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O alarde do sigilo

Atualizado: 1 de set. de 2021

por Flávio Morgado


História: revisão de remorsos*




FOTO: PEDRO LADEIRA/FOLHAPRESS



Todo esse momento bizarro, que mistura uma espécie de remake ruim com uma distopia impensada, é absolutamente ainda mais assustador quando pensado no que evoca, no que em toda essa frontalidade não consegue evitar de emergir. Bolsonaro brinda Brilhante Ustra, condecora fascistas, cumprimenta nazistas, ameaça o AI-5 e luta contra um inimigo imaginário da década de 80. Tudo muito bem demarcado. Quebram-se placas, elegem símbolos, uniforme e coreografia.


Um movimento no mínimo curioso, porque ainda que seja uma característica dos regimes de extrema-direita a construção de um imaginário nacional, no que tange à cultura, Bolsonaro realiza um estratégico apagão. Artistas e intelectuais são seus inimigos e a potência da revisão histórica pode estar nas mãos da direita, no que para a ironia do destino, é concentrada nas mãos da produtora “Brasil Paralelo” — aparentemente, Bolsonaro tem uma tara por tudo que é paralelo, o Brasil, o crime, o Estado...


Em meio a uma reforma educacional em curso que diminui os tempos da disciplina de História, seu mandato é marcado por uma verdadeira liquidação na educação e na cultura, e a imagem mais emblemática disso são os nossos incêndios. O Museu Nacional, a Cinemateca. Incêndios na flor da memória. Arquiteturas do apagamento.


Até hoje não há catalogação do que foi destruído na Cinemateca. Não sabemos sequer o legado da devastação, como não sabemos o aumento do garimpo, o censo demográfico e as agruras da Amazônia. Há um jogo perverso com o silêncio. Ao passo que revoga o poder do documento, também o reafirma. De um lado, porque torna esse silêncio eloquente, e na medida em que a crise se alastra, incontestável; por outro, porque por muitas vezes há um jogo direto com o silêncio, ou mais propriamente dizendo, com o sigilo.


Nos últimos dois meses, recebemos duas notícias interessantes, e elas me fazem pensar exatamente nesses dois usos (e os desdobramentos) do silêncio no governo Bolsonaro: primeiro, os cinquenta anos de sigilo impostos pela Justiça Militar aos autos relacionados ao general Pazuello; segundo, os cem anos de sigilo impostos pelo presidente às informações referentes ao trânsito de seus filhos no Palácio do Planalto.


Vamos ao caso Pazuello. Um dos casos de maior humilhação já sofrido nas Forças Armadas.


Pazuello, desde sempre enroscado em maracutaias, mostrou-se fiel aliado do presidente. Assumiu o Ministério da Saúde em meio a uma pandemia, sem qualquer especialização na área, mas pronto para ser um apaziguador e obediente a Bolsonaro. Cumpriu à risca: errou na logística de vacinas, tentou favorecer empresas, atrasou a vacinação, saiu sem máscara, e foi até humilhado em uma live. Quando a barra pesou na CPI, entocaram o general. O Exército ficou receoso, a imagem arranhada, e Bolsonaro levando o malandro para palanque (algo proibido nas normas militares). Denunciado, foi julgado e absolvido, “caiu pra cima”, como se diz por aí. E numa estratégia menos envergonhada de sair dessa situação vexaminosa, em que um capitão da reserva, expulso pela corporação, tencionou até onde pôde a relação com os generais, com direito a humilhações públicas e demissão do Alto Comando, o Exército enfim decide por aplicar um silêncio documental de cinquenta anos sobre o julgamento de Pazuello. Acusando o golpe e entregando a eloquência desse silêncio. Do dia em que as Forças Armadas se viram obrigada a se renderem às pressões de Bolsonaro, ou capitularam de cabeça baixa. Da parte de Bolsonaro, só me resta pensar no seu profundo e confuso rancor pela corporação.


Já no segundo episódio, o sigilo aparece como uma verdadeira confissão de culpa. É evidente que o trânsito dos filhos do presidente é absolutamente antiético: são parlamentares, possuem a própria agenda, e com frequência a confundem com a presidencial, assim como ocorre com as redes sociais.


Mas o simples ato de exigir esse sigilo, que em nada se enquadra na Lei de Acesso à Informação, uma vez que estamos falando de atores públicos, e não da vida privada de Bolsonaro, torna o papel do registro ainda mais importante. Nunca um governo se calcou tanto no silêncio, seja em sua ação imperativa (silenciando tudo que não é bolsonarismo), seja no uso cínico de sua premissa.


O curioso, é que todo esse movimento sorrateiro, exatamente por ser oficial, torna-se um alarde. Bolsonaro não é alguém que representa um movimento intelectual de grandes proporções culturais, sequer há um projeto para isso, a não ser o apagamento, a devastação de tudo aquilo que não o contempla. É um Narciso em surto. Mas é exatamente o golpe no espelho, que o repõe.


Seu projeto é o paralelo: é silenciar o IBAMA, na medida em que o ministro do Meio Ambiente trafica madeira da Amazônia; é mitigar a anarquia na hierarquia militar, e levantar motins milicianos. Nenhuma instituição o interessa. Mas não tem ele todo esse tamanho.


Bolsonaro cai esperneando, cada medida de desespero é uma arma a mais a nossa raiva, a nossa mobilização. O marco temporal, o voto impresso, a PL da grilagem. Sua passagem é cáustica, mas não irrevogável. Seus inimigos eleitos são suas vulnerabilidades. Se ele ataca a História, é porque sabe que nela mora o seu veneno, o seu júri.



Ativistas queimam a estátua de Pedro Alvares Cabral na Glória, Rio de Janeiro. Foto: Reprodução redes sociais.



A partir de 22 nos será exigido muito barulho. Uma verdadeira auditoria desse silêncio, um revogaço de todo retrocesso. Não os deixaremos em paz. Sua brutalidade é o que implica esse dever cívico. Todo esse mal, tão frontal, tão nosso, é a chance basilar de reestruturar o nosso imaginário, chamar para o embate os nossos traumas, repactuar os nossos recalques. E não será com flores e elegância. É preciso uma gradação de barulhos: do crepitar de velhos monumentos à escrita ruidosa de um novo país.



Rio de Janeiro, 26 de agosto de 2021



* verso do poema "Guardador de silêncios" em Um caderno de capa verde (7Letras,2012)


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