por Pollyana Quintella
Tiago Mestre, Vaso com cinco fumaças, 2022
Tiago Mestre, artista português que vive em São Paulo há doze anos, realizará em Abril deste ano a mostra Empire, na LAMB Gallery, em Londres. O que segue abaixo é uma entrevista que busca esmiuçar algumas das importantes questões que atravessam sua pesquisa no presente momento. Os linhos que acompanham esta publicação não estarão na exposição, mas compõem os mesmos interesses.
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PQ - Quando conversámos pela primeira vez, você me disse algo muito significativo que permaneceu comigo: contava-me de uma certa iconografia da fumaça na história visual. Ela está ali demarcada graficamente nas xilogravuras do século XVI que documentam as narrativas canibais a partir do olhar das primeiras expedições européias às Américas – funciona como um índice selvagem e primitivo. E, ao mesmo tempo, é também a fumaça que figura em certa produção visual que sinaliza o progresso e a industrialização inglesa, passando por Blake e Turner – funciona como um índice civilizatório. De selvagem à civilizada (e vice-versa), a fumaça servia para você vasculhar o mistério que orbita o modo como os signos e símbolos transitam. É como se pudéssemos dizer que, por mais que se tente, não é possível estabelecer um sentido totalitário para determinadas formas sócio-culturais – elas são escorregadias, correm para lá e para cá, se adequam a novos contextos e condensam uma miríade de contradições e partilhas simbólicas. São violentas mas também incapturáveis. Aliam-se a projetos de poder mas também os trapaceiam. Desaparecem e depois reemergem. De que modo isso está presente em Empire?
TM - É interessante que vou afirmando cada vez mais a construção dos meus temas artísticos a partir da minha própria biografia, e a organização que lhes vou dando, no meu trabalho, escapa totalmente a uma assertividade definitiva... ao ponto das relações entre temas e acontecimentos só serem entendidas quando olhamos a partir do interior do trabalho. Talvez o título da exposição, Empire, remeta, afinal, mais para esse território do ateliê do que para qualquer sentido estritamente histórico ou político.
De qualquer modo, Empire partiu, sim, desse prazer descomprometido de aproximar imagens distantes e, a partir delas, fazer algumas perguntas. Vivo no Brasil há 12 anos, e desde cedo me interessei pelos mitos e ficções relacionados com o contato tenso entre europeus e americanos nativos. A ênfase que o imaginário coletivo deu a certas imagens sempre se me afigurou tão misteriosa quanto a falta de tantas outras e as lacunas sobredeterminadas que essas ausências foram criando. Quando em 2019 fiz uma residência artística em Londres tive a oportunidade de frequentar museus, galerias, parques e de olhar de perto muita da cultura artística e arquitetônica do séc. XIX inglês. É um momento em que a relação do homem com o mundo natural sofre uma transformação profunda, e a cultura expressa muita dessa tensão, entre desejo e culpa... o Ruskin e o Morris dão conta dessa via mais reativa... é um momento estranhamente parecido com aquele que atravessamos hoje... A representação do fumo aparecia em ambos os momentos como imagem-síntese: de um lado este fumo dos Tupinambá, fumo-corpo, de aparência sólida, expressionista, quase escultórica, acompanhando rituais antropofágicos e daquele outro fumo de fábrica européia, fumo-neblina, gasoso, atmosférico, impressionista, ligado à máquina, à velocidade e ao progresso tecnológico. Foi essa sobredeterminação política, contraditória, de um mesmo elemento, que deu origem a esta exposição.
Tiago Mestre, Empire, 2022
PQ - Em Empire, há seis conjuntos de cerâmica (são eles: Park, Pound, Jewel, Factory, Smoke e Plantation) que podem ser lidos como atos de representação, isto é, sistemas de codificação de determinados fenômenos que buscaram exprimir, direta ou indiretamente, valores culturais e ideológicos no contexto da expansão da hegemonia inglesa. Todos soam também como metodologias de colonização e domesticação de certas formas naturais – vegetais, minerais, dentre outras matérias-primas. Apesar de cada ato se sustentar em sua singularidade, eles também se reforçam coletivamente, como num esboço de narrativa polifônica, necessariamente incompleta. Como você chegou à definição destes conjuntos?
TM - Veio tudo de um jeito muito intuitivo, pensando sempre numa questão temática que é atravessada por um olhar vagamente irônico e, simultaneamente, tensionando a adequação (ou inconformidade) da escultura (como disciplina) a esses mesmos temas. A questão da narrativa é intermitente (acende e apaga) na medida em negocia constantemente com a natureza estritamente escultórica (matérica e processual) de cada "cena". Mas não é isso que acontece tradicionalmente na escultura? Sim, mas aqui eu tento introduzir ciclos mais amplos nessa alternância pendular, levando a que cada instância escape ao ciclo gravitacional da outra... é um jogo que começa por ser apresentado como mimesis e narrativa e se vai revelando mais e mais improdutivo, mais árido...
Os títulos também operam a contra-corrente: sugerem uma "grande narrativa" que logo se vê falha, a despeito da sua voz grandiloquente, quase tratadística. Tratam de lazer, dinheiro, luxo, tecnologia, erotismo, natureza, arquitetura, exotismo, dominação, organizados num percurso errante que não estrutura uma argumentação lógica ou conclusiva, apontando sim, talvez, para um elenco de perguntas.
Estamos no início do séc. XIX, tentando lidar com a perda de um mundo idealizado, por um lado, e abraçando, por outro, toda a promessa de um tempo novo que estaria (sabemo-lo agora) na origem de muitas das crises que vivemos hoje. É essa distância temporal (e geográfica), esse estranhamento e familiaridade, que sempre me ajuda a começar estes projetos, acreditando que essa distância me permite, ironicamente, ser mais preciso.
PQ - Ainda neste contexto, as cerâmicas de parede (espécie de jogo entre narrativa, ornamento e escultura) encenam também algo de pintura; enquanto a pintura sobre linho desdobra e ressoa o repertório presente nas cerâmicas – como se ali víssemos as sombras ou silhuetas das formas tridimensionais. Não há forma natural, mas negociação, mise-en-scène. O que te interessa nesse "jogo das cadeiras", nessas contaminações?
TM - Chamas-lhe "jogo de cadeiras" mas poderíamos também chamar-lhe "jogo de sombras", já que a exposição opera uma re-apresentação constante, ora de personagens arquetípicos, ora de formas absolutamente prosaicas. Em ambos os casos avançam-se possibilidades de aproximação e equivalência, entre estatutos disciplinares diferentes (a pintura e a escultura), quase como se cada objeto ou conjunto escultórico pudesse imprimir-se, em sobra (pintura), na parede oposta ou, pelo contrário, de cada pintura pudesse emanar uma evidência corpórea (escultura). Este sistema de investidura e esvaziamento teve já um antecedente, a exposição More news from nowhere (2018), que realizei em Coimbra, sendo que agora, em Empire, todo esse jogo de alteridade e troca se tornou mais complexo e mais livre.
PQ - Alguns dos teus projetos anteriores partiam de provocações surgidas no encontro com alguns materiais e documentos históricos específicos – a obra de Bernard Leach; uma curiosa carta enviada em 1945 pelo arquiteto Luís Saia, futuro diretor do IPHAN em São Paulo, a Lúcio Costa; um azulejo de Manises fabricado há mais de cinco séculos, etc. Em Empire, porém, apesar de lidar com um imaginário histórico, não há referências exteriores diretas, mas certo contexto "atmosférico". Como a pesquisa ocorreu aqui? Ou, ao contrário, foi preciso abrir mão das referências para permitir-se derivar pelo que insiste em sobreviver nos imaginários? Por fim, o quanto a pesquisa histórica importa ou não no teu processo?
TM - O contexto mais amplo do meu trabalho é o da relação primordial do homem com o mundo (com a natureza), e o tipo de formulação discursiva (visual ou literária, prática ou teórica) que daí advém. Essa idéia de Cultura vê-se cindida, logo à nascença, por uma linha de fronteira imaginária e retórica que divide "alta" e "baixa" cultura, e por mais que cada um desses dois hemisférios ambicione ascender a uma estabilização, ou apaziguamento, os naturais "atravessamentos" entre eles acabam promovendo ciclos de instabilidade e reorganização contínuos... é assim que a nossa cultura se mantém viva e vital. Esses "atravessamentos" de que falo são como meridianos por onde transitam valores, idéias, desejos e por onde se estabelece uma troca por vezes anárquica.
Quando mencionas essas "provocações surgidas no encontro com alguns materiais e documentos históricos específicos", acho importante explicar que não se trata de um fascínio inerente à importância artística ou histórica dos objetos, mas sim por serem elementos que promovem especificamente esse trânsito entre discurso oficial e voz subjetiva. Isso aconteceu naquele azulejo árabe que, no verso da sua face ornamentada, oficial e programática, escondia uma silhueta de mulher rabiscada (expressão individual daquele artesão), aconteceu na ambiguidade entre aspiração artística individual e produção utilitária em massa, na obra de Bernard Leach e aconteceu nessa carta do Luís Saia endereçada ao Lúcio Costa (que acompanhava um desenho sumário e coloquial relativo a uma dúvida).
De modo semelhante, Empire partiu daquelas duas representações simbólicas e políticas de fumaça e daquela relação teatral com a natureza que o paisagismo e a arquitetura (ornamento) formulam no Reino Unido do séc. XIX.
Respondendo melhor ao final da tua pergunta, eu diria que a pesquisa histórica, em última instância, não importa muito para o meu processo. O que acontece é que gosto de começar a pensar as minhas exposições a partir de algum tipo de atrito, ou porosidade, que por vezes me traz somente uma pergunta, à qual eu junto outras.
Acho importante sedimentar uma prática que seja compreensível e que permita estabelecer uma partilha, e é nesse sentido que acabo valorizando situações contextuais. Desconfio que existe, neste ponto de vista, uma certa resistência em relação a um trânsito esquizofrênico de imagens "artísticas" que nos chegam constantemente via net.
PQ - Uma das fortes características da sua produção é a habilidade em aliar projeto e intuição. A lida com a cerâmica, por exemplo, se por um lado sugere uma aparente rusticidade e organicidade das formas, também chama atenção por sua síntese radical, espécie de densa depuração. Rusticidade e depuração (fazer e pensar, ou fazer-pensando; pensar-fazendo) nos faz compreender sua produção a partir de um desejo em situar as formas enquanto ecos do passado que insistem em se manifestar nos conflitos do presente – restos, memórias, vestígios que perduram. Não é tanto sobre a forma e seus significados, mas o que deles se impregna nos hábitos e imaginários comuns, através dos tempos: o que sobra. O que acha disso?
TM - Projeto e intuição constituem a negociação central nos meus projetos, marcando claramente uma processualidade de trabalho, mas também uma chave de recepção crítica e sensível. Julgo que a prática continuada da arquitetura (minha primeira formação) foi encorpando esse ponto de vista mais sistemático que muitas vezes organiza (ou se deixa organizar) pelo intuitivo. A "moleza" da argila, ou das tintas, presta-se a veicular essa "intuição", possibilitando um embate muito fluido e empático, em processos que depois ficam lá, secando. Por outro lado, a idéia de "projeto", muito ligado à sistematização de uma tipologia ou arquétipo artístico, estabelece uma base mais racional que acaba estruturando os trabalhos do início ao fim.
Tiago Mestre, Apubli, 2022
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