por Pérola Mathias
No primeiro semestre de 2020, já fazendo alguns meses que enfrentávamos a pandemia do coronavírus, o relatório da RIAA (Recording Industry Association of America) revelou que o streaming foi responsável por 85% da receita de música gerada no período. Outro dado revelado pela agência diz que, pela primeira vez desde 1986, a venda de vinil superou a de CDs. As vendas caíram no ano pandêmico, mas as realizadas foram suficientes para manter uma margem de lucro para o setor.
Num momento em que a música é, cada dia mais, um negócio multiplataforma para a maioria dos artistas populares, o álbum em si, físico ou não, é apenas uma pequena parte do negócio – e, diga-se, uma parte pouco rentável. Os discos representam uma das possibilidades de materialização da música, o que a torna objeto de arte para além de sua execução efêmera. A gravação musical foi também uma forma de fazer com que a música pudesse ser comercializada fisicamente. Com o declínio da indústria fonográfica e com a digitalização da produção dos últimos trinta anos, Micael Herschman, em seu livro Indústria da Música em Transição, observou que os artistas passaram a explorar possibilidades “criativas” geradas pela transformação – e crise – dessa indústria, como a consolidação de concertos ao vivo enquanto negócio, o reestabelecimento da indústria na interface digital e a firme entrada em outros mercados , como a composição de trilhas sonoras para propaganda, filmes, games, celulares etc. Nesse processo, aliás, a “música” perde espaço, porque o gosto do consumidor passa a ser dividido. Hoje, o cenário se complexifica ainda mais e ganha outra configuração com o papel exercido pelas redes sociais.
Se por um lado a tecnologia democratizou o acesso ao processo de criação e lançamento musical para artistas independentes, por outro, com tanta oferta, o público acaba perdido diante das diversas plataformas e novos artistas. E quem não sabe exatamente qual nicho buscar fica à mercê dos algoritmos impostos pelos aplicativos – quase sempre favorecidos por ações de impulsionamento por parte de gravadoras e empresas. Como observado no livro Spotify teardown: inside the blackbox of streaming music, escrito pelo grupo de pesquisadores Maria Eriksson, Rasmus Fleischer, Anna Johansson, Pelle Snickars e Patrick Vonderau, a plataforma, em 2018 (ano de publicação do estudo), funcionava de forma diferente de seus primórdios: se em algum momento a interação do usuário foi organizada em torno de faixas, opções de pesquisa e recursos de ativação da comunidade, como listas de reprodução feitas por você mesmo; hoje, o design de interação reorganiza o consumo de música em torno de comportamentos, sentimentos e humores, canalizados por meio de playlists selecionadas e mensagens motivacionais que mudam várias vezes ao dia.
No ano passado, o CEO do Spotify, Daniel Elk, deu uma entrevista controversa na qual dizia que se os artistas quisessem receber mais, que produzissem mais: “não podem gravar música uma vez a cada três ou quatro anos”, nas suas palavras. Há inúmeras implicações dessa fala e da forma como o negócio tem funcionado. Uma delas, por exemplo, é como a música hoje está tão intrinsecamente relacionada à lógica das redes sociais, em que é preciso ser visto a todo momento para construir e expandir as conexões geradas, em que é preciso manter uma audiência através de uma persona pública que nunca para – afinal, não há bastidor nas redes sociais, onde os espectadores passam em fluxo contínuo. Outra questão que chama atenção, e que à primeira vista pode parecer anacrônica, é: a importância do álbum hoje, considerando, além dos aspectos já citados, que os singles acabam sendo preponderantes no regime do streaming.
A concepção de “álbum” nasceu com a ascensão do vinil enquanto mídia e com a consolidação da indústria fonográfica. Essa ideia, hoje, pode até se encontrar diluída, diante da possibilidade de circulação da música sem mídia física e que se espalha pela internet como um “vírus”, como diz Vivan Caccuri em seu livro O que faço é música. Mas não podemos esquecer que a música carrega em si um valor que não é o exclusivamente monetário. No artigo “The vinyl: The analogue medium in the age of digital reproduction”, Dominik Bartmanski e Ian Woodward, partindo do ponto de vista da sociologia cultural, exploraram a ideia de materialidade e produção de significados, considerando que o álbum analógico, o disco de vinil, promove uma experiência auditiva tal como ler um livro dividido em capítulos. Em outras palavras, o disco de vinil no formato LP (Long Play) passou a materializar uma narrativa sonora que chega ao público na forma de um objeto de arte. Seu sucesso artístico e comercial sugere que esta é uma forma culturalmente valorizada de elaborar e receber a apresentação musical que aspira a ser mais do que mero entretenimento, e serve de convite a um rito de celebração do ato de escuta. Quem se submete a tal ritual se concentra em minúcias da composição e, assim, aprofunda-se em estruturas cuidadosamente delimitadas do LP.
Seguindo esse raciocínio, os autores argumentam ainda que o valor artístico do álbum em vinil não estaria imbuído de um sentido aurático, como designou Walter Benjamin com o conceito de “singularidade” em A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica, pois esta acepção seria rígida demais. Isto implica em uma interpretação de que a ideia de cópia em Benjamin não é nuançada o suficiente para dar conta da variedade de formas que encontramos em nosso tempo.
Para Bartmanski e Woodward, Benjamin empregou a noção de aura principalmente para repudiar o que via como desencanto moderno, cujos sintomas incluíam sua perda como singularidade absoluta: sua intenção teria sido principalmente normativa, não analítica. O vinil, ou sua história, tal como narram, seria ilustrativo das limitações da abordagem de Benjamin e ressaltaria a capacidade dos objetos de serem “performances compactadas”, que revelam a natureza “incontemporânea” da história cultural, além de sugerir uma utilidade inesperada para a noção genérica de aura, que Benjamin trouxe à tona. O truque, então, seria usar o conceito de maneira analítica, não normativa, e torná-lo mais flexível. Primeiro, substituindo “singularidade” por outras categorias, como “raridade relativa” [relative rarity], para, assim, desalojar o conceito de aura de sua estrutura denotativa restritiva. Segundo, entendendo a aura como relacional e multidimensional, não apenas como uma qualidade intrínseca, o que ajudaria a compreender o status icônico de objetos “reproduzidos mecanicamente”, o que Benjamin considerou improvável.
Se para Benjamin um objeto de arte só possui valor enquanto tal em sua unicidade, o que foi perdido com a possibilidade de reprodução na era moderna, para Bartmanski e Woodward, foram outras práticas em torno do objeto o tornam especial. No caso do vinil e seu formato analógico de reprodução musical, a audição aliada à uma materialidade específica contrasta, enquanto experiência, com demais práticas de ouvir música. O vinil demanda uma atenção específica: o zelo para que ele preserve sua qualidade analógica, a limpeza do disco, a manutenção do toca-discos, atenção à arte da capa – práticas rotineiras de cuidado que demandam do ouvinte e o vinculam corporal e emocionalmente ao objeto de escuta.
O vinil acaba por agregar valores outros além do estético ou do produto destinado a um nicho, seja com fins pessoais (ouvir música em casa, por exemplo) ou profissionais (ser DJ, seletor, curador musical etc.), funcionando como instrumento de projeção identitária e de valores morais. Ele também reclama a característica de ser percebido como o som “real”, ou “autêntico”, de praticamente todas as gravações realizadas até meados da década de 1980 – como as dos experimentos de estúdios de músicos como os Rolling Stones ou Miles Davis. Certas gravações foram até mesmo pensadas originalmente para serem ouvidas no formato do vinil.
Vivian Caccuri, ao estudar a confecção de discos de artistas contemporâneos brasileiros, como Cildo Meirelles, Waltercio Caldas e o coletivo Chelpa Ferro, critica a ideia de que um produto do mercado fonográfico possa ser considerado um objeto de arte sem ser deslocado de seu contexto. Retomando o texto “A forma do disco”, de Adorno, ela relembra as atribuições dadas pelo autor ao papel que o disco adquire em coleções privadas, o que inevitavelmente distancia o artista e o público. Para suavizar o efeito da música aprisionada pela gravação, a indústria fonográfica promoveu o sistema do estrelato para atribuir a ela um caráter humano. Da gravação de uma apresentação a seu ambiente, a concepção do disco passa a servir à economia que transforma a música em produto. A indústria estabelece padrões de gosto e permite que a música sirva também à atividade do colecionismo. Do vinil ao streaming só primeiro possui o “valor do objeto”, a possibilidade de materializar a arte musical em razão de sua qualidade sonora – aclamada frente aos áudios em formatos comprimidos – e da criação plástica e de design de sua capa, por exemplo.
Ao estudar os “discos de artista”, Caccuri aponta como que a apropriação da mídia vinil por artistas plásticos, que deslocaram o sentido de álbum, e demonstram a transformação do meio em “objeto-fetiche”. A autora considera irônico que, atualmente, os músicos escolham lançar seus discos em vinil para atender à crescente demanda consumista. Mas, esta não seria também uma demanda do ouvinte, ainda que de um nicho específico afetivamente ligados à música?
Questionar se o álbum ainda tem valor hoje em dia pode parecer anacrônico porque é difícil que um formato consolidado e ainda amplamente explorado desapareça, mesmo com a pressão por lucro sobre os músicos. Os objetivos artísticos do single e do álbum são diversos e os sentidos que eles vão adquirindo dentro da configuração da indústria fonográfica se altera também. Tanto que, se formos ver os portais especializados de crítica e notícias, a questão tem estado bem presente: qual o lugar do álbum hoje, já que os artistas que alcançam as paradas de sucesso, e que faturam mais no mundo do streaming, cada vez mais investem em singles? Quanto vale um álbum na era do consumo de streaming, em que, além de pagarmos pela assinatura da plataforma que media a audição, não necessariamente teremos uma mídia física para usufruir de sua materialidade? Por que gravar um álbum se no regime de atenção que vivemos, provavelmente, depois de uma semana o nome do artista já terá sumido das paradas? Não seria mais vantajoso ter um single direcionado para a dinâmica de novas redes, como o Tik Tok?
Em agosto de 2020, o crítico musical do New York Times, Jon Caramanica, escreveu um texto analisando que o preço de um álbum pode variar e até mesmo valer nada, dependendo de quem esteja vendendo. Podemos estar falando de um artista que valoriza o formato e encontra um nicho de fãs dispostos a pagar caro pelo trabalho; ou de um artista ligado à uma grande empresa que não valoriza o formato; ou ainda que prefira outros produtos, com maior valor de mercado ou que agreguem mais publicidade. Elias Leight, da Rolling Stones, escreveu em 2018 um texto no qual questionava “Por que seu artista favorito está lançando mais singles do que nunca?”. Segundo ele, o cenário reflete o ritmo alucinante de um tempo movido pelo streaming e pelas redes sociais, além de single permite que as gravadoras examinem uma variedade de faixas e avaliem a resposta do ouvinte. Mas a estratégia pode falhar e o jornalista faz questão de frisar com exemplos, como já aconteceu com Justin Timberlake e Taylor Swift, apontando que lançar muitas faixas soltas pode eclipsar o impacto do álbum quando este vem à tona.
Mesmo que a indústria da música seja, hoje, dominada por três grandes empresas e que a venda de discos tenha se tornado arriscada e pouco lucrativa com o processo de digitalização, não é apenas a questão financeira que determina como o mercado de bens culturais funciona. O assunto é tema do recente, porém já referência, “Labels: making independente music”, de, mais uma vez, Bartmanski e Woodward. Nesse estudo, os autores demonstram como centenas de pequenas gravadoras independentes se desenvolveram em diversos países da Europa, no Brasil, na Coréia do Sul e no Japão, por exemplo. Esses selos competem com o mercado da indústria de massa de forma assimétrica, mas as majors precisam dos capitais musicais, artísticos e culturais que os pequenos desenvolvem. E, na maioria das vezes ser independente significa algo muito além do tamanho da estrutura econômica da empresa: ser independente é também um conjunto de estruturas e práticas afetivas, morais e estéticas.
O espaço de criação e resistência independente apareceu, recentemente, em matéria de Luciano Matos, do site El Cabong, mostrando que estes selos têm resistido ao longo dos anos se especializando e definindo atividades que visam tirar cargas burocráticas das atividades diárias do próprio artista e insistido em formatos de mídia específicas – como o vinil. Segundo um dos entrevistados, do selo Monstro Discos, o vinil é um dos trunfos da empresa, uma vez que, ao gerar receita permite que outros produtos sejam também criados.
Os pontos de vista tendem a ser contraditórios e complexos, mas é importante não pensar através de dualidades redutoras que coloquem aspectos mercadológicos de um lado e valores artísticos e culturais de outro: a imbricação entre o independente e o mainstream muitas vezes é mais de interdependência do que de oposição.
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