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Res publica: a coisa do povo nesse 22 de abril

por Flávio Morgado


Supor uma República, construí-la, ou aceita-la, no cerne de seu significado, palavra latina, gesto romano: res publica, a coisa do povo. E então está aqui o nosso espelho, mais que a nossa falha.



A Primeira Missa no Brasil, óleo s/ tela, Victor Meirelles, 1860



Lembro quando quis fazer História na graduação e sabia a quem seguir. Tinha acabado de ler um dos melhores ensaios sobre a construção do período republicano no Brasil, “Os bestializados: ou a República que não foi”, do historiador e cientista político, José Murilo de Carvalho, a quem como um atento ouvinte, acompanhei por mais de três disciplinas e inúmeros cadernos de anotações.


Seu texto é fluido e raro entre historiadores, José Murilo tece, webberianamente, a arqueologia de nossas vacuidades como os verdadeiros edifícios do sistema que escolhemos (ou engolimos) como o mais democrático de todos. Um regime que surge à sombra rancorosa de um processo de abolição da escravatura tardio e sem indenizações, que em defesa da propriedade privada, transformou o primeiro Barão destronado em um republicano de carteirinha. Ativismos sem proposição, uma miscelânea positivista, com um histórico ódio de classe, um rancor escravocrata e um deslumbre de milico. Uma proclamação à sorrelfa, na surdina, contra o povo.



Capa do livro de Josér Murilo de Carvalho



Um jogo do poder, uma quartelada, bastidores de um revezamento de Corte, a proclamação da República é o não-dito mais eloquente de nossa História. Em uma de suas interpretações mais astutas, José Murilo traça no conceito de “estadania” a verdadeira (in)consciência da coisa pública no Brasil, a separação essencial entre o que pertence ao Estado e o que é público. O Estado é um estranho, um centro de poder de cidadanias privilegiadas contra a ralé. Porque foi assim que o povo assistiu à sua alvorada: tiraram o Imperador, agora são os milicos, de agora em diante em tudo se põe “cidadão”. E se deve também apagar todas as fotos do monarca. Assim como os registros de escravos.


Não há uma elaboração. Não há sequer um consenso entre os grupos republicanos, daí que tenhamos tantas repúblicas, ou a mesma em diversas faces. Na vez autoritária dos militares, sempre reivindicando o regime para si. Na vez dos cafeicultores e da reafirmação de nossa vocação agrária e escravocrata, ainda que em “modernos moldes”. Na habilidade ditatorial de Vargas, no cancro duro do Golpe de 64...e por aí segue. Entre estratégias de apagamento e nenhuma elaboração de seus traumas, a adolescência de nossa república segue impulsiva e irresponsável, a democracia é frágil, as armas são muitas.


Imagino então todo esse atravessamento, que passa pela minha formação e cai exatamente no dia de hoje, às vésperas do 22 de abril, no dia em que retorno à sala de aula e dou uma aula sobre Proclamação da República para meninos de 13 anos. No governo Bolsonaro, na república que enterra quatro mil mortos diariamente.



Proclamação da República, de Benedito Calixto, 1893



E é aquela saga. Convulsiono os símbolos, peço que eles abusem da capacidade de desconstrução, alerto à sintomática continuação de nossa bandeira, às articulações dos homens daquele e desse poder, muitos reconhecem que são os mesmos. Um mais esperto antecipa: “morrem os homens, mais continua a classe, né, professor? ”


Dar título ao 22 de abril: descobrimento? Conquista? Invenção? Invasão? Sob qual prisma? Os povos originários são uma lenda ou um safári à classe média, e por mais que eu venha a me imbuir de minha função social em sala de aula, eu preciso comover o meu aluno, que ele se torne um sujeito crítico, autônomo, coletivo, empático. Mas diante da política de extermínio da população indígena que se estrutura desde esse exato dia, e perpassa todo um cinismo inclusive de consumo dessa cultura perseguida, numa jogada desesperada de efeito, a aula começa com quinze inquietos minutos de silêncio.


Quando se tornou impávida essa mudez, e os alunos, também completamente calados, percebendo que não se tratava de uma represália, o ato começa a se exceder. Os alunos cochicham: será que é luto? Algum professor morreu? Contado os minutos, a aula começa: eis a versão indígena sobre o 22 de abril. Um aluno mais enraizado aos almoços de domingo, talvez venha a se entediar com o “teatro esquerdopata do professor que defende índio”, mas um, que seja realmente só um, configura o ato, a importância, de oficialmente o professor de História dedicar esse silêncio como eloquente, e pronto, temos o gesto. Só a partir daí posso ir aos jesuítas, a Viveiros de Castro e Krenak, depois de convoca-los, de trazer os meus alunos.




Darcy Ribeiro com índios Kadiweu, no Mato Grosso do Sul. em 1947.



Um professor vive de poucas vitórias. É triste o entorno de sua entrega. As aulas presenciais retornam em meio a um completo genocídio, as escolas improvisam entre a fina linha da sanidade e da importância social da educação, os transportes estão lotados, mais da metade da população vive sob insegurança alimentar, máscaras abaixo do nariz e a república sob a caneta do Bolsonaro. Não há como não ser irônico pensar todo esse processo, novamente no front, e agora urgente.


Esse silêncio persuasivo é a ponte do que pode afetar o aluno. Passado o constrangimento, vamos à matéria. A explicação da proclamação de um regime, que na prática, nunca ocupou o espaço de representação do povo. O fatídico brado de seu nascimento é dado por um Marechal em fim de carreira, escolhido às pressas e às normas, para que o Exército pudesse tomar o regime para si e evitar a descentralização política defendida pelos federalistas (a elite agrária, os coronéis).


A ausência de traquejo com o poder e a mão bruta de dois marechais (Deodoro e Floriano) acabaria por desgastar a imagem dos militares no poder, dando espaço a toda articulação nos bastidores de uma parte da elite nacional que via com bons olhos uma república federativa aos moldes dos Estados Unidos. A federação permitiria maior capilaridade do poder dessas elites (Rio, São Paulo e Minas, sobretudo), e mais do que isso, o controle da população via um grande pastiche eleitoral, historicamente conhecido como “voto de cabresto”. A querela entre esses donos do poder, é o que viria a abrir espaço para o centralismo de Getúlio Vargas, e assim seguiria nossa aula: ou tentando entender essa sístole e diástole do poder do Estado na República, ou as imolações da elite nacional em torno do poder e o alijamento do povo desse sistema “democrático”.


Mas quero chegar até aqui. Toda aula de História é para chegar até aqui. E para isso, passaremos por períodos terríveis de traumas, por uma tentativa de reorganização nacional a partir de mais uma nova Constituição, a de 1988. Linda, exemplar, humanista, contraditória, fetichista e burlável. Mas um sopro de esperança.


A possibilidade de eleições diretas, a inclusão dos analfabetos, a suposta defesa das terras indígenas, o vislumbre de uma República que finalmente fizesse valer a “coisa do povo”. Uma República, que ao menos em tese, poderia tornar-se finalmente espelho de sua gente, que não fosse aquela que se debruça o professor José Murilo de Carvalho: a república que não foi. A proclamação sem povo, as articulações mesquinhas dos mesmos barões, os meandros do conservadorismo, a passagem do sinhô para o patrão, com poucas modernizações no açoite; uma república que se promete, mas tropeça no seu eterno continuísmo.


E que me seja duro admitir: essa é a nossa república.


Collor não é só o fruto de uma imaturidade democrática, de um debate manipulado pela Globo. Anos depois, viríamos a entender que Collor (ainda hoje senador) é o espelho de uma classe média que talvez seja a mais mesquinha do mundo – porque não lhe basta conservar, mas entender todo e qualquer direito como privilégio. Ele mexe no símbolo dessa classe na década de 90, a poupança, e cai.



O Presidente Collor em evento militar em 1990. Fonte: Acesse Política



FHC vem no estanque do crescimento econômico, da estabilidade do plano Real, da paridade do dólar, do crescimento da Barra da Tijuca, do Itaim e das viagens para a Disney. Surfa uma onda favorável e toma um caldo no segundo mandato. Seu legado é uma elite intelectual de caipiras new rich defendendo o Estado Mínimo, o economês e o terno da Borelli na PUC.


Os anos do PT só foram viáveis por dois motivos: uma carta de redenção aos bancos, numa devida demonstração de armistício com o capitalismo financeiro, e um sintoma claro de que para a direita brasileira, qualquer pauta social já desenha um fantasma comunista; segundo, e talvez o principal e o fatal, porque entendeu, com excelência (e isso inclui todos os atos ilícitos), a história do parlamento brasileiro. O PT fez um acordo, do micro ao macro, que em alguma medida só lhe restaria ou de fato radicalizar as suas pautas, ou estaria à mercê dos interesses de bancadas. Que a esse tempo, as que mais cresciam era a evangélica, a do boi, a da bala e a das subcelebridades.


Como é possível ficar 14 anos no poder, sabendo como se faz para estar ali, e por isso entendendo a fragilidade fundamental dessa República, e não construir um projeto educacional? Em termos gramscinianos, em que momento a luta pela hegemonia cultural pareceu ao PT ser mais fácil pela via do consumo do que pela via efetivamente ideológica? A cova foi cavada e foi cavada em conjunto, até por quem lá tombaria. Não vamos esquecer que é a própria Dilma que assina a Lei Antiterrorismo (com essa péssima definição, que já é um sintoma da difusão de seus interesses) em seu mandato, o que em comparação histórica, equivaleria ao Jango assinar o AI-5 contra ele mesmo.



Posse do primeiro mandato de Lula, em 2003, ao lado do vice-presidente José Alencar. Fonte: Planalto



Se de fato o Partido dos Trabalhadores, com seus mais de um milhão de filiados, significou a ascensão dessa classe ao poder, a pavimentação desse caminho foi feita completamente às cegas.


Se fio a cidadania de um povo, alijado desse conceito tão historicamente como nós, a partir do seu gozo com um Iphone ou uma TV de plasma, eu estou inserindo nele uma lógica de emulação burguesa. A sua exploração passa a ser medida pela satisfação de seu consumo. O caminho desse trabalhador alienado para o empreendedor de si mesmo, incorporando animicamente o espírito capitalista de tornar-se o seu próprio explorador, é curto. Na hora que faltar o Iphone, a democracia cai. E cai feia, ou melhor, cai aos moldes da nossa ágora: bandeiras de tudo que é causa (inclusive da alta do dólar), direcionamentos confusos, apropriação da mídia, Batman, um processo mafioso e vexatório de perseguição política por parte do Judiciário (aquela mesma classe que o PT engordou com seus concursos públicos). Com toda complexidade que há no que se inicia em 2013, uma imagem pode dizer muito: o uso das manifestações em uma campanha comercial da Coca Cola para a Copa do Mundo, “Vem para a rua você também! ”. Um 7x1 toda hora.



Manifestações de 2013. Fonte: Portal Terra



Bolsonaro não é só a brecha de um sistema em colapso, e ainda que eu acredite que em alguma medida essa ascensão bruta da extrema-direita tenha a ver com a verdadeira crise da própria direita enquanto espectro político, no Brasil, a representatividade desse processo assusta.


Pensar agora, com 400 mil mortes nas costas e a economia ladeira abaixo, é fácil colocar o Bolsonaro como um lapso; e no que me concerne como professor de História, ainda que não afeito a prognósticos: se for esse o tratamento escolhido à memória dos anos Bolsonaro, de uma amnésia, de um apagamento de falsa conciliação, recorreremos no mesmo erro da Lei de Anistia – estaremos não elaborando esse trauma. E como um câncer, se lá atrás a Ditadura não foi devidamente tratada em sua memória, a metástase é isso que estamos vendo. Saudações ao Ustra, brindes à tortura, flertes com o autoritarismo, o carnaval cinza do fascismo.


O preço desse corre é na carne. Se não entendermos que esse genocídio é fruto de um processo eleitoral, que toda essa violência de gênero, étnica e social é o resultado de um anseio de uma classe média revoltada com o acesso dos mais pobres aos seus mesmos direitos, continuaremos a conviver com esse fantasma.


Bolsonaro é o espelho de um Brasil, que muito me envergonha dizer, que mais do que uma república que não foi, talvez sejamos a “coisa do povo” que mais foi, e foi à vera. E temo meu pessimismo, temo não poder me ufanar, mas temo mais ainda que o pronunciamento republicano sobre o nosso nascimento em 22 de abril, seja mais um boletim de indígenas mortos por essa pandemia. Evidentemente, com os dados subnotificados: referendando um silêncio ainda mais eloquente que a minha aula.



Foto: Evaristo Sá/AFP




22 de abril de 2021, Rio de Janeiro


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