por A Palavra Solta
Este mês entrevistamos por telefone o Padre Júlio Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua da Arquidiocese de São Paulo, pedagogo e relevante ator na luta social brasileira.
Padre Júlio Lancellotti em sua ação de quebrar a marretadas pedra colocadas sob viaduto na cidade de São Paulo. Foto Henrique de Campos
1. Padre, o senhor trabalha com a população de rua há muitos anos. Ajudou e ensinou muito a essas pessoas. Mas, na via inversa, gostaríamos de saber se tem algo que você considera ter aprendido com elas.
Primeiro que eu não trabalho com a população de rua, eu convivo com eles. É isso que eu aprendi e é o principal aprendizado. Ninguém trabalha com a população de rua, convive-se, e nós precisamos aprender a conviver.
2. O senhor possui uma longa história de vida de atuação junto aos movimentos sociais marginalizados. Hoje, aos 72 anos, sua luta segue aguerrida, vide a recente cena das marretadas nas pedras colocadas sob os viadutos de São Paulo. O que move essa luta e existe a função social do padre?
Olha, existe uma função social em ser padre, como existe uma função social em ser médico, em ser enfermeiro, em ser jornalista. Toda atuação pública, e de atenção pública, envolve uma questão social. O médico hoje envolve uma questão social primordial, assim como os enfermeiros, assim como os psicólogos, assim como os assistentes sociais, o padre também. Cada um tem uma esfera que acaba tendo uma função social. E o que move é o compromisso. Antes de ser um bom profissional você tem que ser uma boa pessoa, tem que ser uma pessoa que esteja a serviço.
3. O exercício da caridade é conhecido como um dos pilares da Igreja Católica, mas não é um conceito fácil de ser definido. Muito já foi criticado quanto a ações caridosas que na verdade apenas maquiam situações estruturais de desigualdade e retiraram o peso da responsabilidade de uma elite que passa a se sentir “moralmente redimida”. Até mesmo a direita critica a caridade, como, por exemplo, ex-candidato à prefeitura de São Paulo, Arthur do Val, o Mamãe Falei, que chegou a chamar o senhor de "cafetão da pobreza". Como o senhor entende a caridade hoje, em 2021, diante dessas críticas?
Diante dessas críticas a gente não deveria mais dar alimento para ninguém. Então para não ser caridoso a gente deixa todo mundo morrer de fome. E diga para as pessoas que estão famintas que a gente não pode ter caridade, porque senão fica atrasando a mudança social e a consciência da elite. Então fiquem com fome. Só que quem fala isso não está na fila da fome. Quem está na fila da fome não vê se é caridade ou não caridade, vê (sic) –, e eu acho que o grande nome é a solidariedade. Porque você não vai deixar uma pessoa sangrando porque se você fizer um curativo você está fazendo caridade e isso está atrasando a mudança – então deixa morrer.
4. Nas últimas décadas a Igreja Católica vem perdendo espaço, sobretudo entre os trabalhadores, para as igrejas neopentecostais. Esse movimento pode ser reflexo de algo que, para além da comunicação direta com essas classes e até mesmo da sedutora Teologia da Prosperidade, encontra sua brecha na organização paroquial católica, em sua relação comunitária. Como explicar o aumento da permeabilidade evangélica e qual a importância das paróquias na ordenação social da Igreja?
Olha, esse movimento fundamentalista, o movimento neopentecostal, ele também está dentro da Igreja católica. Isso é um fenômeno que foi fabricado historicamente para enfraquecer o papel da religião na transformação social. E por isso que hoje nós vivemos tão fortemente da retórica do ódio e muita da retórica do ódio é embasada no fundamentalismo. Esse é um fenômeno que não é só brasileiro, é um fenômeno que é presente na história da humanidade e que no Brasil tem um acento próprio e específico, como em toda América Latina, a partir de intervenções históricas que foram feitas para paralisar toda a transformação social que tivesse como apoio a motivação religiosa. Como foi na Nicarágua, em El Salvador, como nas comunidades eclesiais de base no Brasil.
5. No Brasil e na América Latina, especialmente durante o período das ditaduras militares, testemunhamos o advento da chamada Teologia da Libertação – possivelmente a maior polêmica dentro da Igreja Católica em nosso continente –, o que levou à excomunhão de sacerdotes que, por sua vez, estiveram profundamente implicados no combate às opressões sociais. Como o senhor vê, hoje, aquele processo?
Eu não conheço ninguém excomungado por causa da Teologia da Libertação. Eu não conheço nenhum teólogo da Teologia da Libertação que tenha sido excomungado, eu acho que isso é um fake news. Não há nenhum teólogo da Teologia da Libertação excomungado, há alguns que foram censurados, alguns que foi pedido retificação, mas excomunhão não houve nenhuma.
Não teve um caso famoso, o do frei Leonardo Boff?
Ele não foi excomungado, ele deixou o ministério, mas não foi excomungado. E ele continua sendo um grande teólogo. É um dos mais importantes teólogos da América Latina e não é excomungado. Não conheço nenhum excomungado por causa da Teologia da Libertação, isso eu acho que é um fake news da direita que todo mundo absorve e não faz uma pesquisa histórica. A Teologia da Libertação continua sendo uma teologia da Igreja assim como existe a Teologia da Esperança, assim como existem outras correntes teológicas como tomismo, como a escolásticas. Existem sim controvérsias, assim como a teologia de São Tomás de Aquino viveu grandes controvérsias, assim como Santo Agostinho viveu grandes controvérsias. A teologia não é um monolítico, se pressupõe discussões, pressupõe diferentes posições e diferentes abordagens, isso faz parte da história. A história do cristianismo tem momentos muito mais tensos – das heresias, por exemplo. Há várias teorias teológicas no decorrer da história que foram consideradas heréticas, a Teologia da Libertação nunca foi considerada herética, ela é uma teologia católica. Leonardo Boff nunca foi excomungado, ele pediu liberação do estado clerical, deixou a congregação, era franciscano, e pediu a liberação do estado clerical, o que foi concedido. Ele continua católico. Assim como está vivo o Jon Sobrino, que nunca foi excomungado, como já falecido Padre José Comblin, um dos grandes teólogos da Teologia da Libertação, que nunca foi excomungado e morreu padre. A Teologia da Libertação, apesar das controvérsias, as diferenças de abordagem, ela nunca foi considerada herética.
E o senhor acha que as suas ações, a forma como o senhor pratica a religião se aproxima da Teologia da Libertação?
Ela está próxima, bastante próxima, porque eu fui formado dentro de todo um arcabouço da Teologia da Libertação, que é um arcabouço religioso com espiritualidade, com exegese, com hermenêutica, com todos os requisitos fundamentais da teologia. A Teologia da Libertação faz uma abordagem diferente, ela não é de cima para baixo, ela é de baixo para cima.
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