por Flávio Morgado
Terra Yanomami incendiada, 2022
“Se você tiver uma filha e a der para mim, eu vou fazer aterrizar uma grande quantidade de comida que você irá comer! Você se alimentará!”; “Evidente que você não trouxe sua filha! Somente depois de deitar com ela, irei te dar comida!”.
Essas são algumas das frases relatadas pelo povo Yanomami sobre o avanço e o abuso dos garimpeiros em suas terras. É um relato brutal, algo que poderia tranquilamente ser dito em uma aula de História, talvez na intenção do professor de trazer a realidade do que, perversamente, constituímos como um “contato amistoso”. Se assim fosse, já seria assustador. Mas é de 2022, do ano em que as mortes no campo aumentaram em 75%, do ano em que a Covid-19 dizimou povos originários, com a ajuda ímpar de um governo negligente. É o ano que demarca o fim desse governo, e toda essa urgência me assusta no tanto que ela traduz continuidade.
Protesto após morte de menina Yanomami. Fotografia: Amazôia Real
No relatório divulgado pela Hutukara Associação Yanomami (HAY), no último dia 11 de abril, é possível entender por que que, desde 2019, algumas associações internacionais vêm chamando atenção para o termo genocídio no Brasil. É algo estarrecedor: somente no ano passado, o avanço do garimpo ilegal em reservas indígenas aumentou em 46%; a proximidade desses interesses na região reacende um bandeirantismo nas suas piores facetas.
Há relatos, como na região do Rio Apiaú, de garimpeiros que oferecem drogas e bebidas aos indígenas, e quando todos já estavam fora de si, estupraram uma das crianças da comunidade. Três meninas de 13 anos morreram após os sucessivos abusos em outra região.
É importante lembrar que a Terra Indígena Yanomami é a maior reserva do país, com mais de 10 milhões de hectares distribuídos entre os estados de Amazonas e Roraima, com cerca de 371 aldeias e 28,1 mil indígenas. Em um contexto de mais de três anos de declarada guerra aos povos originários, a presença ostensiva do garimpo gera não só as invasões, como a desnutrição e a proliferação de doenças como a malária, outras duas causas constantes da morte de indígenas.
Mas a verdade é que quando me refiro a “pelo menos três anos de declarada guerra aos povos originários”, estou, de um lado, reafirmando essa ideia de uma espécie de egrégora em torno (ou a partir) do governo Bolsonaro, em que — para além de leis que afrouxem ou permitam o avanço da violência sobre as terras indígenas — existe uma predisposição acionada, sobretudo pelo próprio discurso presidencial, de permissividade com toda essa violência. É como se o agressor nunca estivesse oficialmente tão confortável, e se tratando de um pacto republicano como o nosso, isso é mais do o que suficiente para formar essa instância coletiva que aqui resolvi chamar de “egrégora”. Por outro, em que medida essa autorização era necessária para uma prática que sempre se fez na surdina dos grandes veículos de comunicação, mas que se edificou como lei na região em que atua?
Porque não são três anos de uma guerra declarada, e sim 522 anos ininterruptos Cada vez mais evoluída; nas horas em que foi mais sutil, foi também a mais cruel. E nas horas em que mais esteve às claras, não nos indignou, apenas ruboresceu a nossa cara pálida.
Porque o avanço do conservadorismo e da necropolítica como ordem não são meros fenômenos eleitorais, mas um alinhamento, quase justo (não fosse o peso da aroeira que desce diariamente em nosso lombo), da produção cínica de nossas contradições. Vou repetir aqui, talvez pela enésima coluna: a sagacidade em relação à leitura do bolsonarismo em nossa construção não pode ser a de uma excepcionalidade, um mal diagnosticado e imediatamente extirpado. Isso daria a força simbólica ao que, em larga medida, são quatro anos de inegável frontalidade com os nossos vícios. O ano de 2022, portanto, deve ser levado à raiz de sua cisão. Se marca o bicentenário de nossa independência, que a levemos a cabo, de preferência, de nós mesmos.
E digo isso, porque não se trata de rastrear só as medidas oficiais em relação a essas populações para entender o descaso, mas de estar atento, pois o que entendemos como acolhimento, talvez seja também agressão.
Acnur Brasil. Foto de divulgação.
A data era 17 de março de 2022. Abri o portal de notícias e vi a manchete: “Venezuelanos indígenas acusam Operação Acolhida e Acnur de ameaçar cortar comida caso não troquem de abrigo”.
Em primeiro lugar, em relação à manchete, quero salientar a ordem, nada gratuita, da disposição dos termos: o certo seria” indígenas venezuelanos”, e não o contrário, como está na matéria. Parece um preciosismo, mas é um reconhecimento histórico de origem, que ajudaria, inclusive, a todos os envolvidos a lidar com a especificidade do povo Warao.
Em segundo, e cerne da minha indagação, é que era a primeira vez que eu via a mídia tradicional denunciar os tratos de uma associação internacional com o peso político do Acnur, braço da ONU nessa causa.
Para os que não estão inteirados, a Operação Acolhida é comandada pelo Exército Brasileiro, e tem como missão cuidar da logística de acolhimento dos refugiados venezuelanos que cruzam a fronteira, principalmente em Roraima. As denúncias em relação ao trato dos militares com os imigrantes são também de uma narrativa colonial, com direito a toda catequese moral que nos escolamos desde 1500, contando inclusive com “cercadinhos da vergonha”: um gradeado no chão de brita, em que os militares obrigam os indígenas alcoolizados a se deitarem até recobrarem a consciência e darem exemplo ao abrigo.
Mas o Acnur é uma agência humanitária. É a agência da Organização das Nações Unidas para refugiados. Uma instituição que tem como propósito promover soluções duradouras de proteção e acolhimento aos refugiados. Era de se esperar que, em uma organização fundamentada em especialistas, fossem eles os adversários dessas práticas abusivas do Exército. Era de se esperar que, conhecendo a particularidade dos povos refugiados, toda essa logística humanitária ficasse sob a responsabilidade dessa organização. Mas parece que não.
Para entendermos um pouco do caos que se instaura nas regiões de fronteira do país, é preciso assumir uma premissa: se o acolhimento aos refugiados em geral já vem enfrentando uma série de críticas em relação aos abusos cometidos pelas autoridades responsáveis, acresça a esse bolo o desprezo histórico que temos ao ser indígena, e pressuponha o dobro de crueldade.
O povo Warao é tradicional do sudeste da Venezuela, e assim como todos os povos originários, padece do mesmo mal colonial que persiste: expropriação, não reconhecimento de suas demandas, extermínio, preconceito. E também como os povos originários do Brasil, possuem uma relação tensa com a sociedade branca. Se as condições de vida de um engenheiro venezuelano em Caracas, ou de um professor universitário levam a uma migração urgente, é de se imaginar o impacto da crise de mais de dez anos na Venezuela ao povo Warao. De tal forma, que é a população indígena que mais buscou refúgio entre as nossas fronteiras.
Indígenas Warao atravessaram a fronteira de Roraima. Foto: FUNAI/Gov.Br
Chegando aqui, o real: abrigos superlotados, tratamento abusivo e mais uma etapa de uma diáspora sem fim.
Porque são muitos os motivos que ameaçam esse acolhimento: verba cortada, interesse econômico, ano político, logística, mas, sem dúvida, o pior é o que se manifesta numa vocação colonial que extrapola as fardas.
Indo atrás de informações, e elas não são simples de serem dadas, afinal, estamos falando de uma região de muitos interesses e balas, percebi que não se trata de uma guerra fria entre as organizações, de uma disputa política árdua entre essas frentes, de possíveis denúncias abafadas, ou o que seja. É possível que isso também faça parte desse conflito, mas percebi, sobretudo, uma política de acolhimento canhestra, por vezes negligente, por vezes complacentes com os abusos. E o peso político de uma crítica à ONU é infinitamente maior, ou menos confortável, do que ao Exército na nossa mídia tradicional.
Atualmente, o Acnur resolveu pela junção de quatro abrigos que existem em Roraima. Quatro estão em Boa Vista, e um na fronteira, em Pacaraima. E numa dessas decisões, foi resolvido, de maneira arbitrária, que os Warao iriam para o abrigo de Pitolândia, o mais antigo deles.
Uma fonte, que preferiu não se identificar, afirmou que a resistência dos indígenas se deu desde o início. Primeiro, pelas condições precárias do local, já que os relatos aproximam o ambiente da antiga penitenciária do Carandiru: paredes mofadas, falta de condições básicas de higiene e de acomodação das famílias. Segundo, porque o abrigo fica a milhares de quilômetros da escola onde estudam as crianças. E, por último, porque a relação com os outros refugiados não indígenas é de tamanha tensão, que meses antes da remoção de seus abrigos, um indígena foi assassinado a pauladas em um abrigo misto, algo que, obviamente, foi subnotificado para que continuasse o plano de remoção.
O "cercadinho da vergonha" em abrigo indígena de Roraima. Fonte: G1
Frente à organização dos indígenas, a postura da organização humanitária foi a de não conter o avanço militar e violento, além de endossar as chantagens em relação ao abastecimento dos abrigos como condição para a mudança. Como no início de nossa coluna, e também das primeiras expedições, cá estamos nós, mais uma vez, frente a um caso de chantagem com a vida indígena: ou acata ou morre.
Pouco tempo depois de ter recolhido essas informações, vim a saber que a remoção tinha sido mesmo autorizada, que nenhuma das condições de vida (não são outras as condições exigidas) dos indígenas foi respeitada, e que durante a operação, um dos Warao, mais velho e adoecido, não conseguiu se levantar da rede após o comando da remoção e foi espancado até a morte.
Esses indígenas estavam sob a vigília de talvez umas das poucas instituições pelas quais ainda preservamos algum respeito. Percebam que é também a ela que a Ucrânia, encurralada, deposita suas orações. Em larga medida, para muitas questões relacionada aos povos originários, esse peso político internacional pode salvaguardar a sua vida, ou ao menos deveria. E é exatamente por isso, pela premissa que nos vendem em suas bandeiras, que muito mais importante do que estar atento aos desmandos de um Exército (já calejado de sua impunidade nessa causa), é denunciar o descaso, a complacência subnotificada que talvez seja a última esperança de uma forma de estar no mundo que, há séculos, é dizimada e canta a queda de seu céu.
Não é conhecimento que nos falta, tampouco informações, estratégias de comoção, atenção às representatividades, e até mesmo uma certa capitalização da empatia. É a maneira como tudo isso, se não traduz um sintoma, no mínimo, entrega a sua ineficácia frente ao genocídio. São discursos, inflamados e inflacionados. Formas de postergar a inadiável reunião sobre a culpa branca.
Rio de Janeiro, 19 de abril de 2022. Dia do índio.
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