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Foto do escritora palavra solta

O bloco chama, mas 22 ainda não chegou

por Flávio Morgado



Os presidenciáveis. Fonte: O Globo



A impressão geral é que 2021 já é um ano adiado. O horror posto em 2020, com o início da pandemia, e com ela uma nova temporalidade: a impressão de uma condensação de catástrofes, como se de dentro de casa fosse posta à nossa frente todos os juros das escolhas dos últimos anos, somada à importância eleitoral de 22, tornaram 2021 essa espécie de limbo.


Ao medo de nossa atuação (ou esse valor cínico da espera), não existe mais uma movimentação coesa rumo a qualquer impedimento de Bolsonaro. Parte disso, sendo justo com sua estratégia, também se deve à compra do Congresso numa das ementas orçamentárias mais vergonhosas da República, o tal Orçamento Secreto – esse loteamento de verbas públicas em ano pré-eleitoral nas mãos dos partidos mais mal-intencionados do país. Bolsonaro vendeu o mandato, o 7 de setembro foi um tiro no pé, e ainda que o seu esvaziamento naquele contexto nos tenha sido um alívio, as consequências políticas são ainda piores no que se refere às estratégias de manutenção do poder.


Bolsonaro míngua nas pesquisas, e sua carta de merdas é tão extensa, que a imprensa pode fazer uma agenda de deterioração de sua imagem até outubro de 22: o caso assassino da Prevent Senior, a inflação arregaçando a economia, o offshore e a incompetência de Guedes, os tribunais internacionais, os direitos humanos, e por aí segue. O menu foi se tornando tão variado no último ano, que até as velhas raposices (como a anulação da investigação em cima do filho 01) estão liberadas: é assim o jogo deles. O Senado cedeu, depois de quase seis meses, à sabatina de André Mendonça, e mesmo o STF já começou a abrandar muitas de suas decisões contra o governo.


Mas se tudo parecia há alguns meses atrás tão oportuno para uma radicalização da oposição, por que esse recuo?


Já desenhada a derrota do governo nas urnas, e com uma crise econômica que ainda se inicia e já assusta uma geração que não estava nem um pouco acostumada com os galopes da inflação, é chegado o acerto de contas. E o que está em jogo é só mais um episódio de uma clássica crise social: em que os custos e os prejuízos de uma crise econômica são transferidos, responsabilizados às classes trabalhadoras. É por isso, por exemplo, que com a corda no pescoço, Bolsonaro parou de contar apenas piadas homofóbicas em seu cercadinho, mas acenou ao aumento dos juros, o corte dos financiamentos e dos programas sociais.


Quer golpe mais emblemático que a destruição do Bolsa Família? Algo previsto pela Dilma lá em 2015, quando deixou evidente os rumos do golpe que se iniciava, os termos desse acerto de contas. O governo cria um novo auxílio, sem nenhum respaldo orçamentário (o que o torna de um lado inviável, e por outro, ainda que venha a passar, e irá, afinal o Congresso já está comprado, não deixa de estar vulnerável, suscetível às demagogias e querelas dos próximos Parlamentos), promete até o fim do ano e joga o gargalo do desespero para janeiro de 2022. Como no Auxílio Emergencial, a crise é tanta, que o único impacto que esse programa terá é eleitoral. Uma aposta tacanha na liquidez desses 400 reais frente a uma inflação que ultrapassa os 10%. São 135 milhões de brasileiros em situação de insegurança alimentar, e acreditem, esse número vai aumentar.


Enquanto isso, a grande mídia impõe a narrativa de uma terceira via. Moro, Mandetta, Dória. O que as prévias vão apontar nesse cenário pouco importa. Dentro de uma discussão mais ampla, os donos do poder esperam qualquer nome que possa rivalizar com Lula e manter a política fiscal, a reforma tributária, previdenciária, e todos os outros privilégios que devem passar incólumes frente a uma das piores crises já vividas. É um jogo simples: eu faço a soma da crise e devolvo ela ao povo. O povo míngua, de Covid, de fome, de desemprego, de ansiedade, e enquanto isso, novas relações de trabalho vão sendo costuradas: as com menos direitos sociais (ou encargos trabalhistas). Veja só, finalmente eles podem dizer: é o fim da Era Vargas. Uber, trabalho intermitente, acordo patronal...pode rasgar a carteira. Casa própria? Já era o financiamento da Caixa, do BB, não existem mais os créditos do governo para a habitação.


Na oposição, e aí devo admitir também que já era de se esperar, não existe não só nenhuma coalisão de esquerda, como não me é surpreendente, embora não menos frustrante, que essa semana comecem boatos do Alckmin como vice do Lula. O ex-presidente é astuto, ao mesmo tempo que não se descola das velhas práticas políticas, sabe muito bem que a conta já foi feita pela burguesia, e mais uma vez, assim como foi quando ele chegou ao poder escrevendo carta aos banqueiros, vai construir sua imagem de homem conciliador, de centro-esquerda, um amigo do povo, mas que também não despreza o empresário. Lula quer dificultar a oposição da grande mídia, e o preço disso é o velho acordo com os donos do poder, os velhos políticos, a velha aristocracia. Eu lamento. É o preço que pagamos por não termos desenvolvido quadros à altura das demandas da esquerda, e que em um momento de ampla radicalização de toda tensão social, quando nos é exigido (o que é muito mais do que oportuno) a radicalização também de nossas pautas, sobretudo as econômicas, as que contemplem uma divisão de renda, de ampliação dos direitos sociais, de acesso à terra e tudo que vem sendo devastado nesses últimos anos, somos obrigados a mais uma vez recuar, acolher ao discurso republicano do bom samaritano, da conciliação, do “calma, rapaz, é assim mesmo, amanhã melhora”.


2021 foi isso aí, ou ao menos tem sido: uma rajada de apatia. Amanhã melhora.


Outro que faz as contas e rói as unhas em meio à crise sanitária é o nosso prefeito Eduardo Paes. Com a sua imagem construída em torno da rua, e tentando a todo custo ser o homem que vai entregar as chaves da alegria carioca depois desse caos – o que daria aquele up maneiro nas eleições (embora o prefeito nos garanta que só faça isso por ser um carioca inveterado), novas variantes, novas gripes e a velha ansiedade podem botar tudo a perder. 2021 ainda está em curso, a nossa chance, inclusive, de uma reabertura está na sua cuidadosa condução. Eu sei que o bloco chama, mas 22 ainda não chegou.



Fonte: Financial Times




Rio de Janeiro, 27 de novembro de 2021

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