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Dobrando cronologias: a arte como fissura espaço temporal

por Aldones Nino



outros mundos não apenas são possíveis, mas

estão vindo – e já podemos ouvi-los respirar


Suzanna Arundhati Roy




O compartilhamento de saberes e o surgimento, em escala acelerada, de dúvidas, e questionamentos derivados da diversidade epistêmica das matrizes discursivas da arte contemporânea, tem gerado modelos hipotéticos que proporcionam uma hipervascularização da produção de conhecimentos no âmbito da arte e da cultura na atualidade. Tal consenso tem admitido a revisão de modelos analíticos através da produção alternativa de teorias considerando fundamentos que indicam distintas e independentes bases conceituais para sua formulação. Os artistas, a crítica de arte e mais, o corpus acadêmico das universidades e os sujeitos enclausurados nas instituições culturais têm sido colocados em linhas fronteiriças entre a tradição e o desvio. Esse estado das coisas, solicita um amplo elenco de proposições, que quantitativamente oferecem possibilidades para a compreensão dos mais variados fenômenos do presente.


Temos na matriz argumentativa da teórica Denise Ferreira da Silva, uma reflexão junto à arte contemporânea, que propõe o desmonte es premissas estéticas defendidas pelo alemão Immanuel Kant (1724 — 1804) e estabelece a partir desse parâmetro um “locus generativo para o engajamento em uma reflexão radical sobre as modalidades de subjugação racial (simbólica) e colonial (jurídica) que operam com plena força no presente global“. Junto a esta formulação, podemos considerar múltiplos projetos que atestam para uma defasagem nos atuais modos de fruição, exibição e formulação crítica. Não me furto a considerar que em nossa época, testemunhamos o aumento da emergência de narrativas e iconografias, outrora, submetidas aos processos coloniais de interpretação artística e cultural. Nessa ordem de discussão, vale recordar o pensamento de Silvia Rivera Cusicanqui, que em Sociología de la imagen (2015), apresenta possibilidades de (re)elaboração de passados a partir de um posicionamento crítico ao tradicional regime de circulação de imagens, sobretudo no que concerne aos cânones que são operados no campo da história da arte.


Alinhado a tal discussão e aos processos de violência de nossa história, consolidou-se um acervo visual de fabulações capazes de evidenciar rudimentos de uma episteme euro-cristã. Nesse sentido, ao nos depararmos com os registros da historiografia tradicional, é necessário reconhecer que adentramos num complexo campo de disputa discursiva. Nas palavras de Cusicanqui, essas imagens podem formar ”parte de un juego de interpretaciones sobre el pasado, no como algo dado, acabado y muerto, sino un pasado-como-futuro: una fuente de renovación y de crítica moral frente a lo dado, a la opresión y a la dominación en tanto resultados inevitables del progreso y la modernización”. Esse jogo de interpretações, são ordenados por artistas que diante destas imagens, aspiram “una nación posible, plural y abierta, en la que se reconozca la heterogeneidad social no como un obstáculo sino como una fuente enriquecedora de una otra modernidad que, en la diferencia, sea capaz de superar las derrotas y frustraciones colectivas que la historiografía tradicional ha expuesto reiteradamente.


A reiteração contínua de lugares comuns, são assentadas na filosofia ocidental e na modernidade, como é explorado pela teoria do sistema-mundo, desenvolvida por Fernand Braudel. Nessa perspectiva, seria possível estabelecer convergências entre o sistema social e o avanço do capitalismo entre diferentes países. Tradicionalmente separadas em distintas análises, as esferas econômicas, políticas e socioculturais são analisadas a partir da interconexão dos processos que constituem as estruturas dos Estados Nacionais. Essa conexão, contribui com a formação de uma análise mais específica das realidades, tendo em conta uma multiplicidade de perspectivas que dão contornos ao mundo que nos circunda. A ampliação desta teoria é realizada por Immanuel Wallerstein, que afirma que a gênese deste sistema (séc. XVI) foi seguida por um processo de expansão que culminou no atual sistema global de trocas. Em sua obra, O universalismo europeu: a retórica do poder (2007), Wallerstein aponta que muitas das idéias “igualitárias” da modernidade são operadas de modo a sustentar a falácia da superioridade dos países do eixo ocidental (Europa - Estados Unidos). As falácias as quais se manifestam no mundo político econômico se refletem diretamente nas questões sócio-culturais. É significativa a forma como o autor aponta para alterações do que denomina “Universalismo Europeu”, ou seja, o conjunto de premissas que moldam as relações das potências europeias e outros territórios. Em sua argumentação, mudanças indicariam o florescer de uma época capaz de insurgir-se as visões tirânicas como estrutura de um sistema-mundo futuro.


Os estudos decoloniais mesclam-se com esse contexto, na medida em que a teórica Jota Mombaça, aponta que “interessa intensificar o interrogatório do pós-colonial rumo a uma ética posicionada contra as ficções de poder e atualizações da colonialidade na experiência ordinária dos dias”. Esse breve esboço de questões, têm como foco aludir às heranças de modelos de pensamento e condutas coloniais. Urge a necessidade de uma reflexão acerca dos questionamentos para além de um contra-regime visual, apontando para as implicações políticas de cada projeto teórico ou artístico. Ideias como progresso, razão e ciência, sustentaram os modos de operação do sujeito, e tais configurações dos sistemas de dominação podem ser potentes pontos de partida da produção contemporânea, pois imbricados no processo de descolonização do imaginário, artistxs e pensadorxs propõem uma liberação da “rede de significação sustentada pela separabilidade, determinabilidade e sequencialidade”.


Metodologicamente, podemos pensar a ficcionalização como um modo operativo de argumentação, associado à postulação da escritora Imarisha Walidah, que afirma “toda articulação política é ficção científica”. Enquanto germe propositor de novas realidades, a possibilidade de articulação política estimula novos arranjos sociais. Imaginar mundos e narrativas nunca antes propostos, mais do que mera enunciação de possibilidades, seria a instauração de novos acervos epistemológicos e estéticos, sob os quais erigimos nossas pontes ao futuro.


Logo, o gênero de ficção científica, possibilita o abandono da temporalidade linear e das limitações político/científicas do presente. Em Reescrevendo o futuro: usando ficção científica para rever a justiça, Walidah afirma que “quando falamos sobre um mundo sem prisões; um mundo sem violência policial; um mundo onde todo mundo tem comida, roupas, abrigo, educação de qualidade; um mundo livre da supremacia branca, patriarcado, capitalismo, heterossexismo; estamos falando sobre um mundo que não existe atualmente. E sonhá-lo coletivamente significa que podemos começar a trabalhar para fazê-lo existir”.

Sonhar coletivamente, significa poder imaginar coletivamente, planejar coletivamente, narrar coletivamente, logo, a descolonização da imaginação seria o mais perigoso e subversivo dos processos de descolonização. Desta forma, adotar a ficção científica como campo de enunciação e formulação de pensamento, possibilita ir além dos limites da física clássica, pensando a partir de fissuras, onde a linearidade cronológica é desautorizada como critério metodológico determinante. A partir de um encontro realizado no presente, artistas hackeiam imagens do passado, indicando caminhos e adotando estratégias para a reordenação política de imaginários contra hegemônicos. Ao longo deste ensaio, alguns pares de conceitos são reiterados não no sentido de reafirmar um vocabulário teórico fechado, mas surge como estratégia argumentativa que compreende a linguagem como um dos eixos possíveis de refiguração de mundo, afirmando propostas estéticas em oposição às imagens orientadas por modos interpretativos fundados a partir de espectros traumáticos e violentos.


Desde o final do século XX vemos a amplificação quantitativa e qualitativa de empreendimentos teóricos de formulação de pensamento crítico, frente à produção artística da civilização ocidental e a historiografia linear e cronológica. Podemos destacar escritos como do historiador da arte Douglas Crimp On the Museum’s Ruins (1980), publicado na revista October, O fim da história da arte? (1983) de Hans Belting e The End of Art (1984) de Arthur Danto, autores que elaboraram modelos analíticos da concepção tradicional que marcou o desenvolvimento da história da arte desde o Renascimento. Reconhecendo a impossibilidade de uma constituição teleológica da história da arte, instaura-se uma fissura que demarca um declínio do entendimento da arte como uma ciência européia. Por exemplo, o Brasil é um país dotado de um sistema didático e pedagógico associado ao Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), onde podemos encontrar a reiteração contínua de imagens de um passado histórico assentado em imaginários, expansionistas. Nesse sentido, vale considerar a pesquisa da historiadora Thayane Freitas, que em um artigo aborda a obra de Jean-Baptiste Debret (1768 — 1848), que “primeiramente esquecida, passou a integrar os materiais didáticos, principalmente, a partir do século XX, para permanecer no imaginário e na construção da memória coletiva dos brasileiros”.



Adriana Varejão, “Carne à moda de Frans Post”, 1996. Óleo sobre tela e porcelana, 60 x 150 cm / 60 x 80 cm (tela). Coleção Brondesbury Holdings Ltd., Caracas, Venezuela.



A intercadência da violência e visualidades


Na busca de encontros entre imagens do passado e uma prática poética do presente podemos considerar a investida nesse campo realizada por Adriana Varejão, artista que em trabalhos como Filho Bastardo II: Cena de Interior (1995) e Carne à moda de Frans Post (1996), opera a partir das imagens criadas por artistas viajantes, ao mesmo tempo, traz para o centro da discussão o embate sobre a violência histórica e os arcabouços historiográficos formadores de nossa memória coletiva. Frente a um debate inflamado acerca da globalização, e dos estudos culturais e pós-coloniais, sua obra apoia-se na violência como elemento constituinte da paisagem, surgindo como metáfora possível de reivindicação imagética do passado histórico, assentado em novos diálogos formais e matéricos, podemos ver os usos da violência e da história colonial como ponto de partida para a interrogação do presente.


Abordaremos trabalhos que (cada um ao seu modo), propõem uma refiguração do real, nesse sentido, a produção de Debret, talvez seja a mais requisitada como imagem disparadora de metáforas contra hegemônicas. O sociólogo José de Souza Martins, no livro Linchamentos - A justiça popular no Brasil (2015), discorre sobre os registros desta prática no Brasil desde o séc. XVI, abordando os aterradores vínculos que podem ser estabelecidos entre essa prática e a racialidade, afirmando que caso o linchado seja negro, aumenta “a probabilidade de aparecerem outros componentes mais violentos como mutilação, furar olhos ou queimar viva a vítima”. O vídeo Justiça e Barbárie (2017) de Jaime Lauriano, sobrepõe cenas de castigos coloniais registrados por Debret, com áudios que abordam linchamentos contemporâneos, efetivando o entrecruzamento de estruturas de punição de corpos racializados no período colonial e no presente.



Jean-Baptiste Debret, ‘Voyage pittoresque et historique au Brésil”, 1834. Paris. ed. Firmin Didot Frères.



A astuta reincidência das imagens de Jean-Baptiste Debret nas propostas que destacamos, relacionam-se com seu entendimento como um dos mais importantes nomes da Missão Artística Francesa, que buscou instaurar o ensino formal de Belas Artes no país, publicou o livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil (1834). Conjuntamente, estes fatos contribuíram para sua presença quase unânime na formação da visualidade da história do Brasil Colônia, difundida através da educação formal. As imagens dão corpo às estratégias que assentam-se sobre essas imagens do passado, modificando e atualizando os discursos explícitos e implícitos das imagens de Debret. Esta é a base de, onde o artista utiliza o açúcar como metáfora do comércio atlântico e do tráfico de pessoas escravizadas. O açúcar alude aos processos de branqueamento de narrativas que inviabilizam o acesso às histórias diaspóricas nos livros, nas palavras da historiadora Lilia Schwarcz, o açúcar cria praticamente “uma moldura doce para uma imagem amarga”.



Tiago Sant’Ana, “Refino #3”, 2018. 4’50”



Por sua vez, as colagens digitais da série Atualizações traumáticas de Debret (2020) de Gê Viana, estabelece relações expostas já em seus títulos como: loja de ervas 1810 vendas de tabaco e especiarias como chá, raízes, sementes, plantas. Rainha Ndatté Yalla passa pros filhos e sobrinhos sua experiência de curandeira no estudo das folhas (2020) e Para estratégias de sobrevivência as maiores tecnologias são as nossa (2020). As obras articulam sabedorias ancestrais como tecnologias políticas, apontando para a necessidade contra argumentativa das relações memorialísticas da sociabilidade de pessoas racializadas no Brasil colônia. Essa mesma estrutura continua sendo interrogada por Dalton Paula, em sua série Santos Médicos (2016), onde altera as capas dos livros, impondo a imagens que aludem aos processos curativos que extrapolam práticas colonizadoras e ocidentais, reivindicando imagens da sabedoria popular e da ancestralidade, no que diz respeito aos cuidados do corpo e da saúde, assim efetivando uma ode às simpatias, pajelanças, feitiços, curandeiras, benzedeiras, ratificando processos de escrita e salvaguarda do saber medicinal. Na proposta de Anastácia Livre (2019) de Yhuri Cruz, a visualidade do século XIX é alterada como símbolo de insurreição, ordenando questões como enunciação e exclusão, entendidos como eixos centrais para questionar o lugar ocupado pelos grupos historicamente subalternizados. Sua intervenção retira tecnologias de torturas coloniais materializadas nas gravuras do livro Souvenirs d' un aveugle: voyage autour du monde (1839), publicado na Europa por Jacques Arago (1790 — 1854). As mesmas estratégias políticas que fomentam o silenciamento e a não escuta, adotam a não nomeação como critério de esquecimento, desta forma reduzindo o direito à memória e a posteridade, como na fotografia Negra da Roça (1861) de Victor Frond (1821 — 1881), onde uma mulher e reduzida a classificação racial. Este ‘quase retrato’ é inserido em Faço o fogo e carrego a fogueira (2019), onde a narrativa visual de Mulambö propõe a insurreição como metodologia de ruptura de ferramentas coloniais, simultaneamente incendiando o imaginário com a proposição de subversão, forjada no fogo e na fissura de modelos de representação.


Yhuri Cruz, “Monumento à voz de Anastácia, 2019. Afresco-monumento à voz e distribuição de santinhos de Anastácia Livre





Qual a naturalidade da história?


No contexto contemporâneo o livro é adotado como suporte, visando criar articulações que evidenciam a continuidade dos processos de exclusão que ocorrem em diferentes escalas temporais e espaciais e ainda propõe uma possibilidade de futuro, na produção de alguns artistas orientados pela autodeterminação teórica e imaginativa. A imaginação pode ser usada para ordenar reivindicações ontológicas, como nos trabalhos debatidos aqui, pois estes geram composições poéticas que permeiam temas urgentes dado nosso contexto político social. O colonialismo foi apresentado como um projeto de "extensão da civilização", pretendendo ideologicamente justificar a superioridade racial e também cultural auto atribuída ao mundo ocidental em detrimento de um mundo “não-ocidental”. Logo, a imaginação formada a partir de consequências psicológicas e materiais da existência, adotam posturas relacionadas ao pensamento decolonial, trabalhando de forma poética traços da história, e examinando as relações funcionais de poder que sustentaram o colonialismo e o neocolonialismo.



Rosana Paulino, “História Natural?”, 2016. Técnica mista sobre imagens transferidas sobre papel e tecido, linoleogravura, ponta-seca e costura. 29,5 c 39,5 cm



Em História Natural? (2016), Rosana Paulino traz no título uma interrogação frente a neutralidade epistêmica, friccionando o pensamento eugenista e o racismo científico, pois seu trabalho reconhece estas como marcas indeléveis da história política e econômica do Brasil. Evocando a ciência europeia novecentista, Rosana Paulino contra-argumenta frente ao empreendimento colonial, e a partir da técnica da gravura e da colagem, propõe novas viagens científicas, mas que desta vez, reelabora o passado e o saber enciclopédico, propondo uma ruptura nas estruturas universalistas oriundas da Europa. Neste trabalho, Rosana Paulino intercala a azulejaria como um importante componente da cultura portuguesa, e o Retrato do índio Muxuruna, presente no livro publicado em Munique, em 1823, pelos alemães Johann Baptiste von Spix e Carl Friedrich Philipp von Martius, colocando em cheque as expedições artísticas e científicas, prática esta que foi um dos sustentáculos da construção da ciência no Brasil.



Johann Baptist von Spix, “Índio Muxuruna”, 1823



Na performance Axexê da Negra ou o descanso das negras que mereciam serem amadas (2018), Renata Felinto executa uma ação que propõe a finitude do regime de representação da mulher negra na historia da arte brasileira, evocando a imagem de A Negra (1923) de Tarsila do Amaral. Reconhecendo que Tarsila elabora sua pintura a partir da expressão do mito da mãe preta, figura presente no imaginário literário de raça e mestiçagem, difundida em diversos escritos modernistas como de José Lins do Rego (1901 — 1957), Carlos Drummond de Andrade (1902 — 1987) e José Américo de Almeida (1887 — 1980). Estas obras delineiam o imaginário social, nutrindo o mito da democracia racial, como evidenciado no artigo da pesquisadora Sonia Roncador, nesse contexto “a relação higiênica entre a mãe negra e o filho branco de criação configura-se como símbolo privilegiado da confraternização interracial brasileira na literatura freyreana, assim como nas memórias de outros autores modernistas de sua geração”. Renata Felinto efetua sua recusa a partir de um ritual fúnebre de passagem entre vida e morte, onde a terra cobre e finda o projeto que subjaz à pintura.



Renata Felinto, “Axexê da NEgra ou o descanso das mulheres que mereciam serem amadas” 2018



Nessa seara se destaca a instalação da fotógrafa Aline Motta, Filha Natural (2018/2019), trabalho que envolve sua experiência com cinema e na medida em que visa lançar luz a sua ancestralidade e os complexos vestígios documentais do Brasil escravocrata este torna-se um projeto de pesquisa pessoal e coletivo. Partindo de uma busca documental e poética das origens de sua tataravó, seus filmes, fotografias e escritos, utilizam a noção de duplo fazendo com que o passado seja friccionado pelas ausências imagéticas. E a partir da performance da líder comunitária Claudia Mamede, ocorre uma desestabilização das “narrativas e representações usuais da iconografia brasileira do século XIX tomando para si o próprio visor, em um retorno cíclico e transcendente, mesmo que ainda no Brasil de hoje, seja um gesto vindo de um futuro ficcional”, logo, em consonância com possibilidade já apontada no início deste ensaio.



Aline Motta, “Filha natural #2”, 2018-19. 15’52”. Acervo Masp


A imagem fotográfica também é disparadora dos trabalhos realizados por Paulo Nazareth no Rockefeller Center em New York. Na entrada deste conglomerado, comissionado com lucros do monopólio petrolífero, o artista brasileiro dispõe duas peças de alumínio recortado, que amplia até a escala monumental, registros fotográficos relacionados a episódios da luta antirracista. Em Dry Cut [from BLACKS IN THE POOL - Ruby] (2019), vemos a imagem de Ruby Bridges, que teve que ser escoltada diante do repúdio de pais e professores brancos que recusaram a possibilidade de escolas integradas em 1960. E em Dry Cut [from BLACKS IN THE POOL - Tommie] (2019), vemos o punho direito fechado, uma saudação do Black Power realizada no pódio dos Jogos Olímpicos de Verão de 1968 por Tommie Smith, que tornou-se um marco na história das lutas políticas dos afro-americanos. Essas relações entre opacidade, visualidade e protagonismo, são elencadas como eixo dessas propostas, enquanto no caso da pesquisa de Aline Motta a fotografia se imbrica na sua história familiar ao lado da violência sistêmica constituinte da história do Brasil, para Paulo Nazareth, tanto Ruby Bridges quanto Tommie Smith, surgem no interesse de fomentar as políticas de memória dos ícones da luta pelos direitos civis, nesse sentido, essas peças são erigidas sob a potência da articulação de recortes, modificando materialidades e escalas, quando estes colaboram para a descolonização de nossos imaginários.


O fotolivro Missão Francesa (2017) de André Penteado, apresenta imagens do presente em consonância com sua história colonial e monárquica. Oriunda de uma cadeia institucional de ensino e exibição de trabalhos artísticos, André investiga a missão artística francesa como um episódio da biografia brasileira que impactou a formação de determinado espírito nacional. Como atesta a inclusão nesta série da reprodução de um texto que traça um plano de trabalho para o ensino de belas-artes no Brasil. Documento este redigido por um dos líderes da missão francesa, Joachim Lebreton (1760 — 1819) e posteriormente traduzido do original em francês e publicado na revista do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) pelo historiador Mário Barata em 1959. Segundo o curador Moacir dos Anjos, essa série

Sem querer concluir coisa alguma ou fazer julgamento de nada, são imagens que matizam narrativas descomplicadas sobre os resultados da Missão Francesa no Brasil, posto que a instituição de uma cultura artística "culta" teve como quase inevitável contraparte tanto a confirmação da ausência indígena no imaginário artístico do país quanto o sufocamento de outra tradição em artes que então se consolidava ali, fincada no barroco e com presença negra relevante entre mestres e aprendizes treinados em moldes diferentes dos adotados pela academia. Missão Francesa, de André Penteado, reabre, de modo quase insinuado, a discussão tantas vezes interrompida sobre as relações entre poder, arte, raça e classe no Brasil.



Pintura e sobreposição de camadas históricas



Marcela Cantuária, “La Larga Noche de los 500 anõs, 2019. Óleo, acrílica e spray sobre tela. 270 x 490 cm. Foto: Vicente de Mello



Inserindo-se nesse processo de incorporação de códigos e signos na pesquisa pictórica, Marcela Cantuária atravessada pelas urgências das lutas feministas entrecruzadas com a luta pela dignidade dos povos originários em La larga noche de los 500 años (2019), orienta-se por antigas profecías indígenas, que alertam que a “longa noite de 500 anos”, iniciada com a chegada dos europeus ao continente, seria findada sob uma reordenação a partir da qual emergirá o alvorecer de um tempo benéfico e de glória para os povos. Não à toa o deserto do Atacama aparece na composição, simultaneamente cindido em dois tempos distintos, representado como um dos lugares mais secos do mundo. Ainda que tenha funcionado como espaço de despojo das violências da ditadura, este deserto também é palco da rara floração do deserto, fenômeno também conhecido como “milagre do Atacama”. Nesta pintura, esse local anteriormente imerso na poeira do passado, simultaneamente é desordenado por esse imprevisível fenômeno natural, transfigurando-se em sublimes jardins floridos. O Caboclo (1834) de Jean-Baptiste Debret, aponta para a lua anunciando a chegada de um reordenamento social e místico, e nesse sentido vale considerar a frase título da obra, que evoca também o discurso político anti-sistêmico do Comitê Clandestino Revolucionário Indígena do exército Zapatista proferido em 1994.



Jean-Baptiste Debret, “Caboclo”, 18820. Aquarela sobre papel. 22 x 27,20 cm, Museus Castro Maya - IPHAN



Na produção de Arjan Martins também encontramos inúmeros pontos de contato entre temporalidades, pois ao adotar simbolismo monárquico de águias, coroas e caravelas, fazendo referência aos fluxos migratórios do período colonial. Apresentando a metáfora das caravelas coloniais submersas, Arjan inverte a lógica da cartografia como ferramenta de dominação. Estas caracteristicas marcam grande parte de sua produção, como em Sem Título (2016). Para o crítico Luiz Camillo Osório, a pintura de Arjan

existe simultaneamente enquanto exercício moderno de problematização dos dados da percepção e como explicitação contemporânea de vozes excluídas que se mobilizam pela criação de outros repertórios imagéticos. De um lado, há uma pintura que recusa a transparência comunicativa na busca por uma materialidade pictórica que se sabe pertencendo ao universo simbólico do “museu imaginário”. De outro lado, vemos uma vontade de fala da pintura quebrando os limites deste universo encantado do museu e buscando incorporar códigos e signos historicamente excluídos.

A citação a história da arte brasileira é ponto de partida de poéticas que propõem desvios da cisnormatividade, e apontam para uma rearticulação das formas e modos compositivos tradicionalmente estabelecidos na historiografia da arte. Partindo de uma pesquisa de ícones, cores e paisagens que compõem o cânone oficial, percebemos a presença como fator de inscrição histórica e autodeterminação em A Primeira Missa no Brasil (2017) de Ventura Profana. A pintura homônima de Victor Meirelles (1832 — 1903), pintada entre 1859 e 1861, é moldada como parte de um projeto de estabelecimento de mitos fundadores, a partir do papel desempenhado pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro junto à Academia Imperial de Belas Artes. Neste trabalho a artista retira a imagem que dá o protagonismo da cena a figura de um cristo heterocentrado, centralizando a travesti como insígnia de adoração e poder. Na refiguração de Ventura Profana, seu corpo alude a continuidade anunciada como profecia de vida, perpetrada pela continuidade das existências dissidentes da heteronorma.



Ventura Profana, “A Primeira Missa no Brasil” 2017. Colagem digital a partir da pintura de Victor Meirelles.



O protagonismo e a reinserção figurativa na história recente da arte brasileira é efetivado por Agrippina R. Manhattan, que recompõe trabalhos icônicos da década de 1960 e 1970, como Lindonéia – a Gioconda do subúrbio de Rubens Gerchman e a série Burocracia de Anna Bella Geiger. Tais referências são figuradas em Transfobia (2018) e A Bela Agrippina (2019), trabalhos que realizam um entrecruzamento com os processos burocráticos e formativos da representação da mulher na historiografia. Em consonância com sua pesquisa teórica, um de seus artigos afirma que a inclusão das temáticas travesti/transgeneres “não podem mais ser submetidos aos antigos estandartes sejam eles do pensamento clássico de gênero pelo binarismo ou pelo apagamento de nossas falas na história da arte”.



Lyz Parayzo, “Bixinha”, 2018. Alúminio. 45 x 45 x 45 cm. Acervo Masp



Análoga a esta pesquisa há a série Bixinhas (2018-2020) de Lyz Parayzo, esculturas em metal que assemelham-se à armas de autodefesa, invertendo assim a participação solicitada por Lygia Clark em sua série Bichos (1960 - 1964). A peça de Lyz é um híbrido entre jóia e arma, que alerta para a potência bélica do corpo e sua participação na arte, sujeito não apenas a representação, como também a autodeterminação. Diante disso, esses processos artísticos que interferem diretamente nas imagens e formas da arte brasileira, podem ser considerados como plataformas de enunciação e proposição de imaginários. Ainda podemos incluir nesse escopo a série UóHol (2019) de Rafael Bqueer, elaborada a partir de uma referência que cruza a cultura do ícone a partir dos retratos das celebridades da cultura pop norte-americana realizados por Andy Warhol (1928 — 1987). Alusão que na proposta de Bqueer, centraliza a emergência da memória e do reconhecimento de personalidades chaves para a compreensão da história de ícones negros da cultura LGBTQI+ no Brasil, fazendo reverência a ícones culturais como Jorge Lafond, Marcia Pantera, Madame Satã e Leona Vingativa. Estes trabalhos apontam como a historiografia também necessita ser localizada frente aos estereótipos delirantes da dominação patriarcal.



Rafael Bqueer, “Leona Vingativa - Série UóHol”, 2019. Impressão digital fine art. 50 x 67 cm.




A dobra e a viagem temporal


A modernidade foi suplantada por modelos que operam uma ruptura radical nas bases constituintes de seu processo de consolidação, resultando em pesquisas que evidenciam fundamentos historicamente relacionados aos processos violentos e expansionistas adotados.


Ao longo das últimas décadas do século XX, o Estado foi destacado como instância central, erigida sob uma visão de organização racional da vida, gerado a partir de um projeto que opera a partir de um pretenso espaço de síntese, capaz de formular metas coletivas válidas para todos, e que age no interesse de submeter o corpo e o tempo à uma normatividade cientificamente legitimada e definida pela epistemologia. O Estado utiliza a razão como método de manutenção do monopólio da violência, que busca a antecipação da insurreição. E nos interessa destacar a existência de critérios racionais que direcionam os desejos e interesses grupais e subjetivos, até às tais metas previamente definidas.


Aí está inserido o conceito de dobra que venho analisando nos últimos anos na tese que desenvolvo desde 2017, e que pode ser compreendida em sua acepção mais comum: como um plano que se vira ao longo de uma linha e que fica sobreposta a outra parte do mesmo material ou objeto, ou também como o ato de multiplicar algo por dois - duplicar. Ambos sentidos me interessam, já que ao pensar na atividade realizada por alguns artistas na contemporaneidade, me volto para a ação realizada de oposição à linearidade, considerando a formulação de projetos que divergem da sequencialidade histórica, permitindo encontros e “dobrando” linearidade cronológica e promovendo uma possibilidade de futuro diferente ao proposto pela ordem corrente dos fatos. Nesse sentido, o ato de dobrar o tempo, como proposta de alteração da realidade, instaura uma fissura espaço temporal que estabelece o encontro entre o passado e o presente, visando um futuro distinto do já imaginado.


Desde textos épicos como o Mahabharata e a Bíblia Sagrada, até as cartas de Samuel Madden, e as narrativas de HG Wells e Octavia Butler, podemos encontrar elucubrações escritas sobre deslocamentos temporais, criados a partir de torções na linearidade cronológica, hibridizando passado, presente e futuro. Fato que representa a potência poética dos deslocamentos imaginários, que extrapolam as barreiras geográficas e físicas. É urgente reconhecer que os fundamentos que estabeleceram parte das práticas artísticas como base para elaboração imagética de ideias de nação, poder econômico e político não se sustentam mais. Logo podemos arrematar esse ensaio com uma citação do historiador e ativista político argentino Ezequiel Adamovsky, que afirma “a cultura visual é um dos recursos fundamentais para a construção da hegemonia, mas é também um terreno fértil para exercícios contra-hegemônicos”.

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