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A festa é a batalha: Salve Jorge!

por André Vargas


Mas todo imaginário tem valor/ E pode transformar esse cenário/ A mente criadora é um dom maior/ Naqueles que são revolucionários/ Naqueles que são revolucionários. “Líder dos Templários”, Jorge Ben Jor.

Foto: André Vargas



Dia 23 de abril é dia do santo guerreiro e, no Rio de Janeiro, é dia de lembrar que até no festejo se imprime a força de nossa batalha. São Jorge e sua festa guerreiam por uma cidade de encantamentos; por uma cidade “terreirizada” como tão bem nos indicam Luiz Antonio Simas, Luiz Rufino e todo o bando de bambas que se dedica a pensar a rua com a rua; por uma cidade que, portanto, elabora e se reelabora no poder dos encontros e dos encruzos de toda sorte, uma cidade que se entende nas calçadas, nas biroscas e nas beiradas. A festa é a batalha pela ruptura com a seriedade cinza das instituições e pelo reinstituir das relações brincantes, estas ainda mais sérias, de intuições e intentos que nos convocam catarses.


“Reencantar a cidade, subverter o território em terreiro, entender a cidade como lugar de encontro, comer pelas beiradas driblando os perrengues, malandreando entre o horror e o gozo, é seguir vivendo e sobrevivendo para fazer o gol na partida que não termina: num lance rápido e certeiro do contra-ataque que nos resta para salvar a rua.”. (Luiz Antonio Simas, Corpo Encantado das Ruas – Pag.: 75).


Todo dia de São Jorge é dia de quermesse, gira, passe, benção, capoeira, ponto, oração, brincadeira, samba, hino, cerveja, procissão, feijoada e o que mais for para o bem de acontecer. É dia que vemos Jorge encontrar Ogum em praça pública. É dia de reconhecer todas as faces que nos compõem culturalmente como transeuntes desse chão. É dia de sentir um cheiro d a bagunça boa que era a festa da Penha nos idos dos anos de 1930. Dia de entender que toda cidade é pequena, toda urbanidade é roça, é quando o centro inteiro fica parecendo uma pracinha de interior. Esse é o poder da festa e é por isso que se guerreia: fazer simples, agregadora e afeita aos encontros e as preces a mesma cidade que, em geral, nos esforçamos cotidianamente para construir dura, hierárquica e propícia aos encontrões e as pressas.


Festejar em um mundo que quer nos ver tristes já é ser linha de frente na batalha das opressões da vida, agora, festejar ao santo guerreiro andando pelas ruas comprimidas do centro da cidade do Rio de Janeiro é sentar praça e construir um exército em um ato que nos dá novo folego para continuar no batidão dos dias do restante do ano em que vivemos em função de funcionar.


“A cidade é aquilo que praticamos. Assim, o Rio é aquilo que é inventado cotidianamente enquanto terreiro. Lembremos que os terreiros são saídas táticas, a partir da prática do tempo/espaço por aqueles que rasuram as lógicas da desterritorialização e aniquilamento.”. (Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino, Flechas no Tempo – Pag.: 78)


É claro que naquele gole de cerveja estalado no gogó que tomamos no meio da semana depois de um dia exaustivo de trabalho, ou quando topamos, apesar do cansaço, ir à uma roda de samba, ou, ainda, quando numa domingueira resolvemos nos arriscar a fazer uma feijoada, já se encontra a resistência, amiúde, da morte e do desencanto que tratamos. Mas estes são apenas fragmentos de festa que nos dão, de alguma maneira, um remédio paliativo para os sintomas desse mal de desencante, pois quando reunidos no dia certo, no dia santo, esses fragmentos, agem diretamente na fonte dos sintomas e redimensionam nossa existência ao reelaborar a nossa perspectiva de fé, de festa e de disputa por uma sociabilidade menos sisuda e tacanha.


Nesse ano de 2021 foi mais um ano em que a festa de São Jorge teve de se dar em casa, não ganhou a rua. Mas, para além da tristeza com que percebo essa condição, percebo que existem outras camadas para se entender essa devoção, que aqui no Rio se faz tão grande. A casa é também uma rua para o guerreiro passar com seu cavalo e matar nossos próprios dragões, quando conseguimos fazer dela um espaço de abertura para o indizível invisível. A felicidade, maior sensação de encanto, quando habita o lar, faz dele a morada do sagrado e a casa é essa armadura, essa morada de proteção de quem se resguarda para num futuro instante poder contra-atacar.


Como fragmentos de fé que se reúnem no espaço, é na casa que se consagra a planta, espada de São Jorge, é na casa que se avista o azulejo do santo da fachada, é na casa que se acende a vela e reza no oratório, é na casa que se coloca a cerveja do santo no alto de seu esplendor. Precisamos, portanto, tornar a casa encantada como assim queremos a rua, porque a intimidade tem que concordar com essas nossas querências sociais. De outra maneira corremos o risco de dizer para a rua um hipócrita “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”.


Foi para dentro da casa das tias baianas, moradoras da região da “Pequena África” (nome dado por Heitor dos Prazeres à região que compreendia ao território que ia da Praça XI à região portuária Rio de Janeiro em meados do século XX) que o samba foi se reinventar, quando a sua pratica pública era perseguida pelos órgãos oficiais de fiscalização e policiamento no período onde a “lei da vadiagem” de 1941, que se ocupava em criminalizar o corpo negro livre no pós-abolição, era aplicada a torto e a direito. Dessa maneira, está em um capítulo de nossa história a resposta de poder e feitiço que se pode conjurar caseiramente quando a rua não pode mais ser um espaço de transe e transito. Festejar em casa é a maneira com a qual vamos intimamente produzir o encantamento aguerrido que levaremos ao contra-ataque e, nesse ditado, a rua que nos espere, pois o que é dela está guardado. Dois anos sem ver a alvorada na certeza de que, quando pudermos, seremos todos nós o próprio alvorecer.


Salve Jorge!

Ogunhê!

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