por Juliana Thiré
Planta do Desterro
O que você vê quando pensa na palavra cena? - Olha a fulana em cena na novela!
É possível enfiar uma furadeira nela? - Não na fulana! Na cena!
Tô dirigindo um elenco de 4: uma vende chá num quiosque do Shopping Tijuca, mas antes estava na recepção de um centro de depilação à laser; outra vende roupa em outro shopping e também se prostitui nas horas que sobram; o terceiro é gerente de um restaurante, e o último faz orçamento pras obras do pai. Em que momento eu dirijo esse elenco? Que inferno. “Cena” vem de “skene”, que quer dizer “tenda”. Olha aí a furadeira, o preço da madeira, o braço que fura, a espessura, a distância. Não há cena sem muita operação incluída.
Li uma coisa bonita há não muito tempo (Kantor) que imaginava o surgimento do ator, dizia que: de uma comunidade cultural saiu alguém decidido a se destacar dos demais. Assim, os que “ficaram do lado de cá”, olhando o sujeito exposto como um animal no circo, “infinitamente distante”, estrangeiro, sentiram como se o vissem pela primeira vez, e, ao mesmo tempo, como se tivessem acabado de ver a si próprios, também pela primeira vez. Lá e cá, morte e vida.
Mas por que decidir se destacar? O motivo teria sido uma necessidade: “devia tratar-se de uma comunicação de importância capital”. Uau. O que foi que ele contou? Ou mostrou? Rosnou? Latiu? Se mijou? As pessoas riram? Cantaram? Sentiram vontade de atacar? Viram que na falta de carne, aquela serviria ao estômago? Quem ganhou essa luta? Já terminou? Por que ele foi pra lá mesmo? Decidiu sozinho ou alguém o empurrou?
Temos tempo pra tanta pergunta? Onde é que você esteve?! Sabia que eu tenho fome, que ainda não comi nada hoje?! Você faria amor comigo?! Me dá um beijo?! É nojo?! O que é que você trouxe?! Ainda me acha bonita?! Que doença é a minha?! Você sabe que dia é hoje?! Há quanto tempo eu tô doente?! Sou ou não sou uma atriz? Aqui, o teatro como o lugar de onde vemos a nós mesmos porque alguém, decidido ou empurrado - importa? - está nos mostrando. Lá, a cena - abrigo & desterro do decidido - dessa necessidade, desse tipo de comunicação - o lugar fundado por esse EMPURRÃO.
Mas o que é comunicado ali, afinal? Fritação. Você achava o que? Que eu ia escolher uma peça pra dizer se é boa ou ruim? Um atraso isso de dar opinião. Urge em se tratando de teatro pensar a operação por trás da cena, pra fazer qualquer negócio. Aí uma paulistana essa semana muito simpática viu meu brechó na porta do desterro - meu grande empurrão atual, no centro do Rio - e depois de um papo, cheia das ideias, disse: “Bora fazer uma cena aí! É só fazer!” - fiquei com isso na cabeça, quer dizer, ela não viu a operação? Eu vendendo roupa pra pagar a tenda? Até e-mail com documento anexado “pleiteando” o uso do espaço eu recebi.
É um desespero, não há tempo nem espaço para a gente de teatro - esse operariado disperso, alucinado e malpago - e justamente por isso tô cansada das ideias legais, desse fazer criativo. A criatividade é perigosa, tem feito miséria. Fulaninha também pediu pra dar uma oficina porque é muito massa, cheia de potência e de palavras do momento. Não quero saber disso. Quero saber como vamos enfiar a furadeira, como vamos operar toda a matéria e todo mistério da tenda, SEM E COM dinheiro, em busca dessa nossa necessidade. A Palavra Solta mesmo, Flávio me disse que tem uma anuidade de 250 reais pra ela existir. Percebe a operação por trás? Pela frente pode até ser que a gente ainda se lambuze. Se foi o seu caso com este texto, contribua no PIX da revista: revistaapalavrasolta@gmail.com
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