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Hito Steyerl na tradução de Julia de Souza

Atualizado: 6 de out. de 2020


Hito Steyerl (1966, Munique, Alemanha) é uma das principais pensadoras da imagem contemporânea nas suas relações com a mídia, a tecnologia e o meio da arte. Conhecida por esgarçar os limites entre teoria e prática, Hito atua como artista, pesquisadora e escritora. Seus textos mais conhecidos foram publicados na revista E-Flux e apresentam uma sólida discussão sobre as contradições que perpassam o glamourizado mundo da arte contemporânea. Este texto, que apresentamos traduzido por Julia de Souza, foi originalmente publicado há dez anos. Naquela altura, Hito se propunha a explicitar que a relação entre arte e política acontece sobretudo no modo como o circuito da arte contemporânea organiza (ou desorganiza) o trabalho dos que compõe essa cadeia produtiva. Para Hito, a arte contemporânea é o terreno da precariedade como norma. No Brasil de 2020, cujo estado de pós-democracia é ainda mais claro, acreditamos que as intuições da autora nos fornecem pistas valiosas. 


Pollyana Quintella



Políticas da arte: a arte contemporânea e a transição para a Pós-Democracia.

Hito Steyerl


Hito Steyerl, STRIKE. 2010, 28s, HDV. Youtube – Frame, 5s



Uma forma padrão de relacionar a política à arte presume que a arte representa questões políticas de uma forma ou de outra. Mas há uma perspectiva muito mais interessante: as políticas do campo da arte enquanto lugar de trabalho. Simplesmente olhe para o que ela faz — e não para o que ela mostra.

Entre outras formas de arte, as artes visuais estiveram ligadas com mais proximidade à especulação pós-fordista, com fortuna, furor e falência. A arte contemporânea não é uma disciplina suprema aninhada no alto de uma remota torre de marfim. Pelo contrário, está justamente situada no olho do furação do neoliberalismo. Não podemos dissociar o hype em torno da arte contemporânea das políticas de choque empregadas para desfibrilar economias desaceleradas. Esse hype incorpora a dimensão afetiva das economias globais atreladas a esquemas ponzi, dependência de crédito e mercados pregressos em alta [bull markets]. Arte contemporânea é um nome de marca sem uma marca, pronto para ser colado a tapa em quase qualquer coisa, um lifting facial expresso que promove o novo imperativo criativo em lugares que estão precisando de um extreme makeover, o suspense da aposta conjugado aos prazeres severos da educação das classes altas nos colégios internos, um playground licenciado para um mundo confuso levado ao colapso pela desregulamentação vertiginosa. Se a arte contemporânea é a resposta, a pergunta é: como fazer o capitalismo mais bonito?

Mas não só de beleza é feita a arte contemporânea. Trata-se também de funcionalidade. Qual a função da arte no capitalismo do desastre? A arte contemporânea se alimenta das migalhas de uma massiva e generalizada distribuição de renda dos mais pobres aos mais ricos, conduzida pelos meios de uma luta de classe vinda de cima e ainda em curso. Ela empresta à acumulação primitiva um sopro de euforia pós-conceitual. Além disso, seu alcance se descentralizou muito — os importantes polos de arte não se restringem mais às metrópoles ocidentais. Hoje, museus de arte contemporânea desconstrutivista surgem em qualquer autocracia que se preze. Um país com violações de direitos humanos? Que venha uma galeria assinada por Gehry!

O Global Guggenheim é uma refinaria cultural para um grupo de oligarquias pós-democráticas, assim como as incontáveis bienais internacionais são encarregadas de aprimorar e reeducar o excedente populacional. Dessa forma, a arte facilita o desenvolvimento de uma nova e multipolar distribuição de poder geopolítico, cujas economias predatórias são com frequência abastecidas por pressão interna, guerra de classes vinda de cima, e pelas radicais políticas de choque e veneração.

Assim, a arte contemporânea não apenas reflete, mas intervém ativamente na transição rumo a uma nova era mundial pós-Guerra Fria. Ela é um dos principais apostadores do semio-capitalismo, que se alastra de forma errática por onde quer que uma operadora T-Mobile crave sua bandeira. Ela está envolvida na mineração de materiais brutos para processadores dual-core. Ela polui, gentrifica e violenta. Ela seduz e consome, e de repente dá um passo para trás, partindo seu coração. Dos desertos da Mongólia aos planaltos do Peru, a arte contemporânea está em toda parte. E quando é finalmente arrastada para o Gagosian, banhada de sangue e sujeira da cabeça aos pés, provoca rodadas e rodadas de aplausos extáticos.

Por que e para quem a arte contemporânea é tão atraente? Uma hipótese: a produção de arte apresenta uma imagem especular das formas pós-democráticas do hiper capitalismo — formas que parecem estar prestes a se tornar o paradigma da política dominante do pós-Guerra Fria. Ela parece imprevisível, inexplicável, brilhante, mercuriana, temperamental, guiada pela inspiração e pelo gênio. Precisamente como qualquer oligarca aspirante a ditador gostaria de ver a si mesmo. A concepção tradicional do papel do artista corresponde muito bem à autoimagem dos aspirantes a autocratas que enxergam o governo como uma potencial — e perigosa — forma de arte. O governo pós-democrático está bastante relacionado a esse tipo errático de comportamento do homem-gênio-artista. Ele é opaco, corrupto e completamente irresponsável. Ambos os modelos operam no âmbito das estruturas dos vínculos masculinos, que são tão democráticas quanto uma organização de mafiosos locais. Estado de direito? Por que não deixar nas mãos do gosto? Freios e contrapesos? Fundos e contrapesos! Boa gestão? Péssima curadoria! Você entende por que o oligarca contemporâneo ama a arte contemporânea: ela simplesmente funciona para ele.

Portanto, a produção tradicional de arte pode ser um modelo exemplar para os novos ricos fabricados pela privatização, expropriação e especulação. Mas a produção de arte atual é, simultaneamente, um workshop para muitos dos novos pobres, tentando a sorte como jpegs virtuosos e impostores conceituais, como funcionários de galeria e produtores de conteúdo frenéticos. Pois arte também significa trabalho e, mais precisamente, trabalho de ataque [“strike work”]. É produzida como espetáculo, na esteira rolante pós-fordista da máxima produção. Trabalho de ataque ou de choque é trabalho afetivo em velocidades insanas, entusiástico, hiperativo e profundamente comprometido.

Originalmente, “trabalhadores de ataque” eram trabalhadores excessivos do início da União Soviética. O termo é derivado da expressão “udarnik”, referente ao “trabalho superprodutivo, entusiástico” (“udar” significa choque, ataque, golpe). Agora, transferido às fábricas culturais dos dias de hoje, o “trabalhado de ataque” remete à dimensão sensual do choque. Em vez de pintar, soldar e moldar, o trabalho de “ataque” artístico consiste em rasgar, bater papo e posar. Essa forma acelerada de produção artística cria efeito e glamour, sensação e impacto. Sua origem histórica — enquanto estrutura para as brigadas modelo stalinistas — oferece ao paradigma da hiper produtividade uma vantagem adicional. Os “trabalhadores de ataque” fabricam sentimentos, percepção e distinção em todos tamanhos e variações possíveis. Intensidade ou evacuação, sublime ou porcaria, readymade ou realidade readymade — o “trabalho de ataque” abastece o consumidor de tudo aquilo que ele nem sabia que queria.



Hito Steyerl, STRIKE. 2010, 28s, HDV. Youtube – Frame, 13s

O trabalho de ataque se alimenta de exaustão e andamento, de prazos e asneiras curatoriais, de papo furado e cópias finas. Ele também prospera às custas da exploração acelerada. Eu arriscaria que — com exceção do trabalho doméstico e a prestação de cuidados — a arte é a indústria em que há mais trabalho não remunerado. Ela se sustenta no tempo e na energia de funcionários não remunerados e na autoexploração de atores em praticamente todos os níveis e funções. O trabalho não remunerado e a exploração galopante são os segredinhos sujos que mantém o setor cultural funcionando.

Os “strike workers” flutuantes, somados às novas (e velhas) elites e oligarquias, resultam na estrutura das políticas contemporâneas da arte. Enquanto as últimas administram a transição à pós-democracia, os primeiros a imaginam. Mas o que essa situação de fato indica? Nada além das formas com que a arte contemporânea está implicada na transformação dos padrões globais de poder.

A força de trabalho contemporânea consiste amplamente de pessoas que, embora trabalhem a todo momento, não correspondem a nenhuma imagem tradicional de trabalho. Resistem com teimosia a se acomodar em qualquer entidade suficientemente reconhecível para ser identificada enquanto classe. Ainda que a saída mais fácil seja classificar esse eleitorado como miríade ou multidão, seria menos romântico perguntar se eles não são lumpenfreelancers globais, desterritorializados e ideologicamente flutuantes: um exército reserva da imaginação, que se comunica através do Google Translate.

Em vez de se moldarem como uma nova classe, esse frágil eleitorado pode consistir — como Hannah Arendt formulou acintosamente — na “negação de todas as classes”. Esses desapossados aventureiros descritos por Arendt, cafetões e bandidos urbanos prontos para serem contratados como mercenários e exploradores coloniais, se espelham ligeiramente (e de modo um tanto distorcido) nas brigadas de “trabalhadores de ataque” criativos que se lançam à esfera global de circulação que hoje conhecemos como mundo da arte. Se reconhecemos que os atuais “trabalhadores de ataque” podem habitar territórios mutáveis análogos — as opacas zonas de desastre do capitalismo de choque — surge uma imagem pouco heroica, conflitante e ambivalente do trabalho artístico.

Precisamos encarar o fato de que não há um caminho automático disponível para a resistência e a organização no que diz respeito ao trabalho artístico; de que o oportunismo e a competição não são uma derivação dessa forma de trabalho, mas sua estrutura inerente; de que essa força de trabalho nunca vai marchar em uníssono, exceto, talvez, quando dançar ao som de um vídeo viral de imitação da Lady Gaga. O internacional chegou ao fim. Sigamos, então, com o global.

Aí vai a má notícia: a arte política rotineiramente se esquiva de discutir todas essas questões. Abordar as condições intrínsecas do campo da arte, bem como sua corrupção flagrante — pense nos subornos para conseguir levar esta ou aquela bienal de larga escala a uma região periférica ou outra — é um tabu até mesmo para as pautas da maioria dos artistas que se consideram políticos. Embora a arte política consiga representar os supostos contextos locais de todo o mundo, e com frequência inclua a injustiça e a miséria em seu pacote, as condições de sua própria produção e exibição permanecem bastante inexploradas. Pode-se inclusive dizer que as políticas da arte são o ponto cego da arte política contemporânea.

Decerto, a crítica institucional esteve tradicionalmente interessada em questões semelhantes. Mas hoje precisamos de uma expansão bastante ampla dessa crítica. Pois, em contraste com a época de uma certa crítica institucional, que se concentrou em instituições de arte, ou até mesmo com a esfera de representação em geral, a produção da arte (consumo, distribuição, marketing etc.) assume um papel diferente e expandido na globalização pós-democrática. Um exemplo, que é um fenômeno bastante absurdo, mas também comum, é que a arte radical é hoje muito frequentemente patrocinada pelos bancos ou comerciantes de armas mais predatórios, e completamente embebida na retórica do marketing, branding e engenharia social da cidade. Por razões muito óbvias, essa condição é raramente explorada na arte política, que em muitos casos se contenta em oferecer autoetnizações exóticas, gestos enérgicos e nostalgia militante.

Certamente não estou argumentando em favor de uma posição de inocência. Essa postura é, no melhor dos casos, ilusória, e no pior, apenas mais uma estratégia de venda. Acima de tudo, é muito chata. Mas eu realmente penso que os artistas políticos se tornariam mais relevantes se enfrentassem essas questões, em vez de desfilarem em segurança como realistas estalinistas, situacionistas da CNN ou como engenheiros sociais que são um misto de Jamie Oliver com agente de liberdade condicional. Está na hora de jogar a arte suvenir-de-foice-e-martelo na lata de lixo. Se a política é pensada como o Outro, o que ocorre em outro lugar, que sempre pertence a comunidades marginalizadas em cujo nome ninguém pode falar, acabamos perdendo o que torna a arte intrinsecamente política nos dias de hoje: sua função como espaço de trabalho, conflito e… diversão — um espaço de condensação das contradições do capital e de mal-entendidos extremamente divertidos (e às vezes devastadores) entre o global e o local.

O campo da arte é um espaço de contradição selvagem e de exploração fenomenal. É um espaço de disputa de poder, especulação, engenharia financeira e manipulação maciça e tortuosa. Mas é também um lugar de paridade, movimento, energia e desejo. Em suas melhores iterações, é uma fantástica arena cosmopolita habitada por trabalhadores de choque ambulantes, vendedores de ego itinerantes, garotos prodígio da tecnologia, trapaceiros de orçamento, tradutores supersônicos, estagiários com PhD e outros mendigos digitais e diaristas. É de arame duro, pele fina, plástico-fantástico. Um lugar comum em potencial onde a concorrência é implacável e a solidariedade continua sendo a única expressão estrangeira. É povoado de canalhas, valentões e aspirantes a miss. É HDMI, CMYK, LGBT. É pretencioso, paquerador e hipnotizante.

Esta bagunça se mantém à tona pelo puro dinamismo de incontáveis mulheres que trabalham muito. Uma colmeia de trabalho afetivo submetida a um escrutínio rigoroso e controlada pelo capital, tecida firmemente em suas múltiplas contradições. Tudo isso a torna relevante para a realidade contemporânea. A arte afeta essa realidade justamente porque está atrelada a todos os seus aspectos. Ela é confusa, embutida, perturbada, irresistível. Poderíamos tentar entender seu próprio espaço como um espaço político, em vez de tentar representar uma política que está sempre acontecendo em outro lugar. A arte não está fora da política, mas a política reside dentro de sua produção, sua distribuição e sua recepção. Se assumirmos isso, poderemos ultrapassar o plano de uma política de representação e embarcar numa política que está ali, diante de nossos olhos, pronta para ser abraçada.

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Este texto é dedicado às pessoas que suportam comigo a histeria digital, a síndrome do passageiro frequente e os desastres de instalação. Agradecimentos especiais a Tirdad, Christoph, David, e Freya. Também ao Brian pela edição, como sempre.



Hito Steyerl é cineasta e escritora. Ela leciona Arte em novas mídias na University of Arts Berlin; participou da Documenta 12, da Bienal de Xangai e do Festival de Cinema de Roterdã.



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