por A palavra solta
A coluna 5A1 estreia hoje na Revista A Palavra Solta. Agora em nossas edições mensais teremos entrevistas com figuras da cena política e cultural contemporânea.
Marcando nossa primeira entrevista, o historiador, youtuber e militante político, Jones Manoel.
A Palavra Solta: Jones, nos últimos anos temos observado a importância dos canais, mídias e redes sociais para aproximar as pessoas das discussões políticas, isso para todos os espectros ideológicos. Especialmente no Brasil, após 2018, ano da eleição do Bolsonaro, os canais de esquerda no Youtube têm demonstrado um crescimento – é notável, por exemplo, o papel pedagógico da sua militância. Como você avalia esse espaço virtual enquanto espaço político – potências e problemas – e como você acredita que a esquerda deveria lidar com esse espaço?
Jones Manoel: A reposta básica foi dada por Lenin. Os comunistas devem buscar fazer agitação e propaganda em todos os meios disponíveis. Grosso modo, agitação é, usando as palavras de Lenin, difundir poucas ideias para muitas pessoas e propaganda, difundir muitas ideias para poucas pessoas. É como se a agitação fosse mais voltada para as massas trabalhadoras no geral, e a propaganda, para os setores da classe trabalhadora e das camadas médias já organizadas e inseridas na política. Espaços como o Youtube, mesmo sendo monopólios de mídia do imperialismo, permitem realizar as duas tarefas. Agora o grande risco é entrar na lógica própria do Youtube e na dinâmica do “influencer”. Temos que usar cada vez mais os espaços digitais. Produzir canais, podcast, documentários, uso de redes sociais e afins, mas sempre buscando manter a atuação na dinâmica leninista, de disputa pela hegemonia, usando a comunicação como ferramenta de instigar a organização, rebeldia, radicalidade e propagação do marxismo.
APS: Um dos pontos que mais chama atenção na sua abordagem teórica é a defesa, sobretudo via Domenico Losurdo [1] e Florestan Fernandes,[2] de um socialismo decolonial, ou seja, de um processo revolucionário sem importação de causas e atento aos nossos mecanismos de luta. Mesmo com essa visão, constantemente você é atacado nas redes como "esquerda radical", "stalinista", uma imagem caricata que tem se colocado na esquerda: uma espécie de grande nostalgia utópica de adeptos de um totalitarismo violento e fora de moda... Como você vê essa postura nas redes, e como manter a profundidade do debate em um espaço tão viciado a uma dialética raivosa?
JM: Primeiro gostaria de fazer uma correção. Não tenho qualquer relação com isso de “decolonial”. As abordagens decolonais surgiram nas universidades do centro do capitalismo numa dinâmica acadêmica e descolada da luta revolucionária. Trabalho com o anticolonialismo marxista, provado no solo da história, a alma viva de diversos processos revolucionários no século XX – seja os derrotados, como a Revolução de Burkina Faso liderado por Thomas Sankara, seja os ainda em curso, como a Revolução Cubana e Coreana. Sou totalmente afastado desses debates sobre “decolonial”, “pós-colonial” e “epistemologias do Sul”. Minha abordagem é do anticolonialismo marxista que continua sendo a melhor perspectiva de luta anticolonial, combinado teoria e prática, e fora dos salões acadêmicos e da simpatia liberal.
Dito isso, fico profundamente feliz com os espantalhos e acusações de stalinista, maoísta, totalitário, autoritário e afins. Isso prova que conseguimos estabelecer uma separação clara da esquerda liberal e das abordagens bem-comportadas, alinhadas com o imperialismo, e que se mostram como “socialistas democráticas” – que em 99% dos casos, tem pouco ou nada de socialismo. O camarada Mao Zedong dizia que quando o inimigo nos ataca, isso é bom, prova que demarcamos bem a fronteira entre nós e eles. Ficaria preocupado é se a esquerda liberal, os fãs do Quebrando Tabu e adoradores de Hannah Arendt, gostassem do meu trabalho. Isso significaria que eu tenho uma perspectiva política domesticada, distante do anti-imperialismo e de oferecer riscos a ordem burguesa. Poucos dias atrás, no Twitter, um jovem disse que eu sou uma “ameaça à democracia liberal”. Não consigo imaginar elogio maior. É isso que queremos ser: uma ameaça à ordem burguesa, um negativo total do liberalismo, uma crítica radical, via marxismo-leninismo, do capitalismo.
Como disse uma grande pensadora: para mim é uma honra vocês não gostarem de mim (risos). E que assim continue.
APS: Em um dos episódios do seu canal, você cita o livro de Rodrigo Castelo, O social liberalismo: auge e crise da supremacia burguesa na era neoliberal (Expressão Popular, 2013). Como você vê esse movimento de um social-liberalismo como oposição ao governo Bolsonaro?
JM: Esse social-liberalismo não é oposição ao bolsonarismo como projeto político, mas só à figura tosca de Bolsonaro. Se Bolsonaro não se comportasse como um miliciano do Rio de Janeiro, se tivesse um pouco de educação e pudor, a maioria dessa “oposição” estaria fechada com o governo. O problema deles não é com o ultra liberalismo que defende privatizar tudo, fragilizar ainda mais nossa soberania nacional, acabar com serviços públicos e destruir direitos econômicos e sociais da classe trabalhadora; o problema deles não é com o fortalecimento do Estado penal e do genocídio da população negra; o problema não é o aceleramento do extermínio de indígenas, camponeses e quilombolas e nem com a intensificação da concentração fundiária de terras; o problema não é com a privatização de serviços públicos. Se Bolsonaro fizesse tudo isso, mas com a elegância e a forma de um FHC, estava tudo certo.
Essa é a essência do social-liberalismo. Defender o programa neoliberal, mas incorporar discursos de combate à pobreza, à diversidade, à defesa do meio ambiente, à igualdade de oportunidades, mas sempre com política que não romper e nem questiona o prisma liberal. A deputada Tábata Amaral é um ótimo exemplo. Ela diz todo dia que defende a educação, mas é apoiadora do teto de gastos, nos debates sobre o Fundeb apoiou medidas que retiram dinheiro da educação pública e é uma fanática defensora de privatizações e medidas de ataque a soberania popular, como “independência” do Banco Central. É um discurso com forma de esquerda, mas em essência, uma conservação do neoliberalismo.
APS: Entrando o segundo mês de 2021, existe a forte possibilidade de pelo menos 15 milhões de brasileiros não terem nenhum tipo de renda com o fim definitivo do Auxílio Emergencial. Além de ter sido a âncora da popularidade do Bolsonaro, o fim do auxílio pode significar um passo a mais rumo ao abismo. O que esperar de 2021, de toda essa movimentação em torno de um processo de impeachment e o aumento da miséria no Brasil?
JM: O bolsonarismo tá numa encruzilhada. Ele pode manter toda ortodoxia ultraliberal, fazer a defesa fanática do teto de gastos, e derreter eleitoralmente. Mas pode manter também a flexibilidade do liberalismo econômico, retomar o auxílio emergencial, fazer algum nível de investimento público para aumentar o emprego, fazer alguns programas de baixo custo e de ótimo retorno em popularidade (como regulação fundiária) e ser o favorito para 2022, mas ao fazê-lo, irá se desgastar com amplos setores da burguesia e começará a sofrer uma real oposição dos monopólios de mídia, por exemplo. Me parece que quanto mais se aproximar da eleição de 2022, mais o bolsonarismo fará movimentos táticos, ainda que tímidos, no sentido de algumas medidas sociais para manter popularidade. A demissão do antigo presidente da Petrobras e a colocação de um militar no cargo, frente as altas constantes de combustíveis, é um sinal disso. Ao mesmo tempo, o Governo Federal conta com uma sabotagem sistemática da vacinação para impedir poderosas mobilizações de rua. Do outro lado, no setor majoritário da esquerda brasileira, temos uma eterna disputa personalista e eleitoral agarrada em 2022 e a persistência de um discurso legalista, em defesa das “instituições” e da “democracia”, sem radicalidade e bem-comportado, que não mobiliza ninguém.
A impressão que tenho é que se não tivermos uma explosão de massas mais ou menos espontânea, como em Junho de 2013, tenderemos a caminhar em banho maria, num cenário de cartas marcadas para 2022 e provavelmente, repetir 2018 ou com um “novo cenário”, polarizado entre extrema direita e direita neoliberal tradicional. Em suma, no curto prazo, tudo se mantendo constante, tenho uma visão bem negativa sobre os próximos meses do Brasil. Creio que continuaremos afundando no buraco liberal-fascista que estamos metidos. E, para concluir, cabe dizer que mesmo crescendo, a esquerda radical, os revolucionários, ainda não tem peso político para ser fator decisivo na conjuntura. Precisamos de maior senso de urgência, de acelerar nossa organização, crescimento, inserção de massas, capacidade de agitação e propaganda, formação de quadros e lideranças populares etc.
APS: Nas eleições para a Presidência da Câmara dos Deputados, elo fundamental da governabilidade na nossa noção de República, o PSOL, partido de esquerda e franca oposição ao bolsonarismo, acabou decidindo por uma posição autônoma, não apoiando a frente formada pelos outros opositores. Como ler essa movimentação da esquerda nesse contexto, existe saída institucional?
JM: Veja, eu debati amplamente o problema da ideia de “frente ampla” e de apoio dos liberais no combate ao bolsonarismo no meu vídeo no Youtube "Frente ampla e liberalismo de esquerda: o caminho da derrota". Basicamente, se busca uma aliança com liberais que não querem enfrentar o bolsonarismo. Por isso essa tática está condenada a tragédia. Note que Baleia Rossi, candidato de Rodrigo Maia, teve mais votos na eleição da Câmara da esquerda e centro-esquerda que do seu grupo político. O PSOL fez bem em não entrar nessa. É possível fazer aliança tática com os liberais? Claro, mas sem abrir mão de nossas táticas, projetos, identidade política e diferenças programáticas. A ideia de que para criar uma “frente ampla” precisamos cada vez mais abandonar qualquer visão de esquerda, para quando estivermos suficientemente à direita, a frente se materializar, é o caminho da derrota, da desmoralização e do fracasso, como ficou claro nessa eleição para presidência da câmara.
Episódio "Frente Ampla e o liberalismo de esquerda" do canal de Jones Manoel. Reprodução: Youtube
Notas
[1] Domenico Losurdo (Sannicandro di Bari, 1941 — Itália, 28 de junho de 2018) foi um filósofo e historiador marxista italiano. É conhecido pela sua crítica ao anticomunismo, ao colonialismo, ao imperialismo, ao liberalismo e ao conceito de totalitarismo.
[2] Florestan Fernandes (São Paulo, 22 de julho de 1920 – São Paulo, 10 de agosto de 1995) foi um sociólogo e político brasileiro filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT). Patrono da sociologia brasileira sob a lei nº 11.325, também foi deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores (PT), tendo participado da Assembleia Nacional Constituinte. Recebeu o Prêmio Jabuti em 1964, pelo livro Corpo e alma do Brasil e foi agraciado postumamente, em 1996, com o Prêmio Anísio Teixeira.
Jones Manoel da Silva é um historiador, marxista, youtuber, professor de história, comunicador popular, escritor, e militante do Partido Comunista Brasileiro
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