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O paraíso perdido de Rafael Alonso

por Pollyana Quintella



“Se fudeu”. É a primeira coisa que vejo ao entrar na galeria Athena, em Botafogo, para visitar a exposição Olho Grande, de Rafael Alonso. Olho ao meu redor e estou sozinha, então a mensagem na pinturinha em degradê-pôr-do-sol é mesmo pra mim. Ela soa mais sarcástica do que agressiva. É novembro de 2020 e, passados oito meses de pandemia nos trópicos, parece que a sensação de que estamos fodidos foi se tornando um lugar cada vez mais familiar.


Apesar disso, a pinturinha é um bom preâmbulo para esta mostra, já que há ali um conjunto de coisas em estado de crise. Sim, um pintor às voltas com o seu papel; uma cidade às voltas com a sua imagem; os clichês às voltas com a sua eficácia; o meio da arte às voltas com a pandemia. Soprada a forte ventania, tudo está fora do lugar.


Ao entrar no espaço, vejo uma fotografia no chão. É Hans Donner, o designer responsável pelo logotipo da Rede Globo, que aparece segurando uma pintura de Alonso. Ao lado dela, um papel de presente barato simula as formas da calçada de Copacabana, próximo de uma maquete de um carro alegórico de escola de samba. Adiante, há uma coruja kitsch coberta de paetês; peças de gesso duvidosas; recortes de madeira empilhados e semi-pintados; além de um enorme andaime utilizado como suporte para exibir algumas pinturas com motivos vegetais. Noutro canto, um carrinho de tintas permanece intacto e limpo. Duvidamos que ele tenha sido utilizado, e seu papel talvez seja o de um acessório fetichista nesse espaço que é um misto de exposição, ateliê e cena.


Nada do que descrevo aqui, no entanto, é capaz de oferecer uma descrição definitiva de Olho Grande. Isso porque Alonso reconfigura a exposição semanalmente e as relações entre o espaço da galeria, as obras e uma gama de objetos aleatórios seguem em redefinição. Uma semana depois da minha visita, o artista agrupou todos os componentes num dos cantos da galeria, como se integrassem um campo magnético. As peças do tabuleiro se deslocam sob os gestos do pintor-jogador, mas também podemos imaginá-las com autonomia. Uma rebelião de pinturas; imagens em greve; objetos cansados de alimentar lugares-comuns. I'm not exotic i'm exhausted. Alonso produz sua própria ventania, sua atitude é soprar; deslocar.


Mas há casos menos variáveis, como o da parede repleta de pinturas empilhadas que traçam uma grande diagonal do chão ao teto, espécie de quebra-cabeça. Neste “empilhamento”, trabalhos feitos em momentos distintos configuram uma nova obra e são parte de uma mesma trama. Como é recorrente em sua produção, há ali faixas, estampas, folhagens, um uso de alto contraste cromático e texturas lisas, além de uma ou outra palavra inscritas na tela. O que parece abstrato também se refere aos signos da cidade, da paisagem, do cotidiano e do design popular.





Além disso, há dois grandes círculos. Um fixado do lado de fora, na fachada da galeria; o outro do lado de dentro, apoiado entre a parede e o chão. São os sóis de Olho Grande. Na ficção de Alonso “o sol caiu. Tombou do alto. (...) O sol cansado não se retira mais. Um poente que nunca se põe.” O da fachada, sob a ação das intempéries, literalmente despedaçou e caiu. Sua história é a de um astro cansado que se recusa a fazer seu papel – estamos em greve tórrida.


Na contramão das leituras hegemônicas da arte brasileira, cabe pensar com o artista o lado b desse sol dos trópicos. Não a positividade solar de Di Cavalcanti entre as mulatas fartas, mas o sol opressor de Goeldi, a grande esfera vermelha que fere tudo o que toca. Ou ainda o grande sol sobre a cabeça do Abaporu – um sol difícil e angustiante. Mas a pintura de Alonso não é melancólica, ao contrário, faz uso de procedimentos bastante presentes hoje: ironia, ambiguidade, deboche, um trânsito fértil entre o popular e o erudito que gera diferentes recepções a depender de seu meio de exibição. Na internet, por exemplo, a ficção de seu balneário convence e vez ou outra as pinturas rendem comentários deslumbrados: “Lindo! Vibrante como o meu Rio!”.







Poderia dizer ainda que Alonso encena a si mesmo. No texto ficcional que escreveu para a exposição, o artista se declara, em terceira pessoa, como um “pintor de paisagens idílicas”, um personagem supostamente ingênuo que ajuda a elaborar a iconografia dos trópicos. Talvez por isso a exposição tenha um quê de ateliê, não estamos ali apenas para ver as obras, as aves e palmeiras que compõem essa paisagem, mas observamos o próprio artista, esse espécime exótico de intenções desiludidas: “De lá [da sua praia inventada] o pintor consegue ver ao longe o oceano ou imaginá-lo derretido com uma fina camada oleosa na superfície”, diz o seu texto.


Mas não falamos apenas de pinturas em chassis ou suportes convencionais. O portão da galeria também foi inteiramente pintado. Alonso já vinha pintando paredes, murais e painéis em espaços públicos. Um salão de dança do Baile Bloko Rato Branko; um mural na face externa do Centro de Artes da Maré; as paredes da exposição “Arte Naïf, nenhum museu a menos”. Uma pintura que se expande sobre as superfícies e, caso fosse possível, talvez cobrisse o mundo.


No portão, uma das faces apresenta a paisagem do balneário fictício Olho Grande, composta de morros, águas cristalinas e cachoeiras que parecem ter sido transportadas dos cartazes turísticos das primeiras décadas do século XX quando companhias aéreas e marítimas tinham o Rio como um dos principais pontos de embarque e desembarque da travessia atlântica. No verso, vemos fragmentos de diversos motivos tropicais: praias paradisíacas, a silhueta de uma palmeira, ilhas desertas, ondas, céus típicos de verão. Poderia ser um catálogo de estampas da Osklen ou, como disse Álvaro Seixas no instagram do artista: “Parece a coleção de todas as t-shirts que tive na vida”. O que está em jogo é esgarçar o clichê.









E falando em clichê, Alonso também pintou uma série de araras e papagaios tropicais. Algumas apresentam efeitos próximos ao glitch das imagens digitais, uma aparência de baixa definição, o que reforça a dimensão codificada da imagem ou a falha de um clichê repetido à exaustão.


Recentemente, a figuração reapareceu no trabalho do artista, sobretudo nos pequenos desenhos em guache realizados durante a quarentena. Com eles, já era possível identificar esse interesse pelo efeito das imagens digitais, com falhas e fissuras na representação, assim como contrastes exagerados que nos lembravam as experiências com os filtros do instagram. Com as aves exóticas, no entanto, a pintura afirma maior ambiguidade anacrônica, já que transita entre o digital e o fetiche histórico das representações científicas.


Lembremos de Cristóvão Colombo que, ao voltar da sua primeira viagem às Américas em 1493, levava consigo um conjunto de papagaios para transmitir a exuberância das terras tropicais, afinal, as aves que aqui gorjeiam / não gorjeiam como lá. Depois, nos séculos XVIII e XIX, não foram poucas as expedições europeias que investiram em catalogar as nossas aves selvagens de coloração deslumbrante (lembram da anedota do papagaio de Humboldt?). Na floresta tropical úmida, tudo dá, mas no habitat de Alonso uma das araras está “sentada” sobre uma cadeira também pintada. “A pintura está cansada”, foi o que ele me disse a respeito dessa obra. Imagens fatigadas de trabalhar.







Por ironia do destino, enquanto eu visitava a exposição, um beija-flor apressado entrou na galeria e, sem encontrar a saída, percorreu exaustivamente os restos de paisagem do artista. Na antiguidade, Plínio, o Velho, contava dos passarinhos que tentavam bicar as frutas pintadas por Zêuxis. Aqui, gosto de pensar que o beija-flor também queria participar da ficção de Alonso.


No Brasil de 2020, não é exagero dizer que a realidade supera a fantasia. Ao mesmo tempo (e ironicamente), o país da lama, do fogo e da bolsa de colostomia também soa como pura literalidade. Para que metáforas? Nesta terra onde sobra delírio, mas falta imaginação, nos cabe virar as imagens do avesso... e ver o que resta.





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