por Julia de Souza
Gralha-calva
A casa foi vendida, mas ainda estamos aqui. Temos um mês para entregá-la aos novos moradores — um jovem casal que espera seu quarto filho.
A mudança não será simples: a casa é grande e começou a ser habitada por minha família há exatos cinquenta anos. Primeiro pelo meu pai, que a comprou em 1971, pouco depois de sair da prisão. Durante quinze anos, a casa foi partilhada com amigos e foi palco de festas que, segundo relatos, eram memoráveis. Depois chegou a minha mãe e, com ela, viemos eu e meu irmão.
Uma casa é feita de acúmulos voluntários e acidentais, ainda que tentemos periodicamente nos desfazer do que não nos serve mais, do que nossas mãos não procuram, não alcançam há tempos. E lá estão. Como escreveu a poeta Aline Motta em seu recém-lançado e extraordinário livro A água é uma máquina do tempo: “AS PESSOAS NÃO SABEM, MAS OS LUGARES SABEM”
Diante da mudança iminente, o que mais me apavora na lida com essa sedimentação de décadas são os papéis; não tanto os livros, pois os livros têm capas, cores, títulos, autores, marcações — ou a ausência total de marcas de manuseio que revela uma falta de interesse crônica pelo objeto — que nos auxiliam na decisão de dispensá-los ou não. Me preocupam sobretudo os papeis soltos ou desordenadamente armazenados: documentos, cartas, boletos nunca pagos, jornais velhos, rascunhos, cadernos e diários antigos que, uma vez encarados, provocarão constrangimentos que devemos agora decidir se arrastamos conosco para mais uma temporada.
Um dia desses, minha mãe, que está sofrendo de uma ansiedade brutal neste período de preparação da mudança, começou a se embrenhar na babel infinda de papéis armazenados no armário que ladeia sua mesa de trabalho — mesa que havia sido do meu pai. Já tarde da noite, ela desceu as escadas e me entregou, com olhos acesos, um conjunto de folhas sulfite presas por um grampo. Na primeira folha, lê-se: “POEMS — BY MURIEL UNIACKE”. Demorei alguns segundos para atinar com aquelas palavras. Muriel era a minha avó, mãe de John, que morreu quando eu tinha um ano, antes de ter a chance de conhecê-la — viveu até o fim de sua vida na Inglaterra, e adotou o sobrenome “Uniacke” depois do segundo casamento.
Muriel era destemida e passional. Depois de separar-se de seu primeiro marido, Manuel, o pai do meu pai, apaixonou-se por outro homem, com quem fugiu para não sei onde, deixando meu pai e suas duas irmãs, Corinne e Juana, em pleno despertar da Segunda Guerra, aos cuidados de familiares. Segundo meu pai (John) me contou, os três moraram antes com uma tia e, depois, com os avós maternos. Naquela primeira metade do século XX, talvez Muriel tenha sido considerada impetuosa demais. Provavelmente seria julgada da mesma forma também hoje.
John nunca falou muito de Muriel, mas mantinha, na parede ao lado daquela mesma mesa de trabalho, dois retratos em preto e branco da mãe: no primeiro, ela parece ter cerca de trinta anos. Cabelos escuros divididos à lateral, sobrancelhas vultuosas e arqueadas, olhos enormes e boca pequena, num quase sorriso. Na segunda fotografia, Muriel devia ter sessenta anos já completos. O corte de cabelo é o mesmo, mas aqui os fios são prateados e ondulam um pouco mais na lateral superior do rosto. As sobrancelhas perderam algo do volume e os olhos, mais doces, envelheceram e pendem para baixo. O sorriso da madureza é aberto: ela mostra os dentes, que rimam em sua brancura com o colar de pérolas que envolve o pescoço. Em nenhuma das fotografias ela encara a câmera. Na imagem de juventude, ambas as íris se colam à extremidade esquerda dos olhos — há uma certa sensualidade na combinação desse olhar, tão esquivado quanto vivaz, com o sorriso ambíguo e discreto. Os olhos da Muriel grisalha, por sua vez, carregam uma ternura manifesta, um senso de realização, e parecem mirar algo que está ligeiramente acima da câmera — talvez o próprio fotógrafo. Olhando a fotografia, não consigo deixar de pensar em sua morte, cuja qualidade era uma ambição de meu pai: dormiu enquanto dormia, já velha, mas não velha demais — e serena.
E agora tenho nas mãos treze poemas de Muriel. Ainda não tomei coragem para ler todos eles, mas atentei para alguns trechos. Em um dos versos do poema “The Little Ships”, ela fala de uma lua crescente que “derrama seu sorriso de Mona Lisa sobre velhos lodaçais primitivos”. Ali está o sorriso de meia-lua, irmão do sorriso ambivalente que Muriel estampou em sua fotografia aos trinta anos.
No poema “Respect for Rooks”, Muriel assume o ponto de vista de um camponês de Sussex — o condado do sudeste inglês onde meu pai nasceu — para fazer um elogio às rooks, essas aves que eu adoraria traduzir por “corvos”, mas, apesar de serem negras e pertencerem à família dos Corvidae, são, na verdade, “gralhas-calvas”. Eis a penúltima estrofe do poema, seguida de uma tradução livre:
They say whenever a house is sold
And the owners have gone away,
The rooks will forsake the rookery — yes
I respect them in every way.
Dizem que quando uma casa é vendida
E seus donos já foram embora,
As gralhas abandonam a colônia — sim
Eu as respeito em todos os sentidos.
*
Gosto muito da expressão “desde que me entendo por gente”. O sintagma costuma introduzir frases que se referem àquilo que, através do tempo e do espaço, se consolidou em nós; a formulação está ligada, portanto, às ideias de fundação e continuidade. Trata-se de uma manobra linguística que trabalha — metonimicamente, via reiteração ou ainda pela hipérbole — em nome de uma afirmação de nós mesmos enquanto sujeitos idiossincráticos. Por mensagens no WhatsApp, pedi que alguns amigos completassem a frase. Minha amiga Ana disse: “Desde que me entendo por gente, faço tranças”. A Iris me escreveu: “Desde que me entendo por gente, durmo com o pé para fora do cobertor”. “Desde que me entendo por gente, sinto fome”, eu diria.
Além de evidenciar que o “saber”/ “entender” ainda são postulados da espécie, essa construção idiomática diz muito sobre o quanto a noção de sujeito humano é indissociável da memória e da nossa capacidade de recuperar afirmativamente um afeto, hábito ou crença que, num passado longínquo, traduziu pela primeira vez a nossa forma de estar no mundo — e segue traduzindo. “Desde que me entendo por gente, me sinto inadequado”, disse o Caio.
Mas, pensando nas formas como meus amigos completaram a frase “desde que me entendo por gente...”, percebo um movimento incerto de ida e volta: quando me percebi inadequado, me percebi sendo gente? Ou só agora, sendo gente, talvez pense o Caio, percebo em retrospecto que sempre me senti inadequado? No caso da Ana, que é psicanalista, ela mesma interpretou sua resposta (“desde que me entendo por gente, faço tranças”): “eu não tinha muito cabelo para fazer tranças, então fazia nos outros. Assim como as tranças (tramas) que fazem pacientes em análise”. A minha fome insaciável certamente veio antes de qualquer consciência, mas em algum momento tomei-a para mim, associei a primeira lembrança de voracidade a um traço constitutivo da minha disposição humana. Por outro lado, é possível que a agudeza de alguma insaciabilidade remota tenha ela mesma despertado em mim uma primeira consciência mais alerta. Uma consciência da consciência.
Fiz essa digressão por ter percebido que, no meu caso, essa formulação linguística parece tão pertinente quanto a inversão dela. Explico: estamos finalmente prestes abdicar desta casa que já pareceu ser eterna. Na iminência disso, suspeito que, talvez, essa “gente” que eu sou e entendo ser só exista enquanto existir esta velha casa, e enquanto eu puder frequentá-la. A casa me fundou (me capturou) antes que a voracidade me fundasse.
*
Desde que me entendo por gente, há uma casa de joão-de-barro pendurada na varanda da casa. Segundo me foi contado, ela foi trazida para cá quando já havia sido abandonada, não sei onde, pelo casal de aves que a construiu. Os ninhos do joão-de-barro, que parecem uma miniatura de um forno caipira, são construídos mutuamente pelas duas partes do casal, que se revezam nos trabalhos de edificação e de busca e fornecimento de matéria-prima. A construção dessa casa pode durar até vinte dias.
Em algum momento desta longa pandemia, reparamos que a velha casinha de barro tinha sido ocupada por um casal de passarinhos. Passarinhos marrons, talvez pardais. Achamos prudente resistir à vontade de bisbilhotar o ninho de perto, com medo de afugentá-los. Alguns dias depois, enquanto trabalhava a poucos metros do ninho suspenso, algo atravessou minha vista e, num átimo, caiu dentro do copo d’água que eu tinha à minha frente. Era um dos quatro minúsculos passarinhos que estavam sendo incubados pelo casal que ocupara o ninho de barro. Antes de pensar, consegui pescá-lo daquele pequeno fosso de vidro — e o filhote retomou seu primeiro e voo, não sei para onde.
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Fui ao show do Caetano Veloso no último dia 24. É sempre lindo vê-lo no palco, é sempre comovente. E gosto muito de ouvir as histórias que ele conta entre uma música e outra, histórias que ele repete com deleite e presença. Caetano está mais frágil do que já esteve, assim como a maioria de nós. Mas se lembra de onde já pisou. Cantou “Itapuã”, talvez a minha preferida dele. A canção trata de como os lugares são capazes de guardar aquilo que deixamos para trás, e do tempo que age, como um vento, à revelia de nós — nós, tão menos vigilantes que os lugares: “Itapuã/ tuas luas cheias/ tuas casas feias/ viram tudo, tudo, o inteiro de nós”.
Mas, em “Itapuã”, o senso de perda e diacronia rivaliza com o ímpeto:
Nada estanca em Itapuã/ ainda sou feliz.
P.S.: Agradeço à Laura Liuzzi, grande amiga e poeta, que me ajudou, com sua leitura mais que desperta, a chegar na versão final deste texto.
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