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Não preciso de gente que me oriente

por Mariano Marovatto (autor convidado)



Dedicado ao Fred Coelho, cuja biografia do Jards o correio não entregou a tempo




No dia 19 de julho de 1985, o compositor russo Alfred Schnittke sofreu um derrame à beira do Mar Negro. Por três vezes os médicos chegaram a anunciar a sua morte, mas Schnittke resistiu e em dois meses já havia se restabelecido a ponto de compor o seu primeiro e vertiginoso concerto para cello. "Depois do meu derrame eu me vejo capaz de lembrar muito menos do que antes, mas ao mesmo tempo estou ciente de muito mais", afirmou ele numa entrevista. "Passei a confiar não no conhecimento intelectual, mas em uma espécie de sentimento animal. Eu sei alguma coisa e posso explicar por que é assim, posso encontrar argumentos para apoiá-la (geralmente faço), mas de alguma forma não estou preocupado se eles existem ou não. Mas eu sei, embora ninguém nunca tenha me explicado." Schnittke a partir de então alimentou-se exclusivamente, até sua morte, da farinha do desejo.


Livre de esquemas, verificações, interesses, hierarquias, Jards Macalé estabeleceu uma paisagem sonora única ao arranjar o disco Transa, de Caetano Veloso, no início da década de 1970. Foi por causa de "Gotham City", vertiginosa canção de Macalé em parceria com Capinam que Caetano entendeu que as cores eram outras no Brasil. Transa, ao vivo, ocupou o palco do Queen Elizabeth Hall com duas baterias, um baixo e dois violões (um de Caetano e outro de Macalé). Os ingleses da plateia não conseguiram mensurar absolutamente nada pelos ouvidos. O que vinha do palco carecia de precisão e simetria. A voz de Caetano emulava uma enganadora prosódia tropical e, com o corpo, fazia citações a Carmen Miranda. Mas um repetitivo movimento brusco cortava a cadência esperada da alegria. A cromestesia da banda tinha outro tipo de contraste. Macalé impunha a solércia. Não só o seu violão, mas toda a banda aveludava todas as estridências: o show foi uma sequência de tapas com luva de pelica.


No final de 2021, Caetano Veloso afirmou em entrevista que o Brasil que se pretende feliz foi inventado pelo Vinícius de Moraes. A felicidade, assim como a revolução, se desenvolve no mesmo estilo de uma festa. As festas, conforme os inúmeros testes, não podem durar uma eternidade. Há um paralelo estranho entre o Concerto no. 1 para cello, de Alfred Schnittke, e o primeiro LP, homônimo, de Jards Macalé. São um rasgo por onde sai o sangue em serpentina. Se não existisse Vinícius, Drummond seria soberano. Torquato sabia muito bem, mas confiava no sentimento animal. Era essa a diferença. O Brasil seria o país da fossa, mas com carnaval, exatamente como o show no Queen Elizabeth Hall. Depois de toda festa vem a ressaca. Tô cansado. E você também. Chama-se crise. O velho mundo demora a morrer. O novo mundo demora a nascer. É nesse interregno exato que surge o Jards Macalé, apesar dos monstros.




Jards Macalé. Fotografia: André Seiti




MARIANO MAROVATTO é carioca de 1982. Escritor, pesquisador, cantor e compositor, publicou, entre outros livros, Casa (2015) e Vinte cinco poemas, em parceria com Chico Alvim, também em 2015. Viveu em Lisboa onde lançou o disco Selvagem. Mantém o site www.marovatto.org

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