de sua cidade natal e de Havana. Tem sete livros publicados, sendo o último póstumo, organizado por seus amigos e ele mesmo, no leito do hospital. Doy gracias a Dios de ser ateo (1991), Terrenal (1993), Diapositivas (1997), Juegos lunares (1998), Juanillo (2004), Ovejas y demonios (2007) e La eternidade no basta para todos (2019). Encontrei por acaso o Ovejas y demonios em uma pequena prateleira dedicada à poesia de uma livraria em Havana, sua capa de um cor de rosa desgastado, de edição simplíssima, mais o fazia parecer um livro usado, como vários ali.
Compartilhar algumas traduções de Antonio Borrego no espaço de uma revista literária implica, para mim, fazer algum preâmbulo a elas – foi o que eu disse ao Marcelo quando recebi seu convite. Se uma tradução inédita é, sobretudo, uma apresentação, eu me perguntava como a faria com esse desconhecido que trouxe comigo na mala. Tampouco alguém o apresentou a mim, nos encontramos ao acaso e sem intermediários além de seus versos. Eu estava em Havana como professora de português do programa Mais Médicos para o Brasil, trabalho que apareceu em meio ao meu mestrado em poesia argentina. A língua espanhola e a literatura latino-americana e caribenha me eram familiares desde a graduação, e minha abordagem da literatura era bastante estruturalista, asséptica como se fosse sociologia da literatura. Mas o tom missionário do trabalho – que ia de visitas ao Ministério da Saúde brasileiro a convites para jantares com a presença de Raúl Castro – me retirou da ilha de minha apatia asséptica e de repente a história me interessava.
Como aquela capa de livro, Havana também era um sebo a céu aberto e antes de conhecê-la ela me parecia uma espécie de ficção. De 2013 a 1953, conforme eu virava a ampulheta, a areia da ficção empanava o real da experiência. As histórias oficiais contadas pelos que ficaram responsáveis por mim, o diretor do hospital e a secretária de saúde, me impressionaram. Eles me mostraram a foto de mais de dez mil médicos cubanos de prontidão com seus jalecos brancos em um estádio esportivo: uma oferta negada pelos Estados Unidos na ocasião do furacão Katrina. Ou o relato em coro dos mais de cem médicos e médicas com os quais estive ao longo de trinta dias, sua colaboração e atendimento aos países adoecidos por guerras; tudo me impressionava e, como uma pequena célula dentro daquele enorme organismo, me deixei contagiar pelo tom de orgulho e grandiosidade. Lá na sala do diretor do Centro de Colaboração Médica, vi um desenho em lápis grafite com traços tão realistas que o confundi com uma fotografia: um beija-flor voando estático tocava com o bico a boca de Fidel Castro. Elogiei a imagem para o diretor, que ao final da nossa missão a multiplicou em cópias que foram entregues a toda delegação de professores e professoras.
Essa mesma monumentalidade ergueu estátuas para os poetas-mártires. Eu os encontrava em minhas caminhadas pelo centro velho de Havana nos fins de tarde depois das aulas de português. Em um desses passeios um morador de rua me pediu um cigarro. Perguntei a ele porque morava na rua, já que foi o único que encontrei naquela condição. A causa era amorosa, ou melhor, eram os conflitos com sua esposa, que já não o desejava e, para não importuná-la, ele preferiu sair da casa. O amor e a guerra, pensei. Fiz amizade com uma artista, ou um artista, não sei, uma dessas estátuas-vivas, com quem conversava sobre as coisas menores da rotina na cidade: o revezamento entre os taxistas, não havia demanda para que todos estivessem na rua ao mesmo tempo, os músicos ensaiando com seus trompetes na orla, às vezes eles ganhavam uns trocados ilegais, caso não estivessem registrados como trabalhadores do turismo ou da arte. Apesar do meu repentino interesse pela revolução, entrei em uma livraria do centro da cidade, me desviando dos volumosos tomos dedicados a ela. Eu procurava mais relatos como os que a estátua me contava, vozes que aqueles livrões pudessem ter abafado, as pequenas histórias dentro das grandes histórias. E foi na estante de poesia que as encontrei. Naquela hora talvez eu tenha pensado: poesia, mãe dos vencidos, monumento inexato, mártir do sentido.
E apesar desse espanto, a verdade é que por um tempão me ocorreu com os poemas algo parecido com aquela imagem de Fidel com o beija-flor. Eu não soube o que fazer com o quadro, me parecia estranho pendurá-lo, por não ser exatamente um objeto de muita singularidade estética, mas tampouco iria dispensá-lo. Os poemas de Antonio Borrego são heterogêneos, alguns longos, outros curtos, uns em verso livre, outros são sonetos, em alguns deles há imagens literárias gastas como a capa do livro que comprei, outros tem clichês bonitos. Traduzi cerca de cinco para mim mesma quando voltei de viagem, entre os que mais gostei, e me perguntava: o que faço com isso?
O que reconheço neles, diante da poesia dos mártires, ou mesmo do monumental Lezama Lima, é a singularidade. Os poemas selecionados abaixo pertencem ao livro Ovejas y demonios, com exceção do primeiro, “Discurso de um homem só”. Escolhi incluí-lo pois, além de seu título sintetizar minha procura, Tony o tinha na ponta da língua e em qualquer noite com colegas era convidado, quase intimado, a recitá-lo, seu pequeno monumento aéreo, seu beija-flor estático. Os outros selecionei a partir da imagem de dois amantes mitológicos, o Amor e a Guerra, casal que reconheci na história daquele morador de rua e na cena do quadro.
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Discurso de um homem só
Para Gilberto E. Rodríguez
Essa casa precisa de algo novo
tem muito CO2 nessa sala
muito silêncio nesses quadros
Ontem eu quis ajustar o corpo ao pijama
e saí correndo atrás de um táxi queimei
todos meus livros amanheci
na varanda de um vizinho nada disso
Essa casa precisa de um cachorro um piano uma campainha
Um disparo de sol que limpe o pó do teto
os passos de um elefante
algo antipoético que lembre sua imagem
À noite sonhei que você tinha voltado
que amava um unicórnio
que aprendia de memória meus poemas
e me dava o Nobel do seu coração Sonhei
que você era uma estrela e eu
o cosmonauta do século
que você aturava os intelectuais que eu te beijava
infinitamente nua
e eu te afundava no meu peito como almofada
com braços e lábios nada disso
Estou convencido que você não vem
que continuarei roendo as unhas
amontoando poemas procurando você
em todos os pontos de ônibus nos cinemas
nas vendinhas sem me importar com ninguém
os intelectuais as minhas prepotências
Você não percebe que sou um peregrino moderno
que nem um tênis eu tenho pra te procurar
que de noite faço a vigília do comitê
pra saber do seu retorno
que estou parado nessa praça
fazendo o discurso de um homem só
Ah mas não adianta
amanhã vai sair nos jornais
uma nota dizendo
Troca-se essa casa
quartos grandes
bons vizinhos não falta água
Motivo da troca
Ela não veio.
Discurso de un hombre solo
A Gilberto E. Rodríguez
Esta casa necesita de algo nuevo
hay demasiado CO2 en esta sala
demasiado silencio en estos cuadros
Ayer quise ajustar el cuerpo a la piyama
y me fui a correr detrás de un taxi quemé
todos mis libros amanecí
en la azotea de un vecino pero nada
Esta casa necesita un perro un órgano una sirena
Un disparo de sol que desempolve el techo
Los pasos de un elefante
Algo antipoético que recuerde tu imagen
Anoche soñé que habías vuelto
que amabas el unicornio
que aprendías de memoria mis poemas
y me dabas el nobel de tu corazón Soñé
que tu eras una estrella y yo
el cosmonauta del siglo
que soportabas a los intelectuales que te besaba
infinitamente desnuda
y te hundía en mi pecho como una almohada
con brazos y labios pero nada
estoy convencido de que no vendrás
que seguiré comiéndome las uñas
amontonando poemas buscándote
en todas las paradas de ómnibus en los cines
en los estanquillos sin importarme la gente
los intelectuales mis prepotencias
No te das cuenta que soy un peregrino moderno
que ya no tengo zapatos para buscarte
que por la noche hago la guardia a los cederistas
para estar al tanto de tu regreso
que estoy parado en este parque
diciendo en alta voz
el discurso de un hombre solo
Ah pero no importa
mañana saldrá en todos los periódicos
una nota que diga:
Se permuta esta casa
habitaciones amplias
buenos vecinos no falta el agua
Motivo de la permuta
Ella no vino.
***
VII
O inimigo me cedeu um palácio,
jardins com mulheres libanesas,
teares nos quais o vento me faria uma camisa,
mas duvidei, meu amor, duvidei.
VII
El enemigo me cedió un palacio,
jardines con mujeres libanesas,
telares donde el viento me haría un camisa,
pero dudé, amor mío, dudé.
***
Dois a favor e um contra
Meu país é um granizo inevitável,
já sabemos. Meu país
sempre teve duas formigas a seu favor
e um elefante contra. Deus,
perdoe o elefante.
Dos a favor, uno en contra
Mi país es un granizo inevitable,
eso lo sabemos. Mi país
siempre tuvo dos hormigas a favor
y un elefante en contra. Dios,
perdone al elefante.
***
Incensário
Para Lucy Maestre por seu afã de proteger o céu.
Santo padre: estamos consertando o céu,
não calculamos os talentos necessários.
Cada saída terá solução na primavera.
Atrás das bolsas, há pregos e farinhas,
os cupins destruíram os morretes e as vigas.
O céu está sobre os ombros,
valha-nos os ombros,
valha-nos as vigas e os morretes,
valha-nos as tábuas de Moisés,
o trapézio que você movia quando eu era menino.
Santo Padre: há lugares podres, escanos irreparáveis
pelos quais se subia para o céu. Não há culpados,
as pegadas que haviam já não estão,
estão as vozes, as liturgias, e os carnavais,
o vinho umedecendo a vergonha.
Espero que você desça com cuidado, o vão está
enlameado de sombras e seus pés são frágeis.
Santo Padre: acabam de enterrar o céu,
também enterraram os inocentes.
Os inocentes são culpados.
Ontem não foi nada, hoje ainda não começou.
O tempo debulha sua inocência de fumaça.
Também o tempo é culpado por este vão.
As águas e os pedidos escaparão,
os culpados inocentes escaparão.
Santo Padre: os culpados escaparam
e ficamos eu e a miséria. A miséria não fala,
ela tem um único olho e uma cicatriz, mas não fala.
A miséria quer o que eu tenho,
e o que tenho é minha boca, a língua que você cortou
quando eu era menino.
Sei que você me escuta, cuidado com o vão,
que ficaremos sem seus ombros,
que o céu cairá sobre nós.
Aproxima os seus ouvidos da minha boca,
não precisa acender lâmpada nenhuma.
Sahumerio
A Lucy Maestre por su afán de proteger el cielo.
Santo Padre: estamos reparando el cielo,
no calculamos los talentos necessarios.
Cada abertura tendrá solución em primavera.
Detrás de los morrales, hay clavos y almidones,
la carcoma ha destrozado los parales y las vigas.
El cielo está sobre tus hombros,
válgannos tus hombros,
válgannos las vigas y los parales,
válgannos las tablas de Moisés,
el trapecio que mecías cuando yo era un niño.
Santo Padre: hay zonas podridas, irreparables escaños
por donde se subía al cielo. No hay culpables,
las huellas que hubo ya no están,
están las voces, las liturgias y los carnavales,
el vino humedeciendo la verguenza.
Espero que bajes con cuidado, el hueco está
embarrado de sombras y tus pies son frágiles.
Santo Padre: acaban de enterrar al cielo,
también enterraron a los inocentes.
Los inocentes son culpables.
Ayer no basta, hoy no ha comenzado.
El tiempo desgrana su inocencia de humo.
También el tiempo el culpable de este hueco.
Se fugarán las aguas y los pedimientos,
se fugarán los culpables inocentes.
Santo Padre: se fugaron los culpables
y nos quedamos la miseria y yo. La miseria no habla,
tiene un ojo y una cicatriz, pero no habla.
La miseria quiere lo que tengo,
lo que tengo es la boca, la lengua que tallaste
cuando yo era un niño.
Sé que me escuchas, cuidado con el hueco,
que nos quedamos sin tu hombro,
que el cielo se nos viene encima.
Acerca tu oído hasta mi boca,
no es preciso que enciendas una lámpara.
***
XIII
A guerra é uma trégua que a paz propõe.
Fartos os homens de comerem tão juntos,
a mesa, o pão, a pátria dividiram.
Se vissem como você dorme, encontrariam
sossego, fundiriam suas armas?
XIII
La guerra es una tregua que la paz propone.
Hartos los hombres de comer tan juntos,
la mesa, el pan, la patria dividieron.
Si vieran cómo duermes, ¿hallarían
sosiego, fundirían sus armas?
Mariana de Oliveira Campos nasceu em Campinas (1988). É astróloga e escritora em seu canal, Luzeira – Astrologia, professora da Saturnália - Escola de Astrologia, e editora da Revista Cazimi. É graduada em Letras (português/espanhol) e mestre em Estudos da Literatura, ambos pela Universidade Federal de São Carlos. Vive no Rio de Janeiro.
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