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Pode existir uma anti-História?

por Flávio Morgado




Fotografia: Alexander Nemenov



O atravessamento de uma palavra. Um neologismo, um gesto, uma tentativa de conceito à fórceps. Foi assim que recebi, ao ouvir um dos podcasts que mais acompanho desde o início do conflito na Ucrânia: um embaixador russo, ao declarar mais uma ofensiva sobre a população vizinha, arremata:


“A Rússia está disposta a ajudar a população ucraniana a se libertar desse governo autoritário, nazificado e anti-História.”

Vamos nos ater ao que poderia ser uma anti-História.


Do ponto de vista estritamente teórico, a concepção de um movimento que seja anti-histórico é impossível. Porque não é a História essa narrativa metafísica que plana entre nós atrás de gestos grandiosos e oficialidades de governo. A História é uma boca que tudo come. Seu entendimento enquanto disciplina passa necessariamente pelo ofício do historiador, ou seja, não existe um postulado dado à História enquanto verdade, mas uma amplitude conceitual que a autoriza inclusive como esse campo de batalha de narrativas, essa disputa constante por um indefinível que venha a constituir exatamente o seu embate como a sua integridade conceitual. Ou, como se fosse possível resumir: dentre muitas das nossas invenções, ou o que a nossa racionalidade construiu, e mais do que isso, pode se afirmar como a espécie dominante no mundo, exatamente por implicar esse poder de consciência, a História é a nossa apoteose – registro, lição, fracassos, dialética, revisões, construção de um imaginário coletivo, uso político da memória. É bússola e juiz. Sua única premissa é a de abarcar tudo que for vivo, mesmo os silêncios. Seu papel, seu uso, seu declínio, estão inteiramente ligados à ação humana. Sua condição erótica é nunca estar impune, é por isso que ela ainda nos seduz, é por isso que ainda estamos nos revirando frente aos mesmos medos, o medo de seu curso.


Para o embaixador russo, esse curso parece ter uma convicção prévia. Como se o movimento representado pelo presidente ucraniano, além de atingir os interesses de Putin, fosse ainda mais grave, ele fosse um contrassenso, um movimento que “vai contra a própria ordem da História”.


E se certo, o que aconteceria se fosse possível alguém traçar sobre nosso mapa um movimento contra a História? Por excelência, um movimento que venha a mudar um paradigma histórico é chamado de revolução. O que sabemos, não é definitivamente o que acontece no Leste Europeu: tanto no que se refere à própria lógica de contenção de poder, tanto na ofensiva de Putin, quanto na resistência de Zelensky. Por outro, no tom de remake que há nisso tudo: Otan, antigos limites da União Soviética, blocos de poder. Se existe algum movimento de contrafluxo, ele está muito mais ligado ao retorno de um recalque, o que estaria mais próximo da psicanálise, do que de um movimento histórico que traduza qualquer novidade, ainda que reacionária.


O curioso é que a afirmação do embaixador, toda ela fundamentada em uma certeza histórica, acaba por soluçar, deixando escapar esse ato falho do poder: em que ao se inteirar tanto do conceito, acaba por assumir essa mão bruta sobre o que seria a verdade histórica. Para ele: a URSS não deixou de existir em um plano político e expansionista, houve sim uma abertura econômica, que não necessariamente traduz uma mudança política ou nas orientações daquela parte do continente, que recebe como uma afronta histórica, um governo e um movimento de aproximação do ocidente tão próximos aos seus domínios. Rememorar o nazismo o atualizando no termo “nazificado” também reacende, com profundo cheiro de naftalina, o velho paiol soviético.


Existe uma História, e ela é a versão russa. O delírio do poder é uma História sem consequências. Como se fosse possível seguir uma linearidade política e econômica, sem qualquer alteração no tabuleiro, porque os costumes e a vontade do mais forte deve preponderar. E perceba, ainda isso a História absorve, ainda isso não é um contrassenso: mas um sintoma evidente, um índice claro do que significa o poder e o conservadorismo dentro do curso histórico. O embaixador não erra a definição, ele apenas disseca, sem querer, uma delas.



Zelensky e a primeira-dama para a Revista Vogue desse mês



Por outro lado, isso não é uma apologia ao governo de Zelensky, pelo contrário. Se eu pudesse escolher um mote principal para esse texto ter nascido, sem dúvida, foi a minha indignação ao ver o novo ensaio fotográfico do casal presidencial da Ucrânia para a revista Vogue, mídia da alta sociedade da moda.


A fala do embaixador é como uma fagulha. Ela acende a curiosidade sobre o debate em torno de um termo levantado. A postura de Zelensky é como um diagnóstico, não da certeza de que ele pratica um movimento anti-História, mas ainda pior: de que o futuro venha a nos reservar conflitos e dilemas tão frontais, quanto estarrecedores.


Até o momento, são mais de dez milhões de refugiados ucranianos, mais de uma dúzia de cidades sitiadas pelos russos, relatos de apreensão indevida, tortura e assassinato de civis. Por ser um dos maiores exportadores de grãos para o mundo (a Rússia é a segunda e a Ucrânia a terceira), a crise de abastecimento afeta todo o planeta, galopando inflações, aumentando abismos sociais, estimulando golpes políticos e entropias sociais. O capitalismo não globaliza bens e solidariedade, mas ele nos dá unidade em conflitos e doenças. Também a guerra viraliza.


E se existe algo a ser legitimado em todo esse mise em cene que se faz em torno de decoros e oficialidades da tradição do poder; nesse sentido, lembrar que bandeiras são hasteadas pela metade em solidariedade aos mortos, que sinos tocam em condolência, e que tributos oficiais são dignos de chefes de Estado, deixa uma mínima evidência que momentos como esses foram registrados e carregados como herança do poder até aqui, porque, em alguma medida, e com todo distanciamento representativo que temos como crise, isso ainda traduz algum grau de humanidade nas práticas coletivas de poder.


É pedagógico, diplomático e humanista que um chefe de Estado seja no mínimo digno, compadecido e implicado em sua função. (Como pesa escrever essa frase sendo um brasileiro em 2022). Quando Zelensky, uma semana após o início da guerra, anuncia que só usará modelitos militares (não fardas, que seria no mínimo irônico ao presidente que foi eleito por ser um humorista, mas camisas e calças caquis, cortadas sob medida), e que sua barba por fazer era um símbolo do comprometimento com o momento, eu deveria no mínimo não me assustar quando ele recebeu uma jornalista da Vogue para um ensaio de fotos no bunker de guerra. Mas tenho ainda fé na força pública. E foi estarrecedor ver aquilo tudo ali: o editorial, as poses, os trajes, a insensibilidade, o falso glamour, a nossa decadência distópica, que é sempre, para o desespero de todo crítico cultural, acima de tudo, estética.


Mas por que, ainda assim, Zelensky não está no curso de uma anti-História?


Porque foi eleito dentro da mesma inexplicável e veloz mudança de paradigma que as redes sociais trouxeram aos estatutos democráticos. Um comediante que se populariza com um discurso anti-política, elege-se presidente e se vê diante da pior crise política deste século. Ele não é só despreparado (o que inclusive dentro de uma coreografia das políticas internacionais, surge como uma oportunidade e tanto para o avanço de Putin), ele é um representante eleito, na acepção do termo, no que isso confere a todos uma responsabilidade representativa. Bolsonaro está longe de ser um comediante, mas foi eleito no mesmo palco político. E o que isso quer dizer?


De um lado, que é também um sintoma dos nossos tempos que esteja na boca do poder a palavra anti-História. O choque geracional foi catalisado de uma maneira inconcebível, e isso é uma questão geopolítica, que em larga escala, está dada no embate no Leste Europeu (a velha reminiscência soviética czarista X a fragilidade e as contradições de um novo poder que é catapultado na cena política), mas também no que significou o avanço da extrema-direita como um movimento de rebote a toda discussão de gênero, raça e classe que vem se afunilando.


É como se o momento fosse o de um imenso limbo de conceitos em suspensão, como se fosse o momento grave de toda uma guerra de narrativas. Mas ainda assim, jamais uma anti-História. Não é uma trombeta final que toca, mas uma fumaça que se dissipa. Uma densa fumaça tóxica que se dissipa nesse início de século, mas que para o nosso desespero, não nos dá fronteiras menos cínicas, mas uma frontalidade crua com o que venha a ser exatamente o curso da História: esse imenso limbo de conceitos em suspensão, e em disputa.


É plausível que o conceito espectral de uma “anti-História” seja mais do que um índice, um rastro dessa caminhada humana, mas funcione como um operador teórico em um tempo de distensão do horizonte de expectativas de gerações atravessadas por uma ordem indecidível. Também é a arma de criação de uma lógica de contrassenso, da fabulação de um inimigo civilizacional, assim se fazem as guerras: mesmo que se esteja diante do espelho.


Por isso, ter o ensaio presidencial ucraniano à Vogue como um mote é como por uma consequência no início do argumento. Algo que já está dado, algo incontornável, já no estômago da História. Uma indigestão civilizacional, e que por ser a estética, a mais gritante das nossas crises (e seu resvalo imediato na ética), o declínio fosse se desvelando nos detalhes mais sutis, mas não menos desumanos. Porque me parece essa a nossa urgência, antes de uma anti-História, uma anti-Humanidade.


Na falta de um conceito mais preciso, ou mesmo de uma imagem que dê conta desse desespero, é como se o capitalismo (e aí cabe pensar o sistema não só nas suas nuances, mas sobretudo em seu acúmulo de traumas), em última instância, capturasse a nossa própria humanidade. De maneira sutil, entregando, na medida que constrói e traduz nossos desejos, interações que nos distanciam cada vez mais de um pacto de conciliação. As redes sociais, um bom exemplo dessas iscas, constroem bem esse simulacro: em que as interações são supostamente humanas, mas os sentimentos e as demandas já são todos de uma pasteurização e de uma subjetividade capturada pela ordem capitalista – a projeção narcísica, a domesticação da dor e da diferença, a lógica do bloqueio e da exclusão digital, a capitalização e publicização de uma rasa ou falsa empatia. É como se as redes sociais operassem como uma espécie de bolsa de valores das virtudes, e toda interação desde então tem sido especulativa e interessada. Não são robôs que a operam, somos nós contra nós.


A eleição de Bolsonaro, a ascensão de um Zelensky, ou mesmo a afirmação de Putin no poder estão nessa esteira, de um embate geracional em relação à liberdade e à segurança da internet, a falência de velhas estruturas numa velocidade estonteante, o rebote de muito recalque, a articulação cínica dos boots e das notícias falsas, as teorias da conspiração, o disfarce de um outsider, ou o placebo bélico de uma anti-História. Que nem sequer nos assiste, mas se faz em cada gesto, comendo tudo que está posto.


Ela não para, não enfraquece, não corrige. Indiferente ao curso de nosso declínio, por hora, a História também registra apatia.





Rio de Janeiro, 31 de julho de 2022

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