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Terra: qualidade do vivo

por Pollyana Quintella

“Nos descolamos do corpo da Terra. Fizemos um divórcio, acreditando que poderíamos viver por nós mesmos”. Ailton Krenak proferiu essa frase em dezembro do ano passado. O líder indígena se referia à crise aguda que atravessamos enquanto espécie, e que nos soa mais radicalizada a cada dia. Enquanto lia sua entrevista, me perguntava: “ À essa altura, ainda seremos capazes de criar outras alianças com a terra sem subjugá-la? Nos resta tempo?” Na mesma semana, o Gustavo Nóbrega, amigo à frente da Galeria Superfície, em São Paulo, retomou um diálogo comigo. Ele me enviara um conjunto de obras, reunidas sob sua curadoria, para que eu pudesse produzir um texto para uma exposição chamada O Ventre da Terra, que esteve em cartaz no seu espaço de fevereiro a maio deste ano. Tratava-se de um conjunto majoritariamente feminino e histórico, vindo direto dos anos 1970, composto por nomes como Amelia Toledo, Ana Mendieta, Anna Bella Geiger, Anna Maria Maiolino, Amelia Toledo, Celeida Tostes, Hélio Eichbauer, Lotus Lobo, Mara Alvares, Neide Sá, Nydia Negromonte, Péricles Eugênio da Silva, Sérvulo Esmeraldo, Tunga e Vera Chaves Barcellos. Além disso, entre os trabalhos, a terra apresentava-se como um dos elementos centrais da produção, um elo. Ao confrontar aquelas imagens, me via novamente frente às perguntas que Krenak havia me provocado. Mais do que isso, percebia que esses trabalhos eram, à sua maneira, indícios potentes de outra postura diante da vida. Pistas, sussurros, vestígios de uma outra subjetividade, um diálogo entre tempos. Por isso, o texto que agora publico aqui é fruto desse encontro com as obras da exposição. Mas que mensagens, afinal, essas artistas nos endereçam? Nem uma, ou duas, mas uma polifonia, uma sinfonia de apelos. Isso porque, para elas, a terra não é uma coisa só. Ora é pátria e nação, ora natureza e paisagem, ora textura e materialidade, ora origem ancestral e primeva, ora cemitério e destino final. “Terra para o pé, firmeza, terra para a mão, carícia”, diria Caetano Veloso. Areia, rocha, cascalho, lama, barro, solo, húmus, ovo, cimento. Elas manipulam a matéria e reivindicam um corpo imanente, presente. Vejamos o caso emblemático de Ana Mendieta, cuja fusão entre paisagem e corpo é a busca por reestabelecer uma laço primordial com a terra, desfazer o divórcio de que nos fala Krenak. Além disso, a condição exilada da cubana também reforça a necessidade de reivindicar uma terra para si, um território alheio às ideologias da nação.

A necessidade de marcar o corpo fisicamente na paisagem também está presente em Epidermic Scapes (1977/1982), no qual Vera Chaves Barcellos imprimiu partes de seu corpo em papel vegetal, e posteriormente as ampliou em fotografias de alto contraste. Diante delas, a ampliação nos faz perder o referencial do corpo da artista, e somos levados a visualizar paisagens, relevos e geografias no mais íntimo da pele. Outro caso é o de Amélia Toledo, que moldou seus pés em cimento branco, numa forma circular que lembra a estrutura de uma mandala. Sua Rosa dos Ventos (1973) é um conjunto de pegadas inquietas, índices de um corpo na contradição entre o movimento e a fixidez. Há ainda "Jogo de Esconder em 6 Toques", das séries Adansônia (1976) e Adansônia II (1977), ambos de Mara Álvares. Nas fotografias, fragmentos de corpos simulam relações simbióticas com a paisagem. Mundo e sujeito se fundem e se confundem.


São trabalhos que reforçam a leitura de que os anos 1970 contribuíram para perturbar a autoridade do artista e o estatuto do objeto de arte. É o momento em que o corpo emerge como espaço de disputa e negociação, fazendo do experimentalismo a postura crítica que se opõe às instituições e os meios oficiais de poder. Ademais, sabe-se que essas artistas estiveram muitas vezes alinhadas ao lema “o pessoal é político”, implicando suas subjetividades para dentro do trabalho através da autorrepresentação, da performance e outras estratégias de resistência.


Tal vocação experimental pode ser notada no vídeo de Neide Sá, Oficinas do Corpo — Hélio Eichbauer (1976), disponível neste link. Embora o período fosse marcado pelos impactos da censura e da repressão do regime militar às manifestações culturais, o Parque Lage, naquela altura gerido por Rubens Gerchman, funcionava como uma “ilha da liberdade", caracterizada por atividades coletivas e ensino livre de artes. A oficina de Eichbauer, uma das mais procuradas da época, propunha-se a realizar uma série de exercícios que descondicionassem o corpo através do contato com materiais orgânicos, rituais primitivos, improvisações e expressão corporal. Ao assistir ao vídeo, fica claro que prevalece ali a vivência em detrimento de um possível produto artístico final. O que está em jogo é reinventar o sujeito.


Porém, a relação íntima com a terra alcançará seu ponto alto com outra professora da escola: Celeida Tostes. Em Passagem (1979), com a ajuda de duas assistentes, a artista cobriu o corpo com argila líquida e submergiu em um grande vaso de barro construído em seu apartamento em Botafogo, no Rio de Janeiro. As assistentes cobriram o vaso com mais barro até fechá-lo, mantendo Celeida selada lá dentro, como se dentro de um ovo. Depois de algum tempo, a artista rompeu a estrutura com força e projetou seu corpo para fora, o que rendeu um trabalho entre a escultura, a performance e a fotografia. De imediato, podemos compreender a ação como um ritual de renascimento, mas a relação de Celeida com o barro é estreita e se reflete sobretudo em gestos contínuos e insistentes. Repetir, repetir, repetir, até que o fazer supere o indivíduo, como num mantra. Os Amassadinhos (1991) também podem ser lidos como um gesto praticado à exaustão. O que a artista persegue é o fazer arcaico, originário.


Por sua vez, a escultura da série Lábios (1992), de Tunga, reflete aqui um contato estreito com a matéria. São peças feitas originalmente em terracota, fundidas em bronze e finalmente cobertas de maquiagem em tons pastéis e vermelhos. Depois de maquiadas, voltam a simular seu estado original em argila, camuflando a natureza do bronze com uma aparência que lembra a organicidade do corpo. O ato de maquiá-las, um tanto erótico, se realizava enquanto performance, como num “elogio da superfície”, como disse o artista.


Anna Maria Maiolino é outra artista afeita às repetições. Nas “Fotopoemações” da série Vida afora (1981), ela apresenta um ambiente doméstico permeado de ovos selvagens em diferentes situações. Aqui, vemos uma fotografia com ovos aglomerados sobre uma cadeira, em contexto surreal. Eles reivindicam sua forma frágil por excelência, operando tensões entre a vida e a morte. Um único gesto abrupto e tudo está prestes a rolar, rachar, cair, quebrar. No caso de Maiolino, não é exagero dizer que a relação com o ovo reflete condições existenciais amplas (dentro e fora, morte e vida, cheio e vazio), mas também condições sócio-políticas do ser mulher. Seu ovo é ambíguo.


Com Anna Bella Geiger, a discussão ganha contornos mais sociais. Tanto em Brasil Nativo, Brasil Alienígena (1976-1977) quanto em História do Brasil - Little Boys and Girls (1975), questiona-se o processo de busca por uma suposta identidade brasileira. Ao contrastar sua auto imagem com imagens de indígenas que figuravam em postais e materiais dedicados a exibir os “tipos” nacionais, Anna Bella nos faz reconhecer o caráter fictício dessas narrativas. Estabelecer relações mais saudáveis com o mundo implica desfazer clichês, ir além das representações convencionais.


Mas a terra também nos ameaça. O conflito fica explícito na instalação Posta, de Nydia Negromonte, a artista mais jovem da exposição. Nela, uma série de frutas e legumes são revestidos de barro cru. Com o passar do tempo, os alimentos experimentam a ambiguidade entre perecer e gerar novos brotos, o dilema entre sucumbir à asfixia e conseguir se reproduzir. Não à toa, observamos uma série de rachaduras no barro que nos convencem de que nada está inerte. O que testemunhamos é o choque entre materiais, os processos vitais dessa natureza-morta.


Junto a ela, tivemos ainda a oportunidade de ver a recriação da obra histórica de Lotus Lobo, originalmente realizada no contexto da célebre exposição Do Corpo à Terra, organizada por Frederico Morais em 1970. Naquela altura, Lobo plantou sementes de milho na terra do Parque Municipal de Belo Horizonte, buscando interferir na paisagem local. A plantação, no entanto, teve de ser interrompida quando a artista se viu pressionada por policiais locais que estranharam as atividades incomuns no Parque. Suas sementes nunca germinaram. Na exposição, o pequeno milharal ganhou corpo dentro de um espaço expositivo fechado, dando a ver os embates entre natureza e arquitetura.


Isso posto, creio que o conjunto nos deixa a sensação de que a terra não é mero recurso, mas condição viva e movente. Não é objeto, mas organismo, materialidade da qual fazemos parte. “A matéria resiste à força humana e o corpo se adapta muscularmente às resistências da matéria”, reconheceu Bachelard. A terra é qualidade do vivo. Talvez isso indique uma ética, uma bússola que nos permita reavaliar nossos acordos a fim de caminhar mais suavemente... antes que seja tarde.


Ana Mendieta / Créditos Galeria Superfície



Anna Bella Geiger / Créditos Galeria Superfície



Anna Maria Maiolino / Créditos Galeria Superfície



Celeida Tostes / Créditos Galeria Superfície



Lotus Lobo / Créditos Galeria Superfície



Nydia Negromonte / Créditos Galeria Superfície



Tuna / Créditos Galeria Superfície



Vera Chaves Barcellos / Créditos Galeria Superfície


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