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A hora da presença

Atualizado: 14 de set. de 2020

por Pollyana Quintella

"E se a arte fosse travesti?" (Rosa Luz, 2016)


Quando o amigo Flávio Morgado me convidou para assumir uma coluna livre a respeito das artes visuais, me pus a pensar, cá entre os meus conflitos, qual seria a pertinência em ainda disputar um espaço para a crítica de arte hoje.

Isso porque bem sabemos, já no início dessa catastrófica segunda década do século XXI, que o espaço da crítica anda estranho, para bem e para mal. Que “crítica de arte” soa quase antiquado, cafona, caduco. E a tal crítica anda estranha por vários motivos, que tentarei aqui esboçar de modo mais intuitivo do que analítico:

Primeiro porque já questionamos o lugar de poder que ocupam os supostos “críticos” do circuito, um tanto confortáveis em suas práticas, aptos a exercer o judicativo enquanto gozam de privilégios escusos. Por vezes, a tal crítica se isenta da responsabilidade de ser propositiva, operando apenas como um poder acima dos outros -- aquele que conhece, que distingue, pode julgar. Eu, crítico, direi daqui, do alto do meu gabinete, a sentença:::::::::

Mesmo a crítica mais jovem, já ciente do lugar da obra enquanto meio de reflexão, ponto de partida para nexos possíveis e menos grande síntese, grande narrativa, mesmo essa crítica em geral está atravessada por um problema de classe, raça e gênero -- ferida do Brasil. Basta evocar no imaginário um, dois, três nomes conhecidos. Quem se autoriza a chamar-se de crítico de arte?

Segundo porque a maioria dos críticos ainda vivos, os que respeitamos, lemos e apreciamos, não conseguem ir além dos objetos que ainda correspondem a um modelo de produção de sentido centrado nas normas do século XX. Seguem apegados à ideia de objeto, qualidade, autonomia, etc e tal, portando-se muitas vezes como nostálgicos daquilo que perderam. A produção mais nova, mais contemporânea está, para eles, sempre em falta. Compreendemos que o século XXI é um século de crise de critérios. Como na música de Belchior, o passado é uma roupa que não nos serve mais. Não serve. Se o crítico é aquele comprometido com a análise da produção do seu tempo, temos então um problema. A crítica não se exercerá a partir de um programa, a partir de um punhado de noções pré-estabelecidas. As tentativas de estabelecer análises mais amplas, voos panorâmicos ou leituras de conjuntura são constantemente frustradas pelo imperativo do fragmento. Não conseguimos apreender o todo e, a cada exercício, nos vemos contestados pela voz agressiva de um outro::: NÃO

Terceiro porque, com a crise do texto da crítica, veio ganhando cada vez mais força isso que entendemos por curadoria. Na verdade, nada disso é aleatório. Com mais gente produzindo e menos critérios estabelecidos, o ofício daquele que seleciona e produz visibilidade -- sem necessariamente operar segundo um programa compartilhado -- se torna cada vez mais requisitado. E neste caso, o procedimento extrapola o campo da arte. Enquanto indivíduos, somos curadores de nós mesmos, editando conteúdos de si, projetando eus virtuais, produzindo feeds estéticos no instagram, etc. A era do excesso de imagem e informação glamouriza o curador -- aquele que seleciona. O império da curadoria, no entanto, traz consigo um novo modelo de texto: o curatorial. É um texto mais implicado com seu objeto (o curador está envolvido profissionalmente com a exposição, a obra, o projeto que analisa, alcançando outro grau de intimidade mas também perdendo a possibilidade de discordar ou apontar fragilidades mais abertamente) e em geral com menos tempo de reflexão e maturação (o que orienta a produção do texto é o cronograma do projeto, os prazos do edital, etc). Embora o formato pudesse oferecer algum frescor, a verdade é que, nos últimos anos, o “texto de curadoria” virou também uma piada no meio artístico, sobretudo porque há muitos textos mal escritos, viciados nas mesmas referências teóricas, nos mesmos verbos e jargões. Sem jornais e meios especializados, a crítica migrou do papel para o texto de parede, não sem alguns traumas.

Quarto porque, ironicamente, estamos viciados no modelo jornalístico. Embora os jornalistas sejam cada vez menos respeitados no senso comum, a nossa produção - e isso passa pelo campo da arte - deve preferencialmente gerar notícia. Por essa lógica, somos convocados a produzir uma enorme quantidade de coisas. O objetivo é não sair da “pauta” e qualquer silêncio pode ser perturbador. Não à toa, em contexto de pandemia, vemos o meio da arte incentivar e reproduzir um modelo competitivo bastante perverso, no qual é preciso continuar apresentando coisas novas, embora o mundo esteja em colapso. Somos o cognitariado, como diz Bifo Berardi, o proletariado do cognitivo -- reféns da conexão ininterrupta, da máquina informativa. Sob essa velocidade, a crítica tal qual a conhecemos e, antes dela, a sensibilidade, situam-se em crise. Conectividade e precariedade são faces na mesma moeda. Somos escravos do ecrã.

Quinto, e último, porque creio que as principais reflexões sobre estética não estão propriamente acontecendo na arte contemporânea, mas no modo como lidamos com as imagens no momento presente, enquanto sociedade. O pensamento estético nunca esteve tão próximo de nós, cotidianamente. E isso vai desde os recursos publicitários de Bolsonaro até as máscaras de proteção do coronavírus. Somos nós que produzimos as nossas imagens.

Mas não cabe lamentação, choramingo. Excesso de informação, textos corridos e mal escritos, plataformas além do jornal, tudo isso aponta uma outra direção, uma outra performance para a crítica. O que podemos perceber é que esse exercício foi deslocado e já não se faz a partir do rigor intelectual ou da construção de um repertório erudito. São outros corpos, outras vivências. Tudo isso vem também como reflexo da política de cotas no Brasil. Com a entrada maciça de outros personagens nas universidades, houve uma explosão de novas pautas, não necessariamente resolvidas no âmbito acadêmico. A palavra, vejam, está um tanto solta, correndo por aí, vide as práticas críticas de Jota Mombaça ou Denise Ferreira da Silva, por exemplo. Por isso resolvi intitular este texto de A hora da presença, porque se ainda não sabemos bem qual é o paradigma da crítica deste século, sabemos que, seja ele qual for, trata-se mais dos sujeitos do que dos objetos ou dos produtos culturais. E se os produtos muitas vezes incorporam essa discussão de modo excessivamente literal, trata-se menos de um problema de linguagem e mais sobre arte enquanto ferramenta de poder em disputa. Se a falência utópica do projeto moderno foi a constatação de que as poéticas não revolucionaram comunidade alguma, o discurso deixa de ser central. O que nos dizem essas novas vozes é que só haverá potência na arte que não opera no campo da representação, mas que é produzida no seu próprio contexto de engajamento.

É por isso que essa coluna, hoje inaugurada, pretende refletir não só sobre o que andam fazendo os artistas emergidos neste século, mas também pensar sobre imagens cotidianas, figuras políticas, procedimentos estéticos das redes sociais e o labirinto da internet. Neste caminho, queremos elaborar aqui dobradinhas com artistas, curadores, produtores de memes, hackers, web programadores, toda a gente do campo das imagens. E, ainda, abrir espaço para produções dissidentes, que questionam a arte enquanto ontologia e seguem desafiando os formatos previstos.

Que não nos falte fôlego.

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