por Flávio Morgado
Narciso, Caravaggio, 1594-1596, Galeria Nacional de Arte Antiga
Nas próximas três edições me proponho a pensar dois temas caros ao entendimento das nossas movimentações sociais: o narcisismo e a implicação.
O mito de Narciso é conhecido em todo Ocidente, a alegoria da vaidade e do orgulho mais repetida pela literatura e as artes em geral. A parábola do amor exacerbado de um indivíduo por si próprio. Narciso afogado: a impotência vaidosa de possuir a si próprio o ilude, ou a superfície espelhada o afoga em sua própria ficção.
Na última semana, o mundo se deparou com um dos primeiros estopins produzidos pela desigualdade racial e social, cada vez mais aprofundada por esse contexto distópico da pandemia. George Floyd, um negro estadunidense, foi acusado de tentar comprar cigarros com uma nota falsa de vinte dólares. Floyd engrossava o caldo dos desempregados da crise econômica pós-Covid, e fora o eventual crime (passível de punição devido à Constituição, que até segunda ordem, ainda é esse instrumento de acordo ético e jurídico de uma sociedade), Floyd era um homem negro. E por ser um homem negro, protagonizou uma das cenas mais emblemáticas e sombrias de todo esse momento: imobilizado por três policiais (brancos), Floyd é posto em decúbito dorsal no asfalto. Um policial imobiliza suas pernas, outro está ajoelhado sobre suas costas e um terceiro o asfixia com um dos joelhos.
Nas gravações dá para ver que não houve resistência à abordagem policial, são três homens brancos armados em nome do Estado contra um homem negro. Nas filmagens, também é possível ouvir Floyd repetindo que não conseguia respirar. (Quem filma e não o acode, apieda-se de qual humanismo?) O policial que o mata, faz com certo regozijo: posa para as filmagens, põe as mãos no bolso enquanto o asfixia com a própria perna e o pressiona com a força de um ódio que define ocupações profissionais e certos cinismos. Como, por exemplo, o nosso.
George Floyd foi assassinado em Minneapolis, Estados Unidos da América
A segurança do policial atravessa uma série de concessões diárias ao seu e ao nosso racismo. Não fosse a imensa repercussão pública, talvez uma leve medida administrativa fosse tomada contra o policial. Caso fosse à Corte, o juiz, o conservadorismo garante, seria branco. O presidente dos EUA chamou os manifestantes de “idiotas, vagabundos”, pediu maior “energia” na contenção dos protestos, é declaradamente racista e foi eleito. Assim como legitimamos democraticamente o absurdo também no Brasil. Assim como todos os dias aqui. João Pedro, Agatha, Miguel Octávio...
Mas o que mais me surpreendeu foi o dia seguinte: uma série de protestos virtuais intitulados “Terça Negra” ou “Blackout em protesto”. Basicamente uma chuva de postagens de uma tela negra e alguma legenda falando sobre o antirracismo. O tiro, claro, saiu pela culatra.
Primeiro porque já está mais do que evidente (vide a guinada desumana que a política mundial deu nos últimos dez anos) que a internet enquanto espaço de protesto atende muito mais às demandas da culpa burguesa do que efetivamente propõe alguma mudança ou manifestação. No ano em que 300 fanáticos armados acampam em frente ao Palácio do Planalto e o Presidente da República alega um descaso vergonhoso perante os 30 mil mortos, somos a geração das famigeradas “notas de repúdio”.
Chega a ser impressionante que entre tantos iogues e good vibes, entre tantos cristais de alinhamento e pequenas empresas de “capitalismo consciente” (deixemos isso para a coluna da próxima quinzena), o Bolsonaro tenha recebido mais de cinquenta milhões de votos e uma legitimação de rei. Foi uma verdadeira chuva de postagens. Lojas aderiram, afinal o capital simbólico da política também tem seu valor agregado, e a culpa do burguês já não mais se expia aos domingos nas missas. Os únicos que não vi nenhuma postagem foram os meus amigos negros. Talvez porque estivessem implicados demais, sentindo essas dores trans-históricas que legamos diariamente ao seu povo, ou talvez porque simplesmente quisessem mostrar a sua potência, seu protagonismo, a sua fala sobre o fato. Mas, mais uma vez, os silenciamos.
Ativistas negros do mundo inteiro se manifestaram em relação às postagens e disseram que o efeito era muito mais atrapalhado do que supunham. Monopolizando as hashtags com imagens completamente silenciosas e que ocupavam o espaço de postagens que realmente poderiam desenvolver algum raciocínio antirracista. Mas não deixamos. Antes do espanto, vem o discurso. E ele é o da culpa, não a culpa implicada, a responsabilidade ética, mas a culpa imediata, a culpa que organiza o nosso feed. A internet é um espaço de neutralização de símbolos, os memes são os hieróglifos da nossa caverna sonsa. Vi antigos companheiros de sala de aula, gente reconhecidamente racista, postando. Vi gente que não tem qualquer contato com a cultura negra, que jamais se relacionaria ou sequer é capaz de ouvir qualquer demanda negra, postando. Por que? Porque o tempo cobra. O problema é que o boleto é apenas estético.
A última terça-feira foi tomada por protestos nas ruas estadunidenses
Em vez da possibilidade de recolha (gesto fundamental para a compreensão de qualquer fato), de reflexão, eu vi foi um milhão de textões, dessa gente iluminada em branquitude, que enquanto o país desaba em luta de classes, está agora em sua bolha branca de classe média nos enviando “bombas de luzes violetas” e begônias. Gente que acha que “vir” preto e pobre é questão cármica. Gente que chora em vídeo pedindo que nós, os brancos, possamos ser “humanos” e venhamos a conceder nosso espaço de privilégio aos negros. Que coisa mais comovente, princesas Isabéis! Que gesto mais humanista, esse o de doar o seu protagonismo a esse povo tão carente e sem voz! A vocês, eu desejo uma “bomba de Abdias Nascimento”.
Porque é em estudos como “O genocídio do negro brasileiro” que essa história é narrada a contrapelo. Ou como define o próprio Abdias, a possibilidade de um testemunho cruzado de uma implicação incontornável ao corpo: a cor. No livro, há uma importante (e também por isso de certa forma perseguida) análise em torno das contradições e dos silenciamentos produzidos por uma confortável (aos brancos) ideia de “democracia racial”.
Abdias é um crítico ácido ao pensamento de Gilberto Freyre, visto como uma forma de manter essa mesma hegemonia branca em torno de uma falsa ideia de conciliação, capaz de construir todo um pensamento oficial de uma construção harmônica de uma “metarraça” sem conflitos e remorsos. Mas a História não se move assim. Sabemos o quanto uma narrativa vencedora é a premissa de um grande silenciamento. De como a construção benevolente de uma Princesa Isabel que concede liberdade ao povo negro é no mínimo inconsistente se pensarmos que esse mesmo Império sustentou esse borrão em sua história por mais de sessenta anos. Mas mais grave é calar Galanga, Zumbi, os “camélias” e tantos outros protagonistas dessa luta pela liberdade, tão bem eclipsadas nas salas de aula, reafirmando esse aspecto condescendente da elite, ou eventualmente “apimentando” essa História de luta com camadas de sexualização e objetificação do corpo negro.
Banir os termos “denegrir” ou “mulato” pode ser um começo da revisão dessas dominações mais sutis, mas ainda não nos implicou sobre termos como “tolerância” e “concessão”. Dois dos termos que mais li nessas postagens.
O termo tolerância se torna quase impossível de se conjugar a uma ideia justa de liberdade, porque sua premissa é a da “suportação”, o que ainda pressupõe um protagonismo inviolável, uma narrativa autocentrada e uma ideia caridosa (em seu aspecto mais culposo e cristão) de uma concessão. Toleramos negros, toleramos sua religiosidade.
Suportamos: a ideia mais beligerante da coexistência “pacífica”.
Ainda nas primeiras páginas de “O genocídio do negro brasileiro”, Abdias fala do mito do “negro manso”: a ideia de que os negros deveriam ser sempre polidos e gratos aos brancos por lhes terem concedido a liberdade, o emprego, e em última instância, até a dignidade. Ou seja, a essa altura do texto, já é possível entender que a luta narrativa se dá entre um consenso branco e engendrado meticulosamente da forma mais narcísica e autorreferente possível, e um povo em busca de seus termos, seu protagonismo. O que não podemos esquecer é que esse protagonismo existe, essa autodeterminação existe, essa potência é historicamente latente e tudo que não precisam mais, tudo que lutam contra, é essa ideia de uma concessão, de um espaço doado, de uma caridade culpada e não implicada.
No dia de hoje, pessoas postavam fotos com amigos negros, esperavam likes nessa ingenuidade tão narcísica que não percebem a objetificação do amigo e da capitalização do sentimento de amizade. Não percebem, bem-intencionados ou não, que monopolizar hashtags de uma luta que não é sua é monopolizar as informações sobre aquilo, é no mínimo dificultar a voz de quem deve e quer falar. Então por que o meu ato não pode ser a reflexão? Por que meu protesto não pode ser a difícil tarefa de reconhecer que um protagonismo não se concede, mas se impõe? Por que mesmo quando quero alegar a minha humanidade eu nivelo por essa caridade pública? Por que a minha implicação ética não é dada nos termos de meu comportamento e na inflexão sobre meus atos impensados? Por que nos comportamos de forma tão cafona, como digital influencers, mesmo sabendo o poder de neutralização e paralisia que a internet vem nos traduzindo há pelo menos seis anos? Por que entre o reconhecimento da potência de um artista negro e a expiação digital de culpas que jogo para debaixo do tapete, eu escolho o caminho mais fácil? E o mais fácil é o que me devolve likes, boa reputação e alguma capitalização simbólica?
Esteticamente, ainda há o apelo da imagem, na era das imagens, ser a tradução de um silêncio opaco, superficial. Um silêncio branco, quase que ironicamente numa tela negra: a cor incompreendida. “Blacks lives matter” não é uma grife. E é sobre esse estatuto, sobre essa potência narrativa que devemos calar. A força desse verbo não é da nossa boca.
São tempos duros, de pouca negociação, de uma justiça férrea que nos prova que os juros da História são implacáveis. Isso não nos limita à não participação, mas nos convoca a uma implicação delicada, de revisão, de constatação de privilégios inexcedíveis e que não é com alguma benevolência e nenhuma compreensão da luta de classes que mudaremos.
Talvez a melhor atuação seja sair de cena, e deixar ela ser ocupada à maneira que os novos protagonistas desejem. Não conhecemos demandas de açoites que não sofremos. Como também não podemos esquecer que mão o chicote ocupava. E por mais que eu queira crer em nossa empatia (embora ache que um conceito que estampe camisas na C&A já comece mal), a única reescrita possível é a de um Narciso que se rende aos encantos de Eco. E eles pesam na consciência, a face sombria desse espelho.
Rio de Janeiro, 2 de junho de 2020
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