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Sobressalto#01: Carlos Drummond de Andrade

por Marcelo Reis de Mello



Sobressalto. Movimento brusco provocado por sensação súbita e violenta.


Sobre. Refere-se a um limite concreto no espaço ou no tempo (ou noção). ETIM lat. super 'em cima de, acima de, mais do que, além de etc.'


Salto. Movimento brusco, com expansão muscular, pelo qual um corpo se eleva do solo para ultrapassar um certo espaço ou recair no mesmo lugar.






SOBRESSALTO #01

Carlos Drummond de Andrade


01. MORRER


Entre as muitas mortes que atravessam a poesia de Drummond, podemos considerar duas marcas fundamentais. A primeira é escrita como um “convite triste”, mas que é um retrato do seu espírito erótico, delírio amoroso: são as pequenas mortes. Outra, a morte grave e única, que se desenlaça no enterro da sua filha, Maria Julieta, e que termina com a sua própria, logo em seguida.


Convite triste


Meu amigo, vamos sofrer,

vamos beber, vamos ler jornal,

vamos dizer que a vida é ruim,

meu amigo, vamos sofrer.


Vamos fazer um poema

ou qualquer outra besteira.

Fitar por exemplo uma estrela

por muito tempo, muito tempo

e dar um suspiro fundo

ou qualquer outra besteira.


Vamos beber uísque, vamos

beber cerveja preta e barata,

beber, gritar e morrer,

ou, quem sabe? beber apenas.



Depois da morte de Julieta, Drummond pediu textualmente à médica, Elizabeth Viana Freitas, que lhe desse a receita de um ‘infarte fulminante’.


O poeta começou a passar mal na tarde de sexta-feira 14 de agosto de 1987, mas ficou quieto. Quando estava em casa, no momento de ser levado para o Procardíaco, na rua Dona Mariana, Carlos ainda pediu desculpas à médica, por estar incomodando: “Veja como é que sou desastrado. Eu estou atrapalhando a sua noite. Tanta coisa boa para fazer numa sexta-feira à noite...”.



02. GAUCHE


Quando nasci, um anjo torto

Desses que vivem na sombra

Disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida

(...)


Sempre que leio o “poema de sete faces”, lembro-me de uma ideia do Roland Barthes, de que a inteligência é sempre um pouco gauche, um pouco desajeitada, fora do padrão, e que pouco tem a ver com o traço perfeito, destro. “Há sempre um pouco de gaucherie na inteligência”. Drummond foi um poeta essencialmente gauche, como Machado de Assis foi um romancista infalivelmente gago.



03. MINAS, MINERAÇÃO


“Noventa por cento de ferro nas calçadas,/ Oitenta por cento de ferro nas almas.”


Sobre isso, tornou-se incontornável o lindo livro de José Miguel Wisnik, Maquinação do Mundo: Drummond e a mineração. Logo na primeira parte do ensaio, conta sobre a Montanha do Cauê, em Itabira, que o poeta chamaria de “a montanha pulverizada”.


Wisnik: “Até aqui escondi de propósito o assombro maior e mais crucial, por ser praticamente inviável expor o quadro todo num movimento só. É que, para complicar radicalmente o panorama, a montanha do Cauê, cuja efígie o lugar nos induz a ver pelo vestígio de sua localização espectral, não está mais lá, a não ser como presença alucinada de uma ausência. Explorada pela Companhia Vale do Rio Doce, que foi criada especificamente para isso em 1942, quando da entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, e com sua escavação recrudescida a partir dos anos 1950, visando o mercado mundial do aço, a montanha, de excepcional teor ferrífero, foi roída pela atividade mineradora, ao longo de décadas, ao ponto de ter se transformado numa inominável cratera que cava seu perfil em negativo no fundo da terra.”



A montanha pulverizada


Chego à sacada e vejo a minha serra, a serra de meu pai e meu avô, de todos os Andrades que passaram e passarão, a serra que não passa.


Era coisa de índios e a tomamos para enfeitar e presidir a vida neste vale soturno onde a riqueza maior é a sua vista a contemplá-la.


De longe nos revela o perfil grave. A cada volta de caminho aponta uma forma de ser, em ferro, eterna, e sopra eternidade na fluência.


Esta manhã acordo e não a encontro, britada em bilhões de lascas, deslizando em correia transportadora entupindo 150 vagões, no trem-monstro de 5 locomotivas

– trem maior do mundo, tomem nota – foge minha serra vai, deixando no meu corpo a paisagem mísero pó de ferro, e este não passa.


Ou ainda, em “Itabira”:


Cada um de nós tem seu pedaço no pico do Cauê

Na cidade toda de ferro/ as ferraduras batem como sinos.

Os meninos seguem para a escola.

Os homens olham para o chão.

Os ingleses compram a mina.

Só, na porta da venda, Tutu Caramujo cisma na derrota incomparável.




04. Pós-guerra, poesia, silêncio


Lembro-me de ter lido, no texto de um dos importantes tradutores da poesia de Paul Celan ao português (depois de se refestelar em citações de Hegel, Heidegger, Hölderlin e Nietzsche, claro), que Drummond não poderia ser considerado nem de longe um poeta à altura de Celan. Neste exato momento, não consigo pensar numa comparação mais descabida e idiota.


Celan perdeu a família nos Campos de Concentração nazistas. Era um poeta de língua alemã, sem ser alemão. Sua língua materna foi a língua dos assassinos da sua mãe. Ainda assim, mostrou a Theodor Adorno a possibilidade de se continuar a escrever poesia depois de Auschwitz.


Quanto a Drummond, em 1930 ainda pode se permitir alguma ironia, ao publicar “O sobrevivente”:


Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade. Impossível escrever um poema – uma linha que seja – de verdadeira poesia. O último trovador morreu em 1914. Tinha um nome de que ninguém se lembra mais.


Há máquinas terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples. Se quer fumar um charuto aperte um botão. Paletós abotoam-se por eletricidade. Amor se faz pelo sem-fio. Não precisa estômago para digestão.


Um sábio declarou a O Jornal que ainda falta muito para atingirmos um nível razoável de cultura. Mas até lá, felizmente, estarei morto.


Os homens não melhoram e matam-se como percevejos. Os percevejos heróicos renascem. Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado. E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.


(Desconfio que escrevi um poema.)



05. INCÊNDIO


Geneton Moraes Neto: Quando era jovem, o senhor incendiou um bonde em Belo Horizonte, num protesto contra o aumento das passagens...


Carlos Drummond de Andrade: Eu não incendiei o bonde: seria uma atividade muito difícil para uma pessoa só. Eu ajudei a incendiar! É uma coisa de maluco. Começou num protesto contra a elevação do preço do cinema e acabou na rua, destruindo o bonde. Havia uma coisa em Belo Horizonte que era considerada ruim: o serviço de bondes de uma empresa particular. O bonde não chegava na hora, atrasava, faltava muito. Havia uma raiva contra o bonde. Então, eu ajudei, naquele momento de raiva, a queimar o bonde.


Perdi o bonde e a a esperança.

Volto pálido para casa.

A rua é unútil e nenhum auto

passaria sobre meu corpo.


Vou subir a ladeira lenta

em que os caminhos se fundem.

Todos eles conduzem ao

princípio do drama e da flora.


Não sei se estou sofrendo

ou se é alguém que se diverte

por que não? na noite escassa

com um insolúvel flautim.

Entretanto há muito tempo

nós gritamos: sim! ao eterno.


(“Soneto da perdida esperança”)


Geneton: Até quando durou a sua vocação piromaníaca?


Drummond: Eu era vadio. Era um mau estudante. Não era vocação piromaníaca. Só houve um caso... Perdão! Houve também o caso do incêndio da casa de uma família. [Em companhia de Pedro Nava, Drummond incendiou um varal de roupas dentro da casa onde moravam “umas moças, as Vivacqua”. Depois de provocar o incêndio, os dois se dirigiram candidamente à porta da casa, apertaram a campainha e bancaram os heróis: ajudaram a apagar o fogo. Um guarda civil viu tudo, a dupla incendiária foi chamada à delegacia, mas o caso não deu em nada, porque o delegado era parente de Drummond. Os dois teriam provocado o incêndio porque só assim poderiam ver as moças de camisola, na hora em que estivessem fugindo do fogo, apavoradas. Drummond nega: “Foi pura farra; sem nenhuma intenção”.]


Sobre a vocação incendiária de Drummond, para lá (ou cá) das rebeliões de juventude, mais ou menos justificáveis, impossível não lembrar desta estrofe de “A flor e a náusea”:


(...)

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.

Ao menino de 1918 chamavam anarquista.

Porém meu ódio é o melhor de mim.

Com ele me salvo

e dou a poucos uma esperança mínima.



06. BRASIL


Talvez o Brasil se apresente menos numa narrativa ligada à sua formação, que determinaria sempre algum significado (tarefa interpretativa), do que de um estranhamento das estruturas, quer dizer: “preferindo o momento da deformação ao da formação, confundindo, aliás, um e outro” e multiplicando “os sentidos até o limite do equívoco ou da insignificação”. Essa é a ideia defendida no bom artigo de Eduardo Sterzi, “Brasil-sintoma: como viver na pós-história?”, que encontra bons caminhos na poesia de Drummond:



Eu também já fui brasileiro

Moreno como vocês.

Ponteei viola, guiei forde

e aprendi na mesa dos bares

que o nacionalismo é uma virtude

Mas há uma hora em que os bares se fecham

e todas as virtudes se negam.


Eu também já fui poeta.

Bastava olhar para mulher,

pensava logo nas estrelas

e outros substantivos celestes.

Mas eram tantas, o céu tamanho,

minha poesia perturbou-se.


Eu também já tive meu ritmo.

Fazia isto, dizia aquilo.

E meus amigos me queriam,

meus inimigos me odiavam.

Eu irônico deslizava

satisfeito de ter meu ritmo.

Mas acabei confundindo tudo.

Hoje não deslizo mais não,

não sou irônico mais não,

não tenho ritmo mais não.


Ou ainda:


(...)

Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!

Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,

ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.

O Brasil não nos quer! Está farto de nós!

Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.

Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?


07. VELHICE


Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?

Teus ombros suportam o mundo

e ele não pesa mais que a mão de uma criança.

As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios

provam apenas que a vida prossegue

e nem todos se libertaram ainda.

Alguns, achando bárbaro o espetáculo

prefeririam (os delicados) morrer.

Chegou um tempo em que não adianta morrer.

Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.

A vida apenas, sem mistificação.



08. VELHICE, SEXO


Essa semana, durante um café da manhã na casa de Vila Isabel, zona norte do Rio de Janeiro, o amigo poeta [e editor desta revista] Flávio Morgado, conta, de cabeça, uma entrevista feita com Drummond, já velho, em que se lastima de não poder mais executar “frontalmente” o ato.


Algo assim:


“O que é ter 80 anos? O desejo é algo que não cessa, trata-se da nossa substância. De modo que, no auge de minha velhice, continuo e me considero um ser desejante. O que aflige é a incapacidade da realização frontal do ato erótico. Isso sim é uma lástima.”



Para o sexo a expirar


Para o sexo a expirar, eu me volto, expirante.

Raiz de minha vida, em ti me enredo e afundo.

Amor, amor, amor — o braseiro radiante

que me dá, pelo orgasmo, a explicação do mundo.


Pobre carne senil, vibrando insatisfeita,

a minha se rebela ante a morte anunciada.

Quero sempre invadir essa vereda estreita

onde o gozo maior me propicia a amada.


Amanhã, nunca mais. Hoje mesmo, quem sabe?

enregela-se o nervo, esvai-se-me o prazer

antes que, deliciosa, a exploração acabe.


Pois que o espasmo corroe o instante do meu termo,

e assim possa partir, em plenitude a ser,

de sêmen aljofrando o irreparável ermo.



09. JORNAL



Poema do Jornal


O fato ainda não acabou de acontecer

e já a mão nervosa do repórter

o transforma em notícia.

O marido está matando a mulher.

A mulher ensangüentada grita.

Ladrões arrombam o cofre.

A polícia dissolve o mitingue.

A pena escreve.


Vem da sala de linotipos uma doce música mecânica


Segundo dados do Arquivo-Museu de Literatura Brasileira (AMLB), da Fundação Casa de Rui Barbosa, Drummond produziu mais de 6000 textos. Sua colaboração com o Correio da Manhã, que durou de janeiro de 1954 a setembro de 1969, resultou em 2422 crônicas. No Jornal do Brasil para o qual colaborou de outubro de 1969 a setembro de 1984, ele produziu 2304 escritos.


“O jornalismo é a escola de

formação e de aperfeiçoamento

para o escritor, isto é, para o indivíduo que

sinta a compulsão de ser escritor. Ele

ensina a concisão, a escolha das palavras,

dá noção do tamanho do texto, que não

pode ser nem muito curto nem muito

espichado. Em suma, o jornalismo é uma

escola de clareza de linguagem, que exige

antes clareza de pensamento. E

proporciona o treino diário, a

aprendizagem continuamente verificada.

Não admite preguiça, que é o mal do

literato entregue a si mesmo. O texto

precisa saltar do papel, não pode ser um

texto qualquer. Há páginas de jornal que

são dos mais belos textos literários. E o

escritor dificilmente faria se não tivesse a

obrigação jornalística.”


No entanto, não deixa de subrinhar: “Meu tesão, mesmo, é a poesia".



10. SALTO


Em 1982, às vésperas dos 80 anos, o poeta expressa sua inconformidade com a destruição do Salto de Sete Quedas, também chamado Sete Quedas do Rio Paraná (em espanhol: Saltos del Guairá), foram as maiores cachoeiras do mundo em volume de água com 13,3 mil m³/segundo, sendo o dobro de volume d'água das Cataratas do Niágara, na divisa EUA/Canadá, e treze vezes mais caudalosas que as Victoria Falls, na Zâmbia. Seu som poderia ser ouvido a 30 km de distância, seu canal principal possuía 4 km de comprimento e profundidades que variavam entre 140 e 170 metros. Eram constituídas por dezenove saltos, que poderiam ser agrupados em sete grupos, razão da denominação Sete Quedas. Guaíra chegou a ser a cidade mais visitada do Brasil.


Em 1966 foi decretada a submersão do Salto das Sete Quedas através da Ata do Iguaçu, onde ocorreria o seu desaparecimento com a formação do lago da Usina hidrelétrica de Itaipu.


Adeus a Sete Quedas


Sete damas por mim passaram,

E todas sete me beijaram.

Alphonsus de Guimaraens


Aqui outrora retumbaram hinos.

Raimundo Correia


Sete quedas por mim passaram,

e todas sete se esvaíram.

Cessa o estrondo das cachoeiras, e com ele

a memória dos índios, pulverizada,

já não desperta o mínimo arrepio.

Aos mortos espanhóis, aos mortos bandeirantes,

aos apagados fogos

de Ciudad Real de Guaira vão juntar-se

os sete fantasmas das águas assassinadas

por mão do homem, dono do planeta.


Aqui outrora retumbaram vozes

da natureza imaginosa, fértil

em teatrais encenações de sonhos

aos homens ofertadas sem contrato.

Uma beleza-em-si, fantástico desenho

corporizado em cachões e bulcões de aéreo contorno

mostrava-se, despia-se, doava-se

em livre coito à humana vista extasiada.

Toda a arquitetura, toda a engenharia

de remotos egípcios e assírios

em vão ousaria criar tal monumento.


E desfaz-se

por ingrata intervenção de tecnocratas.

Aqui sete visões, sete esculturas

de líquido perfil

dissolvem-se entre cálculos computadorizados

de um país que vai deixando de ser humano

para tornar-se empresa gélida, mais nada.


Faz-se do movimento uma represa,

da agitação faz-se um silêncio

empresarial, de hidrelétrico projeto.

Vamos oferecer todo o conforto

que luz e força tarifadas geram

à custa de outro bem que não tem preço

nem resgate, empobrecendo a vida

na feroz ilusão de enriquecê-la.

Sete boiadas de água, sete touros brancos,

de bilhões de touros brancos integrados,

afundam-se em lagoa, e no vazio

que forma alguma ocupará, que resta

senão da natureza a dor sem gesto,

a calada censura

e a maldição que o tempo irá trazendo?


Vinde povos estranhos, vinde irmãos

brasileiros de todos os semblantes,

vinde ver e guardar

não mais a obra de arte natural

hoje cartão-postal a cores, melancólico,

mas seu espectro ainda rorejante

de irisadas pérolas de espuma e raiva,

passando, circunvoando,

entre pontes pênseis destruídas

e o inútil pranto das coisas,

sem acordar nenhum remorso,

nenhuma culpa ardente e confessada.

(“Assumimos a responsabilidade!

Estamos construindo o Brasil grande!”)

E patati patati patatá...


Sete quedas por nós passaram,

e não soubemos, ah, não soubemos amá-las,

e todas sete foram mortas,

e todas sete somem no ar,

sete fantasmas, sete crimes

dos vivos golpeando a vida

que nunca mais renascerá.

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