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Foto do escritora palavra solta

Magistério não é sacerdócio, é luta

Uma entrevista com Raquel Vieira, coordenadora da rede de educação popular Emancipa

por Flávio Morgado




Divulgação



Há uma premissa delicada na sala dos professores: “magistério não é sacerdócio”. O que boa parte dos meus colegas quer dizer com isso? Que ao passo que cresce a precarização das nossas condições (enfraquecimento sindical, redução de cargas, reuniões não remuneradas...), deve existir sempre em cada professor a noção de que a sua luta é sempre coletiva e quanto mais adotarmos uma postura subserviente, maior será a degradação da nossa profissão. Concordo com essa premissa e, em muitos aspectos, brigo por ela. Mas é curioso que esse mandamento tenha me surgido em um contexto completamente diferente.


Conversando com um dos meus colegas em uma escola particular, contei que vinha investindo na promoção de instituições comunitárias de educação popular na revista que editava. Imediatamente ele me contou suas experiências na atividade, disse que isso é utopia de jovem estudante, que só vale quando se está ainda na graduação, que trabalhar de graça depõe contra a profissão e que, apesar de achar “linda a ideia”, “magistério não é sacerdócio”. Pois que uma indagação se abre: de fato não deveríamos trabalhar de graça — mas o que é o “de graça”?


Naquela semana, conversando com o amigo Thiago (Oliveira Vieira), pedi que me passasse o contato da coordenação da Rede Emancipa do Distrito Federal. Resolvi que seria uma rede educacional de Brasília, porque há anos frequento a cidade e ela sempre me instiga no que nela é só exclusão. Brasília sempre me parece uma cidade a ser observada. Seu plano popular fracassou, sua geografia é o desenho de uma desigualdade, cidades-satélites se multiplicam em uma capital federal em que o transporte público é um dos mais caros e precários do país, em que o acesso à cultura é cercado e resiste uma perfeita ilha da classe média no plano piloto.


A Rede Emancipa é um movimento social de cursinhos populares pré-universitários, dissidente do Cursinho da Poli que luta para inserir estudantes de baixa renda nas universidades públicas, principalmente, e nas faculdades particulares com bolsas de estudos. Sua ação se faz com a construção de cursinhos populares em espaços cedidos, principalmente em colégios públicos. Os cursinhos da rede não possuem fins lucrativos e sua coordenação e organização são voluntárias. Ou na ironia do meu colega, um sacerdócio social.


Entrei em contato com a Raquel Vieira, coordenadora do curso na capital, ex-aluna e moradora da Ceilândia, uma das periferias da cidade. Uma entrevista feita a partir de uma troca de áudios, cortada em diversos momentos pelo trânsito da educadora pela cidade, feita em grande parte no trajeto de mais de uma hora de sua casa até o centro, vazando a lotação do transporte público, sendo atravessada por um assalto e uma postura aguerrida em toda a sua comunicação. Entrevistar a Raquel nessas circunstâncias, com todo o atravessamento de seu caminho, é uma cena que explica claramente que onde meu colega, de uma escola particular do Rio de Janeiro, lê “de graça”, a Raquel, de Ceilândia à Asa Norte, escreve como “de luta”.


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Flávio Morgado – Primeiro momento, muito obrigado desde já pela sua disposição em relação à entrevista. Para que os leitores possam entender melhor a nossa conversa, gostaria que se apresentasse, Raquel.


Raquel Vieira – Sou a Raquel Vieira, tenho 23 anos, sou nascida e criada na Ceilândia (DF). Sou formada em Gestão Pública pelo Prouni, hoje estou como assessora parlamentar do deputado distrital Fábio Félix (PSOL), mas já trabalhei para outros parlamentares, além de ser produtora cultural e executiva de alguns artistas aqui do DF, e também de um estúdio de música.


O Emancipa chegou na minha vida em 2016. No projeto piloto ainda; eu já tinha terminado o ensino médio, e havia procurado um curso popular para me preparar para o vestibular. Sou a primeira da família a se formar, existe, portanto, toda uma trajetória que eu sabia que deveria me responsabilizar, mas não tinha condições de pagar um curso privado. Entrei como aluna em 2016, no ano seguinte já entro como uma das coordenadoras (na ocasião, um cargo que estabelecia um elo entre a coordenação pedagógica e os estudantes, condição que eu ainda mantinha), e hoje eu sou uma das coordenadoras distritais e nacionais do movimento.


FM – Há algo sempre muito orgânico nos cursos populares, né? Sobretudo, no que se refere a esse movimento de ex-alunos que retornam para continuar a contribuir com a educação popular. O que você acha que explica a manutenção desse elo?


RV – No que se refere a essa organicidade, a volta desses alunos... Eu acho que quando a gente passa por um projeto como esse, e entende a potência do que está sendo gestado ali, de emancipação, isso cria não uma dívida, mas algo mais forte, uma espécie de missão em continuar essa movimentação. É aquele momento em que se volta para a nossa quebrada para retribuir, dar a mão e trazer junto, de multiplicar isso. A realidade da educação pública no Brasil é de defasagem, então movimentos como o Emancipa surgem como ações de cidadania. Não se acovarda! E até a nossa presença em instituições de educação pública é subversiva, porque é como se estivéssemos possibilitando o que, em tese, deveria ser um dever constitucional. E precisamos incentivar essa disputa de narrativas, de ocupação dos lugares de poder, para além de ser um movimento revolucionário em sua organização interna, como somos: coordenados por mulheres pretas, periféricas, educadoras populares.


FM – E qual é a história da Rede Emancipa?


RV – Nacionalmente falando, o Emancipa surge dentro de um cursinho (Curso da Poli), em que algumas pessoas desse cursinho gostariam que ele fosse pago. Os dissidentes (que queriam a manutenção da gratuidade) é que formam o Emancipa. Já em relação ao DF, o Emancipa é formado por dois amigos que conhecem o projeto em São Paulo e o organizam aqui no DF, que já completa cinco anos.


Nossos estudantes, logo de cara, tem um primeiro impacto, que é perceber que existe toda uma estrutura e que ele não terá nenhum custo com ela. Isso já um grande impacto na autoestima desse aluno. Não tem mensalidade, prova de seleção, apostilas pagas. Antes da pandemia, oferecíamos almoço, já que as aulas eram todos os sábados, o dia todo. Continuamos com as aulas, de maneira remota, durante a pandemia. Outro ponto de impacto nos estudantes, é que logo ao chegar ao curso, ele é direcionado a fazer parte de algum núcleo de organização (LGBTQIA+, mulheres, comunicação...), participar da organização de atos, da construção das pautas. Além disso, temos os nossos ciclos de estudo em torno do Paulo Freire, não só em seus aspectos metodológicos, mas em relação às questões de território e classe.


FM – Raquel, eu conheci o Emancipa através da atuação de um amigo psicanalista junto à rede. E eu gostaria de entender esse diálogo, de que maneira a psicologia aparece como aliada da educação popular?


RV – A questão da psicologia dentro do Emancipa é uma questão de saúde mental. E quando estamos falando de negritude, de mulheres, população LGBTQIA+, estamos falando de uma parcela da população que, historicamente, foi negado o direito a ter uma saúde mental. Algumas políticas públicas inclusive são um ataque a saúde mental dessa população. A necessidade de ter esse espaço de escuta acompanha todo esse processo que entendemos como uma emancipação, ela passa pelo acesso à universidade, mas o fim é sempre a emancipação daquele sujeito. É a possibilidade de inclusive construir o Emancipa como uma rede de apoio, como ela é na minha própria vida.


FM – Um dos lemas do Emancipa é o “Todo poder à periferia”. E existe uma tendência narrativa no Brasil a sempre colocar a periferia como esse espaço carente e passivo, sempre sujeito à paternalização burguesa. E o que se percebe em movimentos como o seu, é que não é só uma reivindicação dessa narrativa hierarquizante, é como se a maior revolta fosse a produção, cada vez mais alta, da sua própria voz.


RV – Flávio, essa questão da produção do conhecimento por parte da periferia, que perpassa um empoderamento intelectual, coletivo, é a forma de sair dessa narrativa de um conhecimento bancário, em que estamos numa posição passiva dentro da produção de saberes.


É entender que nós sempre produzimos conhecimento. Nossos avós, as tradições de nossa ancestralidade, religiosidade, formas de ocupar o território, de narrar o território. Só que tudo isso só é possível frente a um processo de emancipação, porque não somos acreditados a pensar que somos capazes de produzir conhecimento. E ainda que a gente perceba que há as tradições da nossa quebrada, elas são hierarquizadas dentro da produção do conhecimento, da academia. Agora, se um de nós chega à disputa dessa narrativa, aos lugares de poder, aos formadores de opinião, essa produção de conhecimento cresce, se afirma.


A minha geração é muito marcada por isso, nossos trabalhos acadêmicos falam sobre nós mesmos, nossas condições sociais, raciais, geográficas. Nossas capacidades de fabulação, é aí que entra, por exemplo, o afrofuturismo. Nossa capacidade de falar por nós mesmos, de fabular o nosso futuro.


FM – E para fechar: quais são hoje os desafios do Emancipa? Quais as principais demandas de luta e o que é possível projetar nesse cenário para a educação popular?


RV – Tanto o Emancipa, quanto os projetos de educação popular como um todo, tem o desafio hoje de permanecer. A pandemia nos obrigou ao ensino remoto, e isso não só aponta o abismo entre as classes (visível no acesso à internet e nas condições de estudo em casa), como tira a nossa troca olho no olho, o afeto direto, tão fundamental no nosso processo. Tivemos um nível alto de evasão, assim como foi notado no número de inscritos no Enem esse ano (o menor da história).


Para o futuro próximo, eu só posso desejar a continuidade da luta, da construção de novas pontes, e que a educação não seja um privilégio de classe.





RAQUEL VIEIRA, 23 anos, mulher preta e periférica. Cria da Ceilândia. Ativista Social desde os 15 anos. Gestora Pública de formação, comunicadora, ex-estudante da ex-coordenadora da Rede Emancipa, assessora parlamentar do deputado distrital Fábio Félix, produtora executiva e cultural dos artistas: Ally Akin, Prethaís, LadyB, Odara e Dandara. Produtora executiva do Studio Musical BM Studio, do Guará, membro do Coletivo Preta Cei e da Articulação de Negras Jovens Feministas.


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