Curadoria de Marcelo Reis de Mello
O poeta Stephan Crane
Descobri Stephen Crane ao ler uma versão de In the desert (No deserto) publicada em As magias, livro de “poemas mudados para o português” por Herberto Helder. A identificação foi imediata, assim como a dor de cotovelo: como um autor do século XIX conseguira, com tamanha liberdade formal, extrair tanta vida e verdade em um poema tão conciso? Não tardou para que eu corresse atrás de seus dois livros de poesia, Black Knights and Other Lines (Cavaleiros negros e outros versos) e War is Kind (A guerra é gentil). No ímpeto característico de quem acaba de se deparar com um novo autor favorito, comecei a traduzir as duas coletâneas, mas, como não sou suficientemente disciplinado para a tarefa, acabei abandonando o projeto, do qual apenas um punhado de poemas mudados para o português, como diria H. H., sobreviveu.
Stephen Crane é mais conhecido pelo público em razão do seu trabalho em prosa, sobretudo The Red Badge of Courage (O emblema vermelho da coragem), romance sobre a guerra civil norte-americana, publicado no Brasil pela Companhia das Letras. Ouso dizer, contudo, que são os seus textos poéticos que melhor sintetizam a sua visão do mundo, da humanidade e de Deus. Poucos temas importantes escaparam ao lirismo ora solene, ora bem-humorado, mas sempre crítico, de Stephen Crane, que também era jornalista. Recebido com ceticismo pela crítica da época, Black Knights and Other Lines parece uma reunião de pequenas fábulas morais contadas por meio de personagens cativantes e imagens fortes. Na mesma linha, War is Kind brinca com diferentes vozes e símbolos para nos apresentar reflexões sucintas sobre a guerra, a consciência, o amor e a religião.
Lembro-me de Victor Heringer, para quem “[p]oesia é tudo aquilo que funda mundos no mundo. Um romance pode ser poesia, uma doença pode ser poesia. A peste bubônica, por exemplo, foi um poema impressionante”. Nos mundos dentro do mundo que Stephen Crane imaginou, Deus existe, mas não para cuidar das pessoas, que estão sempre à procura – de novas experiências, de velhas certezas, de si mesmas. Mais de cem anos e algumas epidemias depois, um arquétipo ainda eficiente para os nossos tempos de muitas dúvidas acerca do que acreditamos e do que construímos até aqui.
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No deserto Eu vi uma criatura, nua, bestial,
Que, de cócoras sobre a terra,
Carregava o coração entre as mãos
E dele comia.
Eu disse, “Está gostoso, amigo?”
“É amargo, tão amargo”, ele respondeu;
“Mas eu gosto assim
Porque é amargo
E porque é o meu coração.”
In the desert
I saw a creature, naked, bestial,
Who, squatting upon the ground,
Held his heart in his hands,
And ate of it.
I said, “Is it good, friend?”
“It is bitter bitter,” he answered;
“But I like it
Because it is bitter,
And because it is my heart.”
*
Havia diante de mim uma imensa colina,
E longos dias eu escalei
Por regiões de neve.
Quando tive à minha frente a vista do topo,
Pareceu que me esforçara
Para contemplar jardins
Estirados a distâncias impossíveis.
There was set before me a mighty hill,
And long days I climbed
Through regions of snow.
When I had before me the summit-view,
It seemed that my labor
Had been to see gardens
Lying at impossible distances.
*
“Pense como eu penso”, disse um homem,
“Ou você é abominavelmente vil;
“Você é um sapo.”
E depois de pensar sobre isso
Eu disse, “Serei, então, um sapo.”
“Think as I think”, said a man,
“Or you are abominably wicked;
“You are a toad.”
And after I had thought of it,
I said, “I will, then, be a toad.”
*
“Eu escutei a canção das bétulas ao crepúsculo,
Uma melodia branca no silêncio,
Eu vi uma briga de pinheiros.
Ao cair da noite
As pequenas relvas passaram por mim
Com os homens do vento.
Essas coisas eu vivi”, disse o louco,
“Tendo apenas olhos e ouvidos.
Mas você –
Você põe óculos verdes antes de olhar para as rosas.”
“I have heard the sunset song of the birches,
A white melody in the silence,
I have seen a quarrel of the pines.
At nightfall
The little grasses have rushed by me
With the wind men.
These things have I lived,” quoth the maniac,
“Possessing only eyes and ears.
But you –
You don green spectacles before you look at roses.”
*
Você me diz que isto é Deus?
Eu lhe digo que isto é uma lista impressa,
Uma vela acesa e um asno.
You tell me this is God?
I tell you this is a printed list,
A burning candle and an ass.
*
Um homem disse ao universo:
“Senhor, eu existo!”
“Porém”, respondeu o universo,
“Esse fato não criou em mim
Nenhum senso de obrigação.”
A man said to the universe:
“Sir I exist!”
“However,” replied the universe,
“The fact has not created in me
A sense of obligation.”
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João Gabriel Madeira Pontes é poeta, nascido em 1992, no Rio de Janeiro. É autor dos livros Indiscrição (Kazuá, 2016), Saúvas Avulsas (Garupa, 2019) e Manobra de Heimlich (7Letras, 2021).
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