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Foto do escritora palavra solta

Ouvindo o Transa 50 anos depois - faixa a faixa

por Pérola Mathias




Caetano Veloso e Jards Macalé em Londres, 1971



Cada uma das 7 faixas que compõem o Transa encerra em si um ritual inteiro, com um trânsito energético e musical próprio. Cada título, um transe. O disco não pode ser dissociado de seu contexto histórico de criação, mas os ouvidos que voltam a 1972 como testemunhas de uma ditadura torpe e sanguinária podem ouvi-lo, também, através das camadas de histórias e sons que se interpõem desses 50 anos. No intervalo desse meio século, o álbum já foi considerado o melhor da extensa obra de Caetano Veloso; rotulado como o favorito dos jovens; aquele que definitivamente consagra o artista em âmbito mundial; eleito 10º melhor disco brasileiro na votação da revista Rolling Stone de 2007. Tudo isso sem ter um único hit radiofônico, mas com uma profusão de vida intensa – mais, até, do que unicamente de elementos apenas musicais.


“You don’t know me”, com seu começo que parece trazer-nos uma balada folk com o riff da guitarra de Jards Macalé acompanhado da bateria, pode ser interpretado com um recado do compositor exilado em Londres àquele povo. Afinal, ali ninguém o conhecia mesmo. E, segundo descreve em Verdade Tropical, Caetano sentia-se tão deprimido em seu primeiro ano ali que mal tinha vontade de sair e interagir, tendo pouco frequentado shows, peças, museus, parques... “there’s nothing you can show me from behind the wall”.


A firmeza com que entoa o primeiro verso, que dá título à canção, me leva a querer interpretar também que a afirmação pudesse ser um recado para os militares. Afinal, além de ter passado dois meses preso esperando por um interrogatório pífio em unidades da polícia no Rio de Janeiro, Caetano pôde constatar os métodos de tortura que ali aconteciam, conhecer outros presos políticos e viver a humilhação da estrutura carcerária. Houve ainda uma prisão domiciliar em Salvador antes de encarar a barra de ir para um país estrangeiro sem ter vontade de fazê-lo e sem saber por quanto tempo. Depois de um ano fora, o cantor havia ainda feito uma breve e desgastante – ainda que, ao mesmo tempo, revigorante – visita ao Brasil para comemorar com sua família o aniversário de 40 anos de casamento de Dona Canô e Seu José.


Chegando ao Rio de Janeiro de avião, foi interrogado por 6 horas, nas quais os militares tentaram convencê-lo a criar um jingle para a rodovia Transamazônica, fazer um show na TV Globo para demonstrar que estava tudo bem e dar entrevistas com cuidado. Tendo gravado Transa depois desses acontecimentos, enfrentando toda a situação de frente, seria uma boa resposta à escória da república das bananas: você(s) não me conhece(m)!. E ele já sabia, ao menos um pouco, o que ocorria por trás dos muros dos quartéis por ter estado neles. Se fosse essa a intenção jogar na cara dos militares, que o tinham como inimigo e delinquente, que eles não o conheciam, me parece um recado bem dado. Tão bem dado que reverbera pelos dias de hoje e ressoa no peito dos que menosprezam os anos de chumbo e tentam recriá-los, usando a cultura como bode expiatório de uma ideologia – ou de uma espécie de psicopatia social.


Não à toa, agora como no período Tropicalista, o autor de tantas “canções críticas” – no sentido “Santuziano”[i] do termo –, segue sendo uma voz intelectual e política de peso que vem da cultura. Podem até menosprezá-lo, mas todos nós o conhecemos, continuamos conhecendo e, por trás desse muro de injustiças, Caetano continua trazendo à luz o que tentaram deixar enterrado: vide a descoberta do documento que transcreve o fatídico interrogatório de 1969, lido e comentado por ele em Narciso em férias, dirigido por Renato Terra.


A grandeza da canção que ultrapassa esse meio século não para aí, já tendo exaustivamente comentada as referências às demais músicas populares que insere ali como colagens que esticam a “session” de gravação da faixa arranjada por Macalé e executada pela banda: o próprio Caetano no violão, Macau, Áureo Souza na percussão, Tutty Moreno na bateria e Moacyr Albuquerque no baixo. Um recurso estético e de composição que ao qual já era afeito durante o período tropicalista e que aqui aparece nesse outro formato[ii]. Essa ideia de colagem com referências e citações também perpassam toda a obra do compositor, seja com outras canções populares ou com frases de escritores como Camões, Pessoa, Levi-Strauss, Manuel Bandeira, etc. E aparece ainda, pela primeira vez, o uso da metacitação, com Gal Costa cantando no backing vocal sua música “Saudosismo” – recurso que caracteriza o último disco lançado, Meu coco, de 2021.


“Nine out of ten” começa com uma introdução de guitarra e baixo que tem um fade out, parecendo que acabou o que não tinha começado, até a entrada sincronizada entre a voz de Caetano com seu violão como base e a guitarra de Macalé se destacando em contrapontos e diálogos consonantes com a percussão. “Walk down Portobello road to the sound of reggae” preconiza na música brasileira o gênero que ganhava as ruas londrinas com a intensa imigração jamaicana para o país, responsável por uma espécie de revolução musical no país no fim dos 60’s e dali em diante – rude boys, Trojan Records, The Clash... Para Caetano Veloso e Gilberto Gil, morar em Nothing Hill Gate e estar mais perto jamaicanos que ali circulavam significava uma alegria causada provavelmente pela identificação racial e com suas origens baianas. Caetano diz ser esta sua música favorita do disco. Sentimos que a afirmação “Estou vivo”, contra tudo e todos, é uma resposta, sim, àqueles que quiseram o “desvirilizar”, tirar a capacidade do gozo e do choro, mas é também uma constatação íntima, sensorial, física: “feel the sound of music banging in my belly”; cinema na telly, se emocionar com um e vários movies stars, coisas que Mário Frias jamais entenderá, muito menos sentirá. São evidências de que, sim, existimos, e somos complexos. Alain Delon sentiu tanto que não quer mais continuar. Cá temos uma musa como Helena Ignez sem uma mostra sequer em sua homenagem.



Londres, 1971



Em “Nine out of ten” se materializa uma conexão do Atlântico negro entre África, Jamaica, Bahia e, mais uma vez, ouvimos uma música que parece ter uma estrutura circular. O baixo de Moacyr capta a linha necessariamente protagonista e sexy do reggae, e com as batidas que giram em torno dela sintonizamos o transe proposto com o corpo, coroado com o grito de “bora, Macau!” e seus solos (nem tão) sutis. E é justamente o baixo que faz o fade out final, criando uma estrutura de espelho com a introdução.


No artigo “Triste Bahia: Caetano Veloso e o caso Gregório de Matos”, de 2017, Rafael Julião retoma a formulação de José Ramos Tinhorão a respeito da poesia de Gregório de Matos, poeta baiano do Setecentos, na qual o crítico considera que a obra dele deveria ser estudada como versos da música popular, exceto pelos sonetos, cuja forma não convida à música. Pois bem, em “Triste Bahia” Caetano Veloso musica um trecho, justamente, de um soneto de mesmo nome. Julião observa ainda outra coisa muito interessante: o fato de que a crítica de Matos à sociedade era de cunho conservador, pois a sátira, vindo de um membro da aristocracia, “mais reafirmava as estruturas sociais do que se propunha a transformá-las”, sendo dirigida a personagens específicos que atrapalhavam a ordem e perturbavam a estabilidade de classe à qual o poeta estava inserido. Enquanto que, ao ser interpretada por Caetano, sobretudo naquele momento, o mesmo texto se torna algo progressista, que pode ser ouvida como uma crítica às desigualdades sociais absurdas que marcam a cidade da Bahia, Salvador, ao longo de sua modernização e industrialização.


Se a “Triste Bahia” do Boca do Inferno se referia à uma Salvador que era a capital do Brasil e, portanto, fala da própria máquina estatal; com Caetano a referência passa a ser exclusivamente local. Só que ele expande a alusão antes feita à antiga cidade sede do Estado nacional para sua própria região de origem: o recôncavo baiano, que passava, desde o início da República, por um processo de empobrecimento, exploração e devastação ambiental, como descreveu Chico de Oliveira em “Elo Perdido: classe e identidade de classe na Bahia” ou o próprio Caetano nos versos de “Purificar o Subaé”. Para fazer tal jogada, Caetano troca a anáfora “triste Bahia” para “triste Reconôncavo” e insere entre as estrofes do soneto canções de domínio público e populares, como a de Caymmi, em que cria uma narrativa própria sobre uma História em nada estanque.


Entre a triste Bahia e o triste recôncavo, encaixam-se cantos de capoeira, como o que diz da ida de um dos principais mestres de capoeira, o mestre Pastinha, à África em 1966 para o Primeiro Festival de Arte Negra de Dakar, no Senegal, para o qual o Itamaraty enviou uma comitiva de artistas brasileiros. A inserção de outro verso de capoeira, adaptado do próprio Pastinha por Caetano, “eu já vivo tão cansado / de viver aqui na Terra / minha mãe eu vou pra Lua …” lembra ainda o contexto da ida do homem à lua - qua aconteceu, coincidentemente, no dia do show de despedida “Barra 69”, cujo objetivo era arrecadar fundos para a viagem de exílio. Antes, ainda, a Terra havia seido fotografada do espaço, reportagem que chegou até o compositor na prisão e que resultaria na música do disco “Muito”, de 1978.





O que é mais marcante na canção é a marcação do berimbau e a percussão que se intensifica em diversos momentos, praticamente formando uma gira. Não à toa, versos do candomblé também se fazem presente, bem como versos clássicos do improviso do samba de roda do Recôncavo. Mas, como não poderia deixar de ser, tendo em vista o sincretismo religioso que sintetiza a história colonial da Bahia, a citação final de “Triste Bahia” é o hino de Nossa Senhora da Purificação, padroeira da cidade de Santo Amaro, com um canto de terreiro.


Eu (eu, Pérola), quando acordo melancólica, tal qual a voz de Caetano na introdução de “It’s a long way, cantando na minha cabeça uma antiga música dos Beatles, geralmente se trata de “Black Bird”. Mas enquanto os músicos baianos estavam no exílio, os Beatles tinham recém lançado seu último disco, “Let it be”, o último da banda - e que pudemos recentemente acompanhar como foram os meandros da gravação através da série editada por Peter Jackson. E a música que inspirou Caetano para compor a quarta faixa do Transa foi “The long and widing road”.


A melancolia certamente foi um estado de espírito bastante presente na temporada londrina, especialmente porque havia a incerteza sobre quando e se seria possível voltar ao Brasil. E, como se diz, a dúvida é mais dolorida do que a certeza: “we’re not that strong, My Lord”. Mais uma vez a costura de referências vai criando uma poesia própria, em que o lado melodioso e solto fica mais colado ao lado pop da canção, enquanto que, nos cantos populares brasileiros selecionados, ouvimos um canto mais forte e preciso. Há uma quase pausa dramática para entoar “ozóio da cobra verde / hoje foi que arreparei” e uma percussão marcada para citar Caymmi. Se tem um Deus que sabe que não força que sustente alguém vivendo sob a dúvida, há a sabedoria ancestral de um povo. E fica sempre latente, nem que seja como eco, o amor de Caetano Veloso ao Brasil em cada detalhe de sua Música. Um Brasil ingrato sob a ditadura - assim como hoje, um Brasil ingrato sob o Bolsonarismo. E é por isso que Transa pode também ser ouvido com ouvidos de hoje. Porque ajuda e destacar uma linha nada discreta que liga a obra do artista, que este ano veio nos dizer que não vai deixar que um viúvo de torturadores esculache nossa história.


E, como sem samba não dá, Caetano imortalizou o samba “Mora na Filosofia”, do multiartista Monsueto, que já havia sido gravado por Bethânia em seu primeiro disco, de 1967. É uma versão sem retoques, em que o cantor explora os agudos de sua voz, bem como a interpretação firme e pausada que dá peso às palavras. Acho que mais do que isso é desnecessário falar.


A penúltima faixa do disco, “Neolithic man” na maioria do tempo de duração da música, a percussão é minimalista enquanto o Caetano parece passear pelo folk rock na letra em ingês. Essa dinânima é rompida com a costura dos versos “Quem tem vovó, pelanca só”, à qual se junta novamente a voz de Gal Costa e uma percussão contínua e acelerada. Difícil dizer qual faixa parece ser a mais afeita a experimentações, mas “Neolithic man” parece se destacar pelos contrapontos entre os silêncios, a bateria que puxa para uma referência mais jazzística, ficando bem ao fundo, e um violão cujo ritmo lembra o dos afro sambas de Baden Powell.


Aqui o leitor já deve estar cheio de tantas voltas para um disco tão bom de ouvir que dispensaria tantas palavras alheias. Prometo encerrar o devaneio, mas antes lembrando das imagens inéditas recuperadas pelo diretor Marcelo Machado do festival nas Ilhas Wight, no qual Gilberto Gil se apresentou e Caetano acompanhou de perto. Elas transmitem um clima sonoro de improviso e estudo que lembram as coordenadas sonoras de Transa, pensadas por Caetano, dirigidas por Macalé e produzidas por Ralph Mace. Além, é claro, de aproximar-se do universo sonoro e performático dos Rolling Stones de Beggars Banquet e a imortal “Simpathy for the devil” e Let it bleed.


E, por fim, “Nostalgia (Tath’s what rock’n’roll is all about), com sua crítica divertida aos adeptos do gênero e sua clara filiação ao estilo folk de Bob Dylan. E, se o compositor americano mereceu o Nobel, eu apostaria que o nosso também deveria ter o seu, por tudo e tanto.

[i] [ii]Ver o artigo “Ó quão dessemelhante? Dialogismo e campo musical no LP Transa, de Caetano Veloso”, de Allan de Paula Oliveira e João Pedro Schmidt na revista Opus, v. 24, n. 2, p. 119-139, maio/ago. 2018.

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