por Flávio Morgado
Lula comemora gol em partida de futebol. Fonte: Folha de SP
O maestro do Brasil subiu uma oitava.
Na segunda-feira, dia 8, talvez esperássemos mais uma cortina de fumaças sobre a mansão de 6 milhões de reais do filho do Presidente e que por ser o dia Internacional da Mulher, viesse o circo armado em grosserias ou nas atitudes infames de Jair Bolsonaro. Porque essa se tornou a nossa rotina, e já não há contornos a uma distopia que legitime o Presidente da república, frente a 260 mil mortes, pedir para que parássemos de chorar, de fazer mimimi, de exercer o luto sobre muitas mortes evitáveis e, em certa medida, orquestradas pelo seu desgoverno, para que pudesse seguir seu mandato. Amanheceríamos a mais uma segunda-feira como reféns.
Mas no jogo dos bastidores, como toda negociata que aqui se assina, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Edson Fachin, anulou todas as sentenças contra o ex-Presidente Lula, alegando que o juiz Sergio Moro não era o “juiz natural” e, portanto, o processo estaria anulado. Uma chicana jurídica, uma leve vendeta e um atalho menos bruto ao, já todo cagado, juiz de Curitiba. Fachin responde ao fascismo cada vez mais desavergonhado que o STF não pretende ceder às pressões da extrema-direita, uma ação casada politicamente à prisão (e consequente sacrifício) do deputado bombado e à radicalização dos discursos dos bolsonaristas. Por outro lado, a mão que apedreja também afaga, a anulação da condenação de Lula, inviabiliza a imagem de Moro nacionalmente e começa a minar a candidatura do antigo aliado (e é essa filiação burra que o condena) e atual inimigo (essa também) de Bolsonaro. Para o Moro, afora toda lambança que ele próprio se meteu, em um primeiro momento, fugir do processo de suspeição seria o grande lucro, já que isso colocaria toda a Operação Lava Jato em jogo e o golpe seria ainda mais desmascarado. Até o fechamento deste texto, Gilmar Mendes resolveu dar o ar da graça, no dia seguinte botou em votação o processo de suspeição, Moro chorou em posição fetal, e a votação segue empatada e interrompida, como de praxe à política do Tribunal.
Mas a notícia que amanhecia a segunda, que obviamente iria obnubilar qualquer bastidor, era: A prisão de Lula não valeu!
Foto: Ricardo Stuckert
Assim lia o uber bolsonarista, que decepcionado com a traição do Super Moro, e fiel ao Capitão diz: “é, talvez, tenha mesmo rolado alguma maracutaia com o Lula, esse Moro é vaidoso!”. Assim lia a atendente da padaria: “vixe, maria! Que agora começa uma guerra mesmo!”. Assim lia o meu pai: “há alguma esperança, está possível a palavra reencanto!”. É o poder semiótico da figura, do carisma, da dimensão histórica de Lula.
Seguiu a semana e Bolsonaro apareceu de máscara, respeitando o distanciamento social. Em suas lives no closet, teve a audácia (ah, se o Olavo vê uma porra dessas, Jair!) em expor um ilustre globo terrestre, nos tentando convencer que diferente do que disse o Lula, ele não é um imbecil e nem muito menos um imbecil a acreditar que a Terra seja plana. Mas é isso, “o Lula disse”. Foi o Lula quem ditou a pauta. Foi a decisão do ministro Fachin, a resposta imediata do Gilmar, e, sobretudo, o discurso de três horas do maior orador que o país já teve que orquestraram o tom falho e amedrontado do Capitão ao longo da semana.
Lula é, queira o Ciro ou não, incontornável. Uma biografia, uma narrativa, uma proposição de corpo que está acima de qualquer outro candidato. Nos dois momentos em que o cara sai de uma situação adversa, e não é uma mera coincidência que a radicalização da sua perseguição acompanhe o nosso declínio político, ele se propõe um corpo alegre. Só que dessa vez é um Brasil destruído, sem qualquer possibilidade de atalho e de mãos atadas frente ao medo do que ainda possa piorar. Os últimos três anos foram a prova de que é um estalar de dedos para um completo desmonte institucional. A figura do político foi criminalizada a tal ponto que o debate decaiu a esse lugar: o fascismo.
Então não nos bastaria o Lula apenas repor mais uma vez a sua biografia, mas fazer exatamente o que ele fez: mostrar-se vivo, propor um discurso que, mais profundo ainda do que a disseminação, é inseminador. Porque é isso que nos é urgente, o gerativo, o propositivo, a vida. A sua fala reembaralha o campo político, reduz a bravata fascista, envergonha o genocídio, forma frentes de apoio. Flávio Bolsonaro no dia seguinte ao discurso, impulsionou o apoio à vacinação nos grupos do Telegram (estamos de olho!). A assessoria da Presidência, pensando em 2022, visa estratégias de minar o PT, evitando embates diretos com Lula. Uma frente ampla começa a ser gestada nas redes, nos grupos de artistas, nos manifestos, nas colunas. A Globo conta as moedas e os dias no calendário, e sabe que vai ter que ir de cara emburrada a favor do Lula na atual conjuntura. Luciano Huck teria 2,5% das intenções de voto no cenário Lula Elegível. Lula goza sua liberdade, nós parimos alguma esperança.
A maior das movimentações pós-Lula essa semana, sem dúvida foi a coceira que gerou na oposição. Assistentes do Presidente já pedem uma guinada imediata do direcionamento e o problema é sempre a bússola desse barco. A cada dia que passa, Bolsonaro define seu norte fascista.
A insustentável troca ministerial na Saúde passou a ser pressionada ainda mais. Pazuello, e eu nunca vou entender o porquê de tanta submissão de um general a um capitão, diz que só entrega se o mestre pedir. O mestre não pede, mas negocia em paralelo com alternativas do Centrão. Ludhmila Hajjar, médica e aposta do Presidente da Câmara, Arthur Lira (PP), soaria tecnicamente importante e estancaria o processo no STF contra o Ministro da Saúde e a CPI da Covid-19. Hajjar é uma cardiologista com uma carreira respeitosa na medicina, ocupa cargos-chave há anos e defende, entre muitas divergências com Bolsonaro, o isolamento social e a ineficácia do tratamento precoce. A reunião não foi boa, a médica sofreu uma série de ataques nas redes sociais, nos grupos bolsonaristas, fotos dela com Rodrigo Maia e defendendo o isolamento social inflamavam os odiosos. Bolsonaro recua. A doutora recusa o convite.
Pazuello e Bolsonaro. Fonte: O Globo
Não sabemos quem assumirá o Ministério, a vacuidade é quem dita as ordens há meses, mas pode ficar pior. Porque a saúde pública do país também é refém dessa guerra semiótica que o bolsonarismo trouxe. Eles não querem um cientista, querem um carimbo ao caos.
Bolsonaro vocifera contra jornalistas no Planalto. Fonte: Blog Nocaute
Recentemente, comentando o cenário com um amigo, que é psicanalista, ele me chama atenção para um evento significativo dos últimos meses: começamos a nomear.
Não é como se fosse tão simples que em jornais de grande circulação apareçam manchetes como “Genocida”, “Psicopata” são conceitos, que exatamente por não estarem instalados em um senso comum, ao serem colocados em debate, são necessariamente definidos pelos veículos de comunicação. Ou, mesmo que ainda nos assuste que só depois de 21 edições do BBB começasse a se falar numa sociopatia da direção e da narrativa do programa, ainda assim nada disso é simples. Porque todos esses conceitos traduzem algo. Se de um lado é possível farejar toda essa intransigência ou irresponsabilidade no trato de alguns conceitos, no caso desses, há ao menos o precedente de que essa possibilidade de nomeação nos dê alguma lucidez e vislumbre de organização do que tem sido essa destruição semiótica, estética, política e ética do país.
Minha coluna da edição anterior se debruçou exatamente sobre isso, a guerra semiótica que estamos, que põe em jogo não só a nossa organização política, mas como já estamos vendo, a nossa noção de humanismo. Por isso também me dá alguma esperança, ainda que tensa, que nesta mesma semana manchetes venham assim, que se abomine o BBB exatamente por entender essa narrativa de anulação de pautas, de perversão burguesa (o único episódio que assisti, como não conhecia ninguém, entendi na imagem de um crossfiteiro segurando xixi para ganhar um Honda Civic: Pasolini perdeu isso!), e de alguma maneira, ainda que incipiente, a nomeação nos pudesse repor alguma civilidade e que o fascismo se apequene.
Estamos longe de uma possibilidade viável de um sorriso justo, a Presidência segue em suas mãos, as mais de 2 mil mortes diárias também, a Presidência da Câmara, do Senado, das milícias e todo esse alinhamento dos ratos. Não vamos nos iludir que do outro lado não haja estratégias, e que elas não sejam ainda mais brutas. As potências seguem soltas e os direcionamentos difusos.
Mas já sabemos o que nos é grave. E que sobreviver tem sido o ato mais subversivo.
Rio de Janeiro, 15 de março de 2021
P.s.: Até a data de publicação desta edição, o Ministério da Saúde seguia entre as estratégias de manutenção do foro privilegiado a Pazuello, e a indicação de Marcelo Queiroga, médico bolsonarista, alinhado à cartilha. Até agora, já ultrapassamos a marca de 300 mil mortos e o esgotamento da rede de saúde pública. Um assessor da Presidência faz gestos em alusão aos supremacistas brancos na sabatina sobre a negociação das vacinas. Eduardo Bolsonaro compartilha o personagem Zé Gotinha portando uma metralhadora.
Bolsonaro se espatifa no gramado em uma partida de futebol na Vila Belmiro, Santos, 2021.
Fonte: O Globo
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