frame do filme Memoria (2021), de Apichatpong Weerasethakul
ATM
Você tira os óculos;
seus olhos são de novo dois
sorrisos invertidos, e pode ser terrível
a doçura, como um doce que se devora
desesperadamente.
Prefiro você sem óculos
de olhos fechados, repito, porque
não concluí ainda a superfície
do seu rosto — que ponto ali me vence
antes da boca, daquele estalo.
Ontem depois do pasmo
percebemos: sou a antena
e você o disco-rígido, e eu me agarro
à sua memória não como a um bote
salva-vidas, mas como a uma nave
metálica e antiga; e mais
aos seus cílios do que às sobrancelhas
densas — um casal de nuvens
prestes a sufocar
a serra.
(Eu serei sua cantora
você minha canção —
ou seria o inverso? Não sei bem.
Sei que seus olhos desmentem sua boca, e não
o inverso.)
*
Você se liquefaz em meus braços:
somos filhos da história.
Não sei bem se conseguimos
perfurar a espessura do mundo
eu, você e este estrondo surdo;
não é exatamente nas palavras
que nos amparamos.
Somos filhos da história
e isso é um bom presságio;
mas não sei seu estado físico
a pressão atmosférica
seu ponto de ebulição.
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To the Monsters, we’re the Monsters
mas veja: antes que eu me esqueça
que no inverno o poente é mais vermelho
em Cosmópolis, SP, onde você provou
seus pés enormes e saudáveis; antes
que por receio eu omita que a mochila felina
quase rima com a sua queda da Bastilha; antes,
logo antes que eu desista de decifrar
sua grafia e antes de buscar seu rosto
numa rua apinhada; antes de abandonar as janelas
vermelhas, que não são portas, nunca serão,
pois nem sempre há saída. Antes que eu me lembre
da areia implacável do vidro das horas
e que se dissolva o duplo frame
que ficamos de guardar até o sempre —
veja: é um fogo-cruzado o encontro
de dois olhos fascinados
a extinção de campo-contracampo
por uma fração leitosa da vida.
Antes que não haja explicação e, com sorte
antes de havê-la, entro agora e novamente neste quarto
de hotel. “São as mãos que conhecem as mãos”,
você escreveu, antes. Entro neste quarto de hotel para entrar
no intervalo dos seus dedos. Vejo você e chego antes
do disfarce (você me espera diante da janela)
e antes que a noite azule, posso dizer: sou agora
uma monstra voraz e feliz, tenho mãos
antecedentes, tenho mãos, finalmente,
em excesso.
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