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O ovo da serpente: entrevista com o professor José Cláudio Souza Alves

Atualizado: 14 de set. de 2020

por Flávio Morgado


Na nossa última coluna, dei início a uma espécie de desdobramento em torno do tema das milícias no Rio de Janeiro. Como vem se tornando hábito em nossa linha editorial, a intenção é sempre explorar em diferentes gêneros uma mesma questão, até o ponto que seja possível ver suas diferentes faces e versões.


Comecei, naquela ocasião, com a crônica "Artuzinho: o rei do açaí", texto que tento um breve panorama (e cruzamento) do crescimento demográfico de bairros do subúrbio e o fenômeno do milicianismo.


Termo, que por sinal, só pode ser pensado nesse texto graças ao nosso convidado de hoje. Doutor em Sociologia pela USP e professor titular na UFRRJ, José Cláudio Souza Alves é o autor do livro "Dos Barões ao Extermínio: Uma História da Violência na Baixada Fluminense", e uma das referências no estudo sobre o tema. Agradeço a generosidade do professor.



O sociólogo José Cláudio Souza Alves no campus da UFRRJ, onde leciona.



FM: Professor, pelo fato de seus estudos terem sido pioneiros em torno do surgimento das milícias armadas no Rio de Janeiro, gostaria que me contasse um pouco da sua trajetória e em que ponto ela encontra esse problema.


JCSA: Iniciei minha inserção na Baixada Fluminense – BF, no início dos anos 1980. Atuei no movimento camponês e nas associações de moradores da cidade de Duque de Caxias. Em 1993, iniciei meu doutorado em sociologia na Universidade de São Paulo. Tive acesso a um livro do Mike Daves chamado Cidade de Quartzo, sobre a história da formação social, política, econômica e cultural de Los Angeles, nos Estados Unidos. Essa obra foi inspiradora. Quando vi as dimensões da violência na BF, percebi então que era algo mais profundo, estrutural e histórico. Já possuía leituras sobre a história da região e juntei isso às matérias de jornais que estavam disponíveis num arquivo montado por Dom Adriano Hypólito, bispo da diocese de Nova Iguaçu. Esse trabalho resultou na tese de doutorado que foi defendida em 1998 e virou livro em 2003, intitulado: Dos Barões ao Extermínio: Uma História da Violência na Baixada Fluminense. Contei com a ajuda de uma associação de professores e pesquisadores de história da Baixada, a APPH-Clio e do Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação – SEPE, das cidades de Duque de Caxias, São João de Meriti e Nova Iguaçu. Esse apoio foi decisivo pois as editoras não se interessavam na publicação do livro, em função da citação de nomes de políticos.


FM: Dentre todas as características nocivas das milícias, sem dúvida, a mais perigosa é a sua permeabilidade sócio-econômica, o que torna esses grupos ainda mais poderosos que os traficantes. Como analisar essa permeabilidade nos últimos anos e quais os seus perigos?


JCSA: Criados no final dos anos 1960, mais precisamente em 1967, a partir da configuração atual da Polícia Militar, enquanto força auxiliar à ditadura, ostensiva e repressiva, os grupos de extermínio contavam com a operacionalização feita por agentes públicos de segurança, financiamento por parte de empresários e comerciantes e apoio político fornecido pelos membros do regime militar. Esses grupos, desde então, tiveram um crescimento constante, sem limites impostos por qualquer grupo político. Mesmo assim a dita esquerda, quando no poder, não foi capaz de limitá-los. Com o fim da ditadura empresarial-militar de 1964, o fosso social no país continuou crescendo. A desigualdade social alcançou patamares absolutos, deixando no desamparo camadas crescentes da população. Assistiu-se à implantação de uma lógica tecnicista e tecnocrática na condução de políticas públicas, de caráter pontual e compensatório, que não deu à população qualquer tipo de protagonismo, não permitindo a emergência de uma criatividade política decisiva para o real atendimento de suas necessidades. No mesmo período, a emergência da violência como mediação social na obtenção de ganhos e proteção conheceu uma escalada sem precedente. De costas para a população, não ouvida, não envolvida diretamente nas políticas sociais o Estado elaborou, dentro de si mesmo, estruturas de ganho econômico, social, político e cultural conectadas com o ilegal e criminoso. Essa estrutura ganhou força e passou gerenciar seus benefícios para os que estavam diretamente envolvidos nos esquemas de ganho e para aqueles que os favoreciam. Um dos principais bens que vai se tornando mais raro e caro ao longo desse processo foi a segurança, ou seja, a garantia da vida em meio à violência crescente. Violência que sempre contou com a atuação do Estado na sua difusão. No desamparo, um número crescente de pessoas passa a aderir à justificativa do uso da violência para reduzir a violência. A lógica do “bandido bom é bandido morto” ganha todas as esferas da vida social. O matador e miliciano passa a ser recoberto com a insígnia do herói e personalidade política. Os ganhos econômicos dos negócios criminosos associados ao status do “homem de bem”, garantidor da segurança fecham o círculo, transformando o algoz em salvador. A pavimentação de carreiras bem sucedidas da canalha assassina é feita com corpos negros, pobres, de moradores de periferias e favelas na máxima da execução sumária como política pública de segurança. O exercício diário do extermínio feito por operações policiais legais serve como ponta visível de um alicerce gigantesco do crime que fundamenta toda a sociedade brasileira, produzindo milhares de mortos anualmente. Nele, a vítima é transformada em réu, numa profecia auto cumprida, num círculo fechado, totalitário, sem escapatória. Essa é uma herança do nosso modelo de colonização. Fruto do extermínio de indígenas e negros, condenados por serem o que são e tentarem se defender da espoliação, da exploração, da escravidão, do roubo, do estupro e do assassínio perpetradas pelo colonizador português e seus subordinados.

Fonte: The Intercept Brasil, abril 2018


FM: Imagino que uma pergunta frequente seja “o que surgiu primeiro? A cooptação das elites ou a chantagem violenta das milícias aos comerciantes? ”; e por mas difícil que seja respondê-la, o que mais me chama a atenção é que independente dessa origem, a “química” desse encontro amoroso entre as elites e o poder miliciano é o maior sintoma dos tempos. Como pensar essa relação?


JCSA: Desde o período colonial a aliança entre os notáveis e nobres membros da classe dominante do país conviveram com a canalha assassina na imposição de seus interesses contra aqueles que se contrapunham aos seus ganhos. Pululam na história da nação capitães-do-mato, jagunços, caçadores de recompensa, assassinos, milícias privadas e a formação de um aparato policial, estatal, a serviço desses interesses. A milícia nada mais é do que a atualização dessa formação histórica. Um grupo que compreende perfeitamente as dimensões dessa classe dominante e que para lhe prestar seus préstimos exige que lhe seja dado o mesmo direito, ou seja, que possam montar sua própria estrutura de ganho, mesmo que criminoso. Como a classe dominante, demarcam seu território, expulsam seus inimigos e fazem guerra a eles, constroem seus aliados, combatem os inimigos dos aliados e cobram, ao fim, uma taxa (imposto) para manterem a segurança deles. Charles Tilly estuda a formação dos estados-nação europeus e o surgimento dos grupos criminosos e encontra este modelo na origem dos dois. Milícia só existe porque há uma classe dominante que as consolidaram ao longo de séculos de atuação com os serviços prestados por elas. Claro que tinham outros nomes e diferentes funções, mas a lógica sempre foi a mesma, a garantia dos interesses dos donos do país, por fora das dimensões legais, socialmente valorizadas e politicamente aceitáveis. Um porão do submundo sombrio que torturou, feriu e matou para preservar os ganhos dos decidem o destino desse ajuntamento de povos a que chamamos de nação. No caso da BF, identifico no grande saque de 1962 o início da relação entre empresários e comerciantes com as dimensões dos grupos de extermínio. Os eventos que levaram à morte 42 pessoas em confrontos associados ao saque de mais de dois mil estabelecimentos comerciais, no dia 5 de julho daquele ano, justificaram o recurso ao uso de grupos vigilantes armados na proteção dos negócios das possíveis vítimas. A fome de milhares de pessoas precipitadas no saque transformou fregueses em ladrões. Quando cinco anos depois os grupos de extermínio emergiram na região, esse trauma social ganhou sua resposta mais eficiente, a eliminação de qualquer ameaça à manutenção do lucro, pouco importando a fome reinante. Claro que uma vez criado, o monstro ganhou vida própria e passou a achacar seu criador. Mas isso já estava dado lá atrás. Financiar matadores sempre foi o negócio mais eficiente e lucrativo a se investir, com a vantagem de se realizar, igualmente, na obtenção de votos e maior controle político.

Fonte: G1


FM: Em algumas entrevistas e textos, você frisa o termo “milicianismo”. Como defini-lo e como entendê-lo como um movimento já de pretensões nacionais?


JCSA: Trabalho com as linhas de continuidade entre os grupos de extermínio e as milícias. Elas são cinco: 1) são agentes públicos, servidores do Estado em ação, logo, não há qualquer sentido em se falar em ausência do Estado ou em poder paralelo; 2) são profissionais em provocar dano à vida dos outros, treinados diariamente, a partir dos impostos que pagamos, para torturarem, ferirem e matarem pessoas a partir de uma lógica de execução sumária própria de operações policiais justificadas pela guerra às drogas e pela transformação do traficante no inimigo público número um do país; 3) possuem controle territorial, no caso dos grupos de extermínio, mais fluído e difuso, no caso das milícias mais fixo e detalhado, mas sempre um controle territorial militarizado; 4) recebem financiamento de empresários e comerciantes, conforme resposta anterior; e 5) possuem trajetórias eleitorais bem sucedidas, transformando-se em personalidades políticas. Ora, essa base grupo de extermínio/milícia está dada em âmbito nacional. Claro que em cada região e local ela ganhará contornos próprios. No Norte e Nordeste os coronéis, os donos do agronegócio, as mineradoras, as empreiteiras e o latifúndio matarão indígenas, quilombolas, ribeirinhos, posseiros, ambientalistas, defensores de direitos humanos, sindicalistas rurais e quem mais se contrapor aos seus interesses. Nas áreas urbanas, a guerra aos traficantes, aos ladrões e aos genericamente chamados de bandidos criará seu mercado próprio de ganhos a partir das mortes. A milicialização é a expansão das características dos grupos de extermínio, organizados pelo Estado, em cada território, conforme as características acima mencionadas. Nem todos seguem o padrão do Rio de Janeiro, cada um possui suas características próprias. Cada conjuntura de grupos dominantes locais, negócios, jogo político, controle do Estado e grupos existente na região com suas lógicas de sobrevivência vai traçar histórias e detalhes próprios que não se repetem e ao mesmo tempo possuem elementos comuns subjacentes.

Pichação em uma comunidade na Vila da Penha, subúrbio do Rio de Janeiro.



FM: Entendendo que a relação do núcleo duro do poder federal hoje no país e os grupos armados que controlam pelo menos um terço da população carioca possuem relações bem estreitas, o que já se pode pensar em eventuais legados dessa ascensão ao poder?


JCSA: Um dos principais legados é eleitoral e será realizado nas eleições municipais em curso. Esta capilarização do modelo vitorioso na esfera federal, calcado no discurso do bandido bom é bandido morto, tão caro aos matadores e milicianos, bandeira de frente da extrema direita percolada cada vez mais na estrutura social permitirá o aprofundamento das dimensões sociais, culturais, políticas e econômicas desses grupos influenciando as eleições de 2022, na perpetuação do projeto de extrema direita no poder central do país. Associado a isso, os ganhos econômicos se ampliarão e com eles a retroalimentação da manutenção dos donos do poder que sempre mandaram no país, a troika que escolheu a extrema direita e seus cães de guerra assassinos para gerenciar seus ganhos: banqueiros, agronegócio e empreiteiras. A “democracia” nome belo e legitimador para o totalitarismo que sempre vivemos será cada vez mais esgaçada e esticada, na risada escancarada de escárnio e deboche por aqueles que a partir da desinformação, do desalento, do abandono e da mentira serão cada vez mais massa de manobra no gerenciamento da ignorância humana por redes sociais, numa ampliação sem precedentes da guerra híbrida e dissimulada em que mergulhamos. O cenário, portanto, não é animador. Mas qualquer ação de resistência e construção de resposta a ele precisa partir da mais radical e profunda compreensão do que estamos vivendo. Determinante são as autocríticas dos que autoproclamados governos de esquerda às práticas que desenvolveram, quando no poder, e que permitiram a perpetuação desse modelo totalitário-criminoso. A identificação, denúncia e exposição das entranhas desse projeto de poder precisa ser assumido de forma decisiva, sob pena de vermos mais uma vez a repetição do que vivemos hoje, ou seja, a crença de que a convivência com todo esse modelo de crime gerido pelo Estado, sem limitações, não representaria uma ameaça, mas apenas os limites da governabilidade, na qual precisamos negociar para se perpetuar no poder.


Manifestação na Cinelândia, Rio de Janeiro, 2019








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