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Do precariado e além: conversa com Amador e Jr. Segurança Patrimonial Ltda.

Atualizado: 14 de set. de 2020

por Pollyana Quintella



A conversa aqui publicada dispensa maiores apresentações. A Amador e Jr. Segurança Patrimonial Ltda. realiza uma série de propostas performáticas concebidas por Antonio Gonzaga Amador e Jandir Jr. desde 2015. Elas são executadas pelos próprios artistas, trajados com uniformes de segurança, e discutem sobretudo as condições dos trabalhadores precarizados no meio cultural. Conversamos por e-mail, como de costume, buscando traçar o percurso da dupla, o exercício da crítica institucional, bem como as ambiguidades provocadas por essas performances.


Acompanho o trabalho dos dois desde antes, em 2013, quando éramos educadores no Museu de Arte do Rio (MAR), lugar onde formamos parte das questões compartilhadas aqui, mas não só.


*


Polly: A Amador e Jr. Segurança Patrimonial Ltda. começou, se não me engano, quando vocês dois trabalhavam como educadores no Museu de Arte do Rio. Naquela altura, o educador exercia uma dupla função: concebia e desenvolvia as ações educativas, entre visitas, oficinas e outros formatos, mas também atuava como monitor no espaço expositivo, em geral tomando conta das obras. Ironicamente, vocês começaram a performar como seguranças patrimoniais, em diversas ocasiões. Como isso começou e como a atuação institucional influenciou a proposta?



Antonio: Bom, a nossa primeira ação e o surgimento da Amador e Jr. Segurança Patrimonial Ltda. foi em 2015. Mas a gestação ocorreu no ano anterior, 2014, durante uma residência para jovens artistas que eu e Jandir participamos na Casa Daros. Nos encontrávamos semanalmente durante seis meses, junto com outros artistas e articuladores convidados. Em um desses encontros, de uma maneira muito jocosa, conversando sobre coisas que não lembro muito bem, mas acho que era sobre a ideia de participação e coletividade, a gente imaginou a situação de um visitante encostando em um "obra interativa" e o monitor abordando-o para informar que não se podia tocar na obra. Uma piada ruim para expor o que é um processo de obras participativas históricas e relações museográficas que vivíamos no nosso trabalho na época. Mas aquilo ficou lá e só um ano depois, quando apareceu uma convocatória de ocupação artística do CMAHO pelo PPGAV/UFRJ, nós a revisitamos. E a convocatória tinha a particularidade de receber trabalhos de duplas de artistas. Propomos nisso o trabalho Objeto Interativo que na época tinha o formato de uma releitura de um trabalho do Hélio Oiticica.


Acho que a relação institucional aconteceu/acontece muito com relação a convivência no mesmo ambiente de trabalho, o espaço expositivo. Mesmo marcadas nitidamente as diferenças de funções (o segurança, o monitor, o educador, o auxiliar de serviços gerais) a relação com o mesmo espaço impõe diferentes institucionalidades. Em outras palavras, acho que nós só fazemos a Amador e Jr. porque trabalhamos nesse ambiente partilhado da "base" de museus e aparelhos culturais.




Objeto interativo - croqui do objeto exposto no 20º encontro dos alunos do PPGAV-EBA-UFRJ - Escutas, silêncios e intervalos [Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, Rio de Janeiro, RJ], 2015, nanquim e pigmento sobre papel, 21 x 29,7 cm.



Objeto interativo - 20º encontro dos alunos do PPGAV-EBA-UFRJ - Escutas, silêncios e intervalos, 2015, Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, Rio de Janeiro, RJ [foto: Maria Clara Boing]


Jandir: Esse edital do PPGAV/UFRJ, das duplas de artistas, foi super importante. Porque foi por causa da convocatória que a gente teve a iniciativa de fazer essa ideia em dupla. Antes, "Objeto Interativo" era essa piadoca entre nós. E foi a partir do momento em que a gente pôs os ternos e nos pomos em performance lá que percebemos com 100% de clareza que: 1º - nos transformamos aos olhos dos nossos colegas de cena (teve gente que até não viu a gente, nos viu como vigilantes, nos perguntou onde era o banheiro etc.) e 2º - essa transformação tinha muito a ver com nosso corpo, com as histórias dos nossos próximos, de nossa família... enfim.


Acho que assim: há os artistas que trabalham por seus projetos pessoais, dum jeito self-made man, com colaborações esparsas com instituições, coleções, galerias. Nós, junto a tantas pessoas, nos vemos muitas vezes como artistas que trabalham para um museu, como cumprindo dupla função, ganhando menos do que deveríamos, sendo demitidos, pejotizados e vendo o fruto de nosso trabalho criativo - nossas atividades educativas, invenções, dispositivos pedagógicos - sendo tomados e assinados pelo museu que nos abriga, sem tomarmos aquilo como um trabalho autoral, pessoal, como os artistas com 'A' maiúsculo. É um ponto que eu pensei ao ler sua pergunta.




Polly: E tem um entrelaçamento que me parece fundamental nessas proposições: como artistas, vocês performam os seguranças, mas como narraram, são de fato confundidos com eles, pois nesse caso tratam de expectativas em relação aos seus corpos e origens. Mas, além disso, vocês não apenas ficcionalizam o trabalho de outrem, como se aproximam essencialmente deles como educadores que exercem múltiplas funções. Afinal, em muitas situações por aí, o educador é de fato um segurança patrimonial, com todas as ambiguidades e precariedades que isso implica. E, ao contrário, os seguranças têm por sua vez narrativas próprias sobre as instituições que protegem, tem seus gostos e opiniões, exercem também algum papel crítico.


Nesse caso, o trabalho de vocês requisita ser lido na complexidade dessas relações artista-educador-monitor-segurança, se referindo à dança das cadeiras que esses papéis exercem na cadeia de trabalhadores da arte. Pude presenciar algumas performances e era constrangedor ver pessoas quase os tratando mal, quando ainda não sabiam que se tratava de uma performance (lembram do caso do curador famoso, naquela festa junina?). Isso porque, muitas vezes, o segurança é totalmente invisibilizado. No espaço expositivo há uma expectativa de que ele apareça tanto quanto um extintor de incêndio e, caso ele apareça demais (como no caso excessivo de uso de telefones celulares, o que é sempre uma reclamação), deve haver algum tipo de punição. Ironicamente, em uma das ações vocês propõem ficar em frente à obra que deve ser salvaguardada, impedindo que o visitante possa vê-la. O que era invisível torna-se o ponto de atenção, o que gera desconfortos múltiplos. A performance joga com recursos entre ver/tornar visível/impedir a visão, tramando relações de poder extrainstitucionais, mas que estão em disputa todo o tempo.




Sem título - Intervenções entre o XX e o XXI [curadoria: Beatriz Pimenta Velloso], 2016, Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro, RJ [foto: Maria Clara Boing]



Jandir: Pois é! Já pediram até nossa cabeça. Se fôssemos seguranças de verdade naquela ocasião que você menciona, teríamos sido demitidos. Mais um fato que fala dos privilégios da classe artística, em detrimento dos prejuízos do trabalho de base.


Acho que encontramos aí, na performance, um espaço para discutir com outra qualidade nossa condição como trabalhadores, sabe? Penso no histórico de alcoolismo, trabalho doméstico, prejuízo a saúde física e mental em tantas famílias trabalhadoras. A organização sindical, trabalhista, existe em alguns meios, mas para muitos trabalhadores o espaço para manifestação sobre o trabalho é o trem, o bar e olhe lá. Portanto, como artistas - e somos artistas aqui contigo, Polly, graças aos incentivos que recebemos de programas sociais, de bolsas, de ações afirmativas -, encontramos esse espaço da arte para falar sobre as escrotices do mundo do trabalho. Um espaço com um spot de luz enorme nas nossas caras.


E, engraçado, cá estamos a falar de invisibilidade, não é? Curioso: esse spot de luz da arte tem nos servido para enxergarmos ainda mais a invisibilidade que o corpo laboral tá submetido. Por exemplo, descobrimos algo patético ao realizarmos "Sem título", essa performance que cê comentou, em que ficamos na frente de uma pintura de parede. De fato, nos tornarmos hiper visíveis postos em frente a uma pinturona do século XIX. Só que as pessoas que visitavam a galeria, ao nos ver em frente aquele quadro, faziam um contorno enorme para não precisar chegar sequer perto da parede em que performávamos. Esse afastamento do público me fez pensar muito...




Antonio: É muito louco pensar sobre as condições do que se espera dessas situações. Lembrei agora da época da faculdade e que eu vi pela primeira vez arte contemporânea. Com certeza eu, como público e experiência na época (acho que tinha 19 anos) achei tudo equivocado. Mas acho que isso tem muito a relação de experiência e partilha dos códigos da linguagem. No caso das nossas performances, e trago a 5 5 para isso, os gestos que propomos performar são bem simples quando lidos em um papel. 5 5, para falar mais, é uma ação que usamos os rádios comunicadores de segurança, no volume máximo, e nos comunicamos sobre assuntos relacionados a crítica da exposição que participamos, obras de arte relacionadas ou ruídos. Mas eles se tornam muito disruptivos quando colocados em prática. E penso que isso acontece justamente pelo que foi dito anteriormente, não se espera de um segurança agir daquela maneira. Justamente por estar no volume máximo, a conversa abandona um caráter "secreto" e passa ocupar o espaço pela sonoridade. "Mas o segurança tá falando sobre a arte"? 5 5, denota nas pessoas um quase "mas eles sabem falar sobre isso? que estranho!" E aí tá o ponto da visibilidade e invisibilidade. A espera que todos, em seus papéis, irão "performar" a dança da Arte. E é importante frisar que esse público não é o Antonio de 19 anos vendo arte contemporânea pela primeira vez, mas um público com repertório.


5 5 - 35º Arte Pará [curadoria: Paulo Herkenhoff; seleção: Marcelo Campos, Paulo Herkenhoff, Walda Marques], 2016, Casa das Onze Janelas, Belém, PA [foto: Guy Veloso]


Polly: Em outros casos, a coisa fica menos camuflada, como nas ações em que vocês ficam agachados, ou quando ficam nas quinas da galeria, de costas para o público, ou ainda quando ficam dentro de um perímetro demarcado por unifilas, como se fossem vocês as obras a serem salvaguardadas. Nesse caso, imagino que o estranhamento do público seja mais direto. Como a recepção dessas propostas aconteceu?




Antonio: Sim. Acredito que temos duas "operações" de linguagem quando propomos e realizamos as performances, não sei se o Jandir concorda com isso. Quase um jogo entre a visibilidade e invisibilidade do trabalho. Algumas das ações são muito sutis, passam facilmente despercebida pela maioria, um sussurro. Outras, como essas que você apontou, polly, já possuem uma "teatralidade senso comum" esperada de performance. Esse jogo, penso eu, é quase uma mimética do trabalho de seguranças em instituições. Ora atuando "despercebidos", ora atuando com mais contundência. A recepção se dá nesse espectro. Essas, onde você bate o olho e já infere "é performance" tem reações muito diversas. Mas, na maioria dos casos, é a atitude de observar por um tempo breve e depois seguir. Mas acontece também "interações" raras muito significativas. Lembro de uma em Sit-in que uma pessoa se agachou e perguntou se estávamos passando mal.


Sit-in - Saguão de Arte, 2017, Escola de Belas Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ [foto: Monica Coster Ponte]




Obra - 46º Salão de Artes Visuais Novíssimos [curadoria: Cesar Kiraly], 2017, Galeria de Arte Ibeu, Rio de Janeiro, RJ [foto: Bia Gonçalves e Rebeca Rasel/Galeria de Arte Ibeu]




Jandir: Lembrei agora de voltar no que tu disse, Polly. De como é recorrente que haja uma punição quando algum vigilante se torna visível, quer dizer, fora daquele padrão esperado, sabe? Lembro na minha experiência compartilhada com pessoas nessas funções. Ouvi relato bizarros, sobre um diretor que ficava de longe, fotografando os seguranças que estivessem com a gravata frouxa, pra mandar no zap pro chefe da equipe de segurança. Claro, nós mesmos, no caráter por vezes ridículo do trabalho de monitoria em museus, nos vemos em situações totalmente comparáveis a essa. Quer dizer, um chefe te dizendo como andar e sorrir e não cruzar os braços dentro da galeria, te ensinando a coreografia que ele quer que seja coreografada pelos subordinados...


Esses nossos trampos mais visíveis, mais "cênicos", causam incômodos: nas pessoas que reclamam com a gente, com o curador, com fulano. Quando nos perguntam onde é o banheiro e respondemos um trecho do edital de seleção da mostra de cor, como na Condições de exposição, teve quem bufasse conosco. Acontece também nas performances: essa substituição da performance responsiva, capacitista e assertiva do trabalhador de base por outra, mais afeita ao delírio, ao equívoco, a uma anti produtividade.


Espaços institucionais: cantos - ABRE ALAS 14 [seleção e curadoria: Cabelo, Clarissa Diniz, Ulisses Carrilho], 2018, A Gentil Carioca, Rio de Janeiro, RJ [foto: Antonio Gonzaga Amador]




Polly: E em paralelo às performances, vocês produzem muitos desenhos - seja como registro das propostas, seja como catalogação dos "clientes" que contratam seus serviços. Há ainda um modelo de contrato, e outros produtos simulando uma marca empresarial, como os broches. Às vezes, percebo que vocês simulam até uma certa burocracia. Lembro quando os convidei para a exposição no Morro da Conceição e o Antônio primeiro deu aquela resposta meio automática, com um linguajar que beirava o tele-marketing. Na época, fiquei muito intrigada com aquilo, porque no meio da arte forçamos um excesso de informalidade que no fundo mascara não só alguma precariedade das relações de trabalho, como também expõe uma falta de profissionalismo. Quando li a resposta, pensei que aquela ironia provocava muito toda essa fragilidade envernizada. Quer dizer, parece que a performance continua acontecendo mesmo nos bastidores, na negociação com o curador e com as instituições. Vocês podem comentar o papel desses gestos, digamos, mais adjacentes?



Jandir: Acho que a gente foi tomando consciência da importância dessas etapas. De que a performance da empresa poderia englobar, por exemplo, textos de apresentação dos nossos serviços, produtos com nossa logo, homenagens aos nossos clientes, um site aos moldes dos sites de empresas de segurança etc. A performance verbal, sobretudo, foi ganhando importância crescente. Vejo como é notável que nossos primeiros textos sobre as performances eram mais duros, reflexivos, intertextuais, acadêmicos talvez. E agora como temos feito mais textos aos moldes da propaganda mais barata, do bagulho mais "Organizações Tabajara" possível (kkkkkk, Casseta & Planeta, grande referência). E essa performance verbal foi ocorrendo também na oralidade. Apesar do Antônio ser um cara bem zuero por ele mesmo, o que ajuda em muito no episódio dele contigo, acho que, assim, a informalidade é torcida, se evidenciam as relações de trabalho precárias, não-remuneradas e pagas com prestígio.


Sobre os desenhos: eles se tornaram uma saída desde que precisamos criar um croqui para uma inscrição e o Antonio o fez num desenho. A partir daí adotamos o desenho de caneta sobre papel como um procedimento em vários trabalhos, inclusive em nossa logo. Tem algo de desenho preparatório, rascunho, de anotação e rabisco neles - o que faz jus à marca: Amador e Jr.; o que não é nem profissional nem sênior.


Vigilante - croqui, 2016, nanquim sobre papel, 21 x 29,7 cm.




Antonio: Sim. Tem uma outra coisa que eu acho interessante, e que volta para como começamos, e a cada situação fomos nos transformando no processo de inserção em editais e convite. Teve muito um papel de ironia e piada no início. Mas à medida que a coisa foi passando nos editais e os convites começando a serem feitos, nos arriscamos a aumentar a "piada". Do tipo, "caraca, aceitaram isso mesmo. Pô e se a gente fizer mais isso?" E é importante dizer que "piada" nos termos que tô escrevendo aqui, não é menor e nem depreciativo com qualquer prática outra. Fazer uma "piada boa" demanda um trabalho. Uma densidade, uma coerência. Tanto que muitas pessoas mudam a palavra piada para ironia, para deixar a coisa mais séria. Mas acho que entrar nessa ficção/piada/ironia é interessante como prática performática da ação. Já que nos colocamos nessa situação performática de crítica institucional, performar para os agentes institucionais é parte do trabalho. Gosto de trabalhar com exemplos. Teve uma vez que enviamos uns portfolios para uma galeria em São Paulo. Muito tempo depois, a pessoa que conversou com a gente confessou que viu nossa inscrição e entrou no site e ficou confusa pensando que uma empresa de segurança de verdade tinha se inscrito, depois é que percebeu o contexto.


Enfim, essa performance de bastidores é uma parada que vejo como precisa para nosso trabalho. Manter a "piada" ao máximo é uma maneira de mostrar a seriedade da nossa prática e dos assuntos de trabalho que queremos discutir.


Cara, e essa parada do nome é muito surreal. Porque são nossos sobrenomes reais. Aliás, vou ver se faço um desenho slogan disso essa semana pra gente, jandir, com isso: "Amador e Jr.; o que não é nem profissional nem sênior"




Jandir: kkkkkkkkkkkkk FAZ PFVR AAA!



Cofre - croqui, 2020, nanquim, lápis de cor e grafite sobre papel, 21 x 29,7 cm




Polly: Por fim, acho que todas essas estratégias vêm nos lembrar que estamos discutindo diferenças de classe, mesmo que atravessadas por outras interseccionalidades. Há muitos modos de fazer arte e se posicionar no meio artístico, mas em geral não nos identificamos como classe trabalhadora, justamente porque arte é uma profissão mas é também um meio de expressão individual, o que dificulta qualquer organização coletiva, porque esse trabalho não tem uma forma a priori. Não somos todos operários de fábrica que se identificam nas funções que exercem. Nem o formato da greve faz muito sentido. O neoliberalismo toma conta de tudo, e isso tem esmagado cada vez mais qualquer discussão sobre condições mais paritárias de trabalho. Somos PJ's tentando sobreviver mês após mês. Nesse contexto, a arte precisa necessariamente pagar as contas, não é um hobbie qualquer, uma brincadeirinha. Quando vejo a performance de vocês, que despe o artista de um lugar glamourizado, ou momentaneamente retira dele expectativas de reconhecimento vaidoso (o segurança é tido como anônimo e comum, não deve ser excepcional), me questiono para quem estamos, diariamente, produzindo sentido simbólico. Creio que o trabalho deixa a provocação de que precisamos jogar mais com as fantasias, e fazer aquilo que fazemos com novas máscaras, talvez como modo de, por fim, enxergar melhor.




Antonio: Primeiro, desculpa, mas vou criar todo um preâmbulo agora para te responder, polly. Ontem, eu e o jandir estávamos trocando e-mails de umas referências sobre trabalhos e ele me enviou o trabalho dessa artista aqui: https://vimeo.com/119535540 / https://pilvitakala.com/the-trainee/.


Bom, só conheci a artista ontem e tô ainda vendo mais detidamente seus trabalhos e tal. Mas acabei conversando com a Maria sobre eles e conversando sobre as coisas que ele opera. Uma coisas que nos incomodou é esse processo de exposição/não exposição de pessoas muito dúbia. As pessoas não têm nome, mas as imagens delas tão aí. Quase um experimento comportamental empresarial, mas com propostas artísticas de crítica institucional. Mas o incômodo nosso, refletindo, é que são as pessoas, que não sabem o que se passa (ou pelo menos nos é informado que não sabem), elas que são objetos de estudo dessas estruturas institucionais. A pessoa mira na instituição e acerta nas pessoas. Mas eu fico pensando é que não é a artista que tem má mira ou não tem um bom calibre, mas a instituição é que sabe se esquivar muito bem. Há uma certa crueldade nas instituições em colocar as pessoas como escudo. Exatamente porque instituições são feitas por pessoas, para onus e bonus que isso possa ter.


Também tem muito de Foucault aqui no que eu falei. Não vou me debruçar nisso, porque acho que não cabe aqui, mas essas condições institucionais e pessoais que estão presentes nas formas de trabalho do sistema de arte tem a ver com ele. O que eu quero dizer é que acho que o que queremos fazer é usar o aparato da instituição para acertar melhor a própria instituição. Mas é difícil isso. Não sei se o Jandir concorda, mas não sabemos muito bem como se faz. Acho que estamos tentando descobrir isso a cada vez que performamos. Eu sempre sinto que cada vez que passamos para algum edital ou nos convidam para alguma coisa é sempre uma nova experiência institucional, mesmo a gente tendo alguma experiência anterior. Mas a lida é muito diferente entre elas. E isso retorna a frase "as instituições são feitas de pessoas”. Bom, não sei muito bem, mas acho que é por aí que vejo essas coisas que você escreveu agora, polly.


360º - 29ª Mostra de Arte da Juventude [curadoria: Ana Roman, Marcelo Amorim], 2019, Sesc Ribeirão Preto, Ribeirão Preto, SP [imagem: Danny Abensur/Sesc São Paulo]




Jandir: Mas, ó, lembrei daquele seu texto, Polly. Publicado na Select, sobre a demissão em massa de educadores de museus. Há pouco, foi demitida a maior parte da equipe de educação do MAR, onde eu e Antonio trabalhamos por tanto tempo. Justamente de um museu-escola. É deprimente e revoltante isso, nos afeta a cabeça. Penso também no quão importante é esse papo que a gente tá tendo aqui, e a necessidade de nos vermos como trabalhadores quando nas posições de prestígio da cadeia da arte, como você pontuou.


Queria até trazer pra roda mais duas publicações que eu e Antonio olhamos por esses dias: uma delas é a primeira edição da revista teteia (http://www.teteia.org/), toda dedicada ao tema do trabalho. Outra é um texto do Daniel Jablonski, Uma introdução à ineconomia (https://www.sp-arte.com/editorial/uma-introducao-a-ineconomia/). Tudo isso publicado nesses tempos de isolamento. Tenho por impressão que a pandemia tem acirrado o conflito entre-classes e, em alguns casos, levantando vozes que até então não tínhamos ouvido falar sobre as dificuldades laborais. Isso está cada vez maior, englobando mais gente, e meu conforto de não mais reclamar de trabalho entre poucas pessoas não sobrepõe meu mal-estar e meu medo do futuro. O precariado é um conjunto de trabalhadores crescente.


As condições do trabalho dos artistas é de subordinação, historicamente. Mecenato, igreja, Estado, coroa. Isso remonta, por exemplo, aos séculos coloniais no Brasil. Contudo, a condição de trabalho de seguranças patrimoniais, repositoras de supermercado, faxineires e outros trampos de base tem, igualmente, seu lastro histórico. É uma profissão que descende de estruturas escravocratas, da racialização de muitas pessoas, do entendimento tácito de que há alguém que doe sua força, seu carinho e sua raiva em defesa de outra pessoa, por um ordenamento hierárquico ontológico. A arte, como parte da colonialidade que organiza nosso mundo, é beneficiária dessas opressões. E, com ela, se beneficiam os artistas, curadores, críticos e por aí vai.


Claro que há os que representaram os oprimidos e deram um primeiro nó na história da arte. Me vem agora que a gente adora criticar a estetização da pobreza que o Sebastião Salgado realiza. Mas apostaria que suas fotografias um dia, ao menos para alguém, sensibilizaram sobre a cisão gritante entre as galerias chiques em que circulavam e a injustiça social que retratavam.


Mas queria falar é dessa confusão, desse segundo nó, que há em certos artistas que confundem em si o corpo do artista novecentista com o corpo de quem foi escravizado, de quem representa outro modelo societal, de quem foi sindicalista eurodescendente, de quem foi rainha dum povo de pele escura. Quando há artistas transexuais, negres, pobres, indígenas, feministas, tantas, tantas, e quando usam seu trabalho em função da virada identitária que vemos ocorrendo em tantos setores da nossa sociedade, uma confusão acontece. É que a lógica colonial da arte vai parar nas mãos de quem, historicamente, lhe deveria servir (ou deveria morrer, como contra exemplo do que escapa aos interesses societais que a arte reifica tanto e tanto). E por isso enxergamos não mais o assunto assuntado, a fotografia do Sebastião Salgado, a pintura modernista, mas sim o corpo, o testemunho, o fenótipo, a transpassagem da normativa de gênero encarnada. Falando de mim, eu vejo os nossos ternos de performance mais como ícones de nós e dos nossos que representações e máscaras. É quando eu olho minha gravata azul e lembro da gravata azul do meu pai, seu trabalho na rodoviária, e lembro dos perrengues, dos abraços suados, do álcool e sua tristeza, das histórias de trabalho e de gastação.


Desculpa ter tomado tanto espaço escrevendo sobre isso, mas é que queria falar da virada identitária, que faz enxergar algo diferente, uma presença, uma representatividade. E ela nos põem contra a parede também: tomamos consciência e precisamos pensar, pra além de como estamos fodidos trabalhando com arte, que há um monte de vigilantes terceirizados que precisam ficar de pé o dia todo, que tem doenças nas pernas por isso, que são demitidos e terceirizados há muuuito tempo antes de nós e que eu, e nós, estando aqui, precisamos fazer isso presente, essa indignação. Nem que pelas nossas palavras sobre a Amador e Jr. Segurança Patrimonial Ltda. Já que nossas performances são a própria tensão, entre a subserviência à lógica perversa da arte e os fantasmas que assombram, por vezes, quando alguém olha de relance nossos corpos. Eu localizo aí a dificuldade que o Antonio coloca nas palavras dele, arrisco essa aproximação. É difícil pra mim, pra gente. Acho que por essa ambiguidade... ao mesmo tempo que estamos em acordo, estamos em completa discordância com tudo, tudinho. Acho que a Amador e Jr. performa a ambiguidade de, no geral, todos nós trabalhando: ao mesmo tempo, pelo capitalismo e contra ele (o poder de greve e insurreição é prova disso). Mas sei lá. Digam aí também :)




Polly: Total, faz todo sentido. Muita coisa pra elaborar. O que se reivindica é a presença, não mais registros, representações ou objetos. Fico aqui pensando que a arte clássica quis fazer da representação algo que se aproximasse da realidade; a modernidade quis que a representação negasse a realidade, tivesse alguma autonomia, e me parece que, no século XXI, toda essa ressonância é um pouco sobre negar a própria representação tal como a conhecemos. O que importa são os corpos eles mesmos e isso evoca outras complexidades. Algum avesso. Do lado de cá, fico pensando o que isso implica para a crítica, o que seria uma crítica da presença... mas isso é outra conversa, rs. Demais esse papo, aprendo muito com vocês! Temos super 7 páginas. Querem aproveitar os minutos finais para considerações? rsrs




Jandir: Po, e nem tenho palavras. Vc é um farol, polly... brigado pela vida junto contigo. Acho que vou deixar passar essa questão da crítica da presença, não me vejo conseguindo especular isso - e é uma questãozona, e já gastei minha cota de falar pracaralhon... esse é um papo de infinitude, desdobraria mais setecentas páginas (que nem no lance bíblico: 70 vezes 7). Vamo ouvir o Antonio agora. Manda pra nóiz \o/




Antonio: Gente, muito incrível mesmo! O assunto é ótimo a ser conversado mas também é importante saber acabar. Acabar para depois retomar como outra pessoa (sou muito pré socrático/estóico, kkkk). Mas acho que uma coisa importante como considerações finais: Parte do jabá. Terminaria assim: Chegando a 5 anos de história e profissionalismo, a Amador e Jr. Segurança Patrimonial está aberta a futuras propostas e empreendimentos em nível de vigilância de ambientes artísticos e culturais. Para saber mais e contratar nossos serviços, acesse: http://cargocollective.com/amadorejr e fale conosco. Amador e Jr. O que não é profissional e nem Sênior.




Jandir: Caralho, eis um homem que sabe encerrar um texto, hahahha, amei!




Polly: Antonio zerou o jogo.


Nada! - Artes Aquáticas - Verão em Queimados [curadoria: Daniele Machado, João Paulo Ovídio], 2019, Centro Esportivo e Educacional Golfinhos da Baixada, Queimados, RJ [foto: Mônica Coster Ponte]

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