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06 poemas de Cronwell Jara Jiménez na tradução de Marcelo Reis de Mello

curadoria de Marcelo Reis de Mello


Poemas do livro Manifiesto del ocio (Editorial San Marcos, 2006)


Lembro muito bem da figura, quase como aparece na foto. Um cara um pouco excêntrico, sorriso meio sacana, mas inteiro. De boina, óculos, um blazer grosso e gasto, com uma maleta cheia de livros na mão. Amigo do poeta y maestro Hildebrando Pérez Grande, aquele senhor de olhos endiabrados — à época com menos de 60 anos — vinha nos apresentar, numa das famosas sextas-feiras do Taller de Poesía da Universidad Nacional Mayor de San Marcos, uma reunião dos seus poemas intitulada Manifiesto del ocio, lançada alguns meses antes.


Com apenas 23 anos, eu estava no Peru como estudante de graduação em Letras, fruto de um convênio entre universidades. E as minhas melhores lembranças da Universidad de San Marcos são, sem dúvida, dos Talleres e das aulas do Hildebrando sobre “La Generación del 98” espanhola, que acabaram me levando a traduzir e publicar mais tarde um clássico de Don Miguel de Unamuno, em português do Brasil: São Manuel Bueno, Mártir. Com apresentação bonita e afetuosa do velho Hilde.


Foi naquela sexta-feira que apertei a mão do Cronwell e troquei com ele meia dúzia de palavras. Pouco depois, todos o escutamos lendo, lendo com muita graça e humor, alguns dos poemas recolhidos no seu Manifiesto. O poemário é extenso. Os textos traduzidos aqui integram a primeira parte, a mais musical e erótica, dedicados ao “bom demônio”, aos “colhões”, ao “clitóris perfeito”, ao “falo ereto”, ao “raio” e a uma “amiga” a quem se quer muito. Poesia de pau duro, sim! (haja saco para a meia-bomba de certa poesia de pijamas), mas, antes de tudo: poesia amorosa. Dentro da melhor tradição que vai da poesia chinesa da Dinastia Tang a Alberto Caeiro, passando por aquela humanidade divinizada de César Vallejo. Ou, como escreveu Ricardo González Vigil, em seu Prólogo a Manifiesto del ocio:


Hay una extraña sapiencial en el poeta Cronwell Jara Jiménez, de fluir libérrimo, sin catecismo ni iglesias: estirpe de los profetas, del pensamiento cuestionador de Heráclito y Diógenes, del despojamiento taoísta y budista, del testamento de Villon, de los versículos febriles de Whitman y Nietzsche.


Ainda que Cronwell seja mais conhecido e premiado como narrador (sendo um dos principais ficcionistas peruanos, a partir dos anos 1980), acredito que estes poucos textos comprovam a qualidade e a força da sua poesia. Por isso, aproveito o espaço da coluna n’A Palavra Solta para divulgá-la no Brasil, país ainda tão ilhado entre hermanos. Esperamos que, no meio deste caos (político, econômico, sanitário etc.) e num momento em que o Peru conseguiu erguer um professor e sindicalista de esquerda à presidência — no lugar de mais uma Fujimori!!! — a poesia de Cronwell tenha um efeito politicamente dionisíaco. Afinal, precisamos de corpo. De muito corpo. E um manifesto do ócio não é uma ode à preguiça, mas uma rebelião contra a negociação do desejo.


Tenho o livro Manifiesto del ocio quase todo traduzido há muitos anos e espero publicá-lo em breve. Vamos? Espero que me perdoem por não publicar os originais aqui, por conta do tamanho do arquivo. Posso disponibilizá-los tranquilamente a quem quiser e me procurar. As traduções não estão prontas, com certeza há detalhes a corrigir, mas sinto que o momento é bom para a publicação. Incluí algumas notas explicativas, nos casos em que julguei necessário. Recebam com carinho (e corpo teso) estas odes tão bonitas do querido poeta peruano Cronwell Jara Jiménez.


Site do poeta: www.cronwelljara.com



***


Elogios ao bom demônio

À Marian González e Jorge Bermúdez


Demônio, amigo:

Escuta esta súplica que resultará numa ode

à tua sorte.


Teus chifres e tuas finas patas de bode não me assustam.

Vejo-os mais como uma forma de arte ou poema;

a estética de um símbolo, uma espécie

de arte poética da astúcia ou do engenho

que acende todas as fagulhas das velas

e lâmpadas de sabedoria

— como fizeste com Leonardo Da Vinci

ou no doce acre e de mau gênio Michelangelo,

teu inimigo conterrâneo —.


Sim, ciência e arte imprescindem de ti.


Odes para ti, amigo.

Odes às tentações que tu, trambiqueiro, provocas.

Tigre no sangue percorrendo minhas mãos.

Serpente peçonhenta e arco-íris de todas as cores.

Adorável é a tua flecha cravada em meu peito.


Só mesmo por ti uma Irmã não se despe do hábito.

A braguilha de um bispo não se desabrocha.


Tigre que salta sobre um elefante da Malásia.

Propões o repto, o círculo de fogo de todos os

vulcões onde se deve impor sigilo ou violência,

ignorância sábia ou sabedoria sem ciência.


Ode a ti, meu bom demônio

porque vais contra tudo, não há escala de valores,

não aos códigos, fora as leis que impedem

o desenvolvimento, o avanço das tecnologias.

Fora a falsa moral, as falsas diplomacias

as impertinentes hipocrisias do que fala

de paz e amor enquanto outros reclamam e

se matam, se moldam, se trituram sob seus crânios,

se metralham, se incineram, se dissipam,

se incendeiam, se bombardeiam, se envenenam

e nada acontece, como diria o poeta Molina Richter,

aqui nos Círculos do Inferno de Huamanga,

ninguém morre, aqui ninguém desaparece, aqui ninguém

é torturado, pregado, moído, arrebentado

a dinamitadas, aqui não arrancam os olhos de ninguém

e tampouco arrancam a língua de alguém, nem

lhe ameaçam, nem lhe matam a mulher nem desaparecem

com seus filhos. Não, amigo, aqui amamos as festas,

os abraços de diabo com diabo. Por isso,

odes a ti, amigo, irmão.


Ode a tuas patas de bode, a teus cascos fendidos

dignos de um pincel de Picasso ou do

atormentado Goya que viveu tantos fuzilamentos,

guerras, forcas e pestes, pesadelos do mais

obscuro inferno medieval.


Sendo congressista, certamente ativarias

memórias, promessas não cumpridas,

incinerarias leis de opróbrio e atraso; e apoiarias

nomeações, sindicatos, aumentos de salário;

sabendo que muitas leis são parte de

interesses criados, pactos com as multinacionais

que são mais implacáveis que tu mesmo,

amigo demônio. Bem sabes que há outros

compadres de tua suíte infernal que tratam o mundo

como se se tratasse de repartir uma torta

com morangos e suave creme de chantili.


Velho amigo, veste um casaco e vem comigo

à minha mesa beber um trago,

desatarraxa teus chifres postiços

que te dão má fama, guarda teu caldeirão

fervendo em azeite vegetal light, sem colesterol,

e comprado com cartão visa, pois sei

que às vezes, como eu, nem tens crédito. Não sejas

fanfarrão que não te cai bem.


E assim é a vida, os tempos mudam, amigo.

hoje creio mais em ti porque te vejo piolhento,

remendado como um boêmio notívago

sucateado dos lixões da idade média.

E porque sabe o quanto sou digno e devoto,

depois de tão fodido quanto poderia ser,

porém mais sincero e talvez mais terno, como

obviamente não são os emperiquitados

que habitam os recintos de ouro e joias

vindas dos altares banhados a ouro onde

se esclerosam e mumificam os velhos santos e

os anjos pançudos lutadores e catchascanistas [1]

amos

do ringue do céu.


Mas falemos de coisas mais transcendentais.

Ode a teus colhões por bolar tantas armadilhas.

Se dizem que todos temos algo de Deus,

então Deus deve ter algo de diabo

e tu, algo de Deus, que há mais bondade no teu rabo.


Diabo, filósofo amigo,

porque todos te temem tanto?


Em que ciência, em que ofício, em que

fórmula não estás escondido?

Sigiloso e picante como o ají rocoto, [2] em que

médico e em que bisturi não terão te enxergado?

em que advogado não se ouve a tua voz?

em que magistrado não está a tua imagem?


Diabo joalheiro, diabo sapateiro.

Ourives entre os ourives, trapezista

nos circos, cambista de dólares nas esquinas

e professor de metafísica com P.H.D. em

insólita engenharia de ciências ocultas;

jogador de cartas e bacharel em biotecnias.


Diabo bibliotecário, cigano

e numismático, diabo açougueiro e jornalista;

monge, enfermeiro, futebolista seresteiro,

Ronaldinho em sacanagem; mas diabo

bêbado maconheiro putanheiro,

goleador nato contra o melhor goleiro,

mentecapto, cozinheiro de urubus e gatos.


Diabo agnóstico, antropólogo e pirotécnico;

inventor de falácias e falsas teorias;

diabo clonado, alcaguete, fino e verruguento;

diabo arquiteto, lascivo e baitola

teórico de sinfonias, maestro nos teclados;

inventor de perfumes sofisticados

— finos perfumes de astúcia em pequenos frascos —

em que olhares de um pivete

não é a ti que se detecta? Em que vale-transporte,

em que propina não deixas tua pata

pegada de tua astúcia? Em que pedidos de noivado

não foste flagrado, sorrindo?

em que melodia de Li Tai Po não é a ti que se escuta?

Os poetas do Queirolo para ti ficam pequenos. [3]


Diabo filho da puta minha melhor amiga;

amigo inimigo e fiel companheiro;

te olho no espelho e te vejo, coringa e cínico

adivinho em bola de cristal; montesinista, [4] sei

que obrigas o anjo a ser camanejo [5]

e ao câncer um pouquinho angélico e maligno

— isso sim, meu chapa, não está certo —

porque todos necessitamos de ti, discreto amigo.

Tomara que quando morras vás direto ao paraíso.


Sei que venderias dólares falsos

ao próprio Cristo; diabo chinfrim, chifrudo

e torto; saxofonista, pianista e corneteiro;

hedonista ilustre lanterninha e concertista,

mas de tão fodidamente sincero

inventaste a felatio, a contranatura

tão sincero empatafoda cínico e gozoso.


Admirável és oh rei do averno,

mas te detesto por sábio como te quero

por bruto. Guarda-me um lugar no céu,

arranja-me mulheres, cervejas. Aí jogaremos

os dados e os dardos para o tiro ao alvo.

Mete nesses anjos um pontapé

no rabo e também a Cristo se não entra

no circo e na sacanagem; que partam a procurar

destino para outro Judas ou a vender

frascos de perfume pirata ou patchuli

em Tacora, La Cachina ou noutro inferno. [6]


Pai meu, pai e avô,

deixa-me ingressar na tua escola e não

me feches a porta na cara; te banharei em pétalas,

te farei tatame de suaves orquídeas,

deixa-me alçar vôo contigo.

Sobre tapete de flores de jasmim voaremos;

deixa-me

ingressar no teu céu perfeito todo intriga e astúcia;

não me negues.

Estas asas que teus olhos vêem, não são asas

nem de morcego nem de anjo arrependido.

Pai meu.

Pai putíssimo. Reputadíssimo.

Reputíssimo Rasputín e cretino.

Pai meu, pai meu.


Notas

[1] Catchascanistas (termo proveniente do inglês catch-as-catch-can) é como são chamados os praticantes de uma espécie de luta livre andina.

[2] Pimenta rocoto (Capsicum pubescens) é uma variedade nativa do Peru, onde se encontram registros de produção desta espécie, por povos locais, há mais de 5 mil anos.

[3] Antigo bar e restaurante tradicional do centro de Lima, paradeiro ideal do movimento artístico da cidade, em meados do século passado.

[4] Vladimiro Montesinos Torres é um ex-político e ex-militar peruano, hoje preso em uma penitenciária de segurança máxima. Foi chefe do Serviço de Inteligência Nacional do Peru e assessor presidencial de segurança entre 1990 e 2000, durante o governo de Alberto Fujimori, num período marcado por corrupção e violação de direitos humanos.

[5] Natural de Camaná, cidade situada no Departamento de Arequipa, no Peru.

[6] Tacora e La Cachina são mercados de Lima que vendem produtos roubados, reconhecidamente perigosos.

***


Ode a meus colhões


Ode a meus colhões

onde cabem carruagens com touros,

meteoros, diamantes, pontes suspensas

lagos com nenúfares e vendaval de garças

e todos os globos.


Onde cabem lisonjas, canalhices, virtudes,

sementes, naipes, clitóris carnudos

bigornas, cimitarras, oceanos e farilhões

e recordações floridas

de finos sedosos calções.


Ode a meus colhões, frios e mornos

e sossegados como hippies cabeludos,

onde cabem barcos, gnomos

e susto de bispos voyeuristas,

fadas virgens e tapetes mágicos

e possíveis mundos com mulheres e homens

que podem tudo

adivinham tudo

e são felizes porque são filhos e netos

da sem-razão e da inseminação, das begônias

e bofetões, destes touros, meus colhões.


Ode a seus sucos do paraíso,

a seu gêiser pirotécnico, a suas enxurradas de

liquens e batráquios; ode à sua fonte divina

de prístinas águas eternas; a suas

minas de ouro, que são a vida, a progênie de sua

incomensurável memória genética

antes que Sócrates e Platão

falassem do ergon entre os peripatéticos.


Ode a meus colhões tímidos e castos

sempre castos e sempre invictos,

onde cabem as raízes de todos os fogos

das estrelas e as energias interestelares

de todos os mundos; ode a suas religiões

e filosofias Zen e Taoísmo

de sumos e perfumes de méis maometanos

e astrais, a seus rituais

onde se ouve o Carmina Burana

e a seus símbolos sibilinos

e a seu telescópio e astrolábio

quando perdem o rumo

em meio ao doce oceano; ode a meus colhões

lascivos e naturais com fortaleza de rinoceronte

com macho caprino, com leões

e zumbidos de beija-flor e dinossauro.


Meus colhões formosos

onde o mesmo Deus, por gosto, bebe seu café e lê

seu jornal

ou corrige o Ananga Ramga em suas tardes de ócio [1]

e se espreguiça

sem lembrar-se do relógio nem do seu periscópio

nem dos pecados

as novas posições,

nem das tentações multicolores

lançados como peixes ao universo;

ode ao seu uivo de eterno lobo terno e

faminto; ode a seu órgãozinho de macaco

erótico, à sua música melodiosa e surda,

com nota em bemol de catre roto, com trombones

e violinos com bramidos de touro; ode às suas

lendas esféricas acampadas como colmeias

onde as sereias bebem e se embriagam

de vinhos e méis, gulosas; a suas histórias

com caravelas e noivas sequestradas ou fugidas;

ode a suas batalhas contra espartilhos e anáguas

e umbigos em delírio

e pactos com sangue e amorosas derrotas.


Por seu sentido de ciência e experiência;

ode a seu superego e à sua divina inconsciência

artística, periférica e com licor de matemática,

a seu secreto glamour;

a seu lúdico sentido com carícia e humor; e ode

a seu talante tímido, mas de pensamento

pacífico e profundo; sempre profundo,

a seu perene olor a látex e a sumo

de fêmea vinda desde os bisões

das cavernas; ode a meus

colhões, ode a seus tambores

e à sua milagrosa doce necessidade de mundo.


Nota

[1] Ananga Ramga é um manual erótico indiano que se assemelha ao Kama Sutra, escrito no século XII por um poeta chamado Kalyana Malla.


***


Elogios a teu

clitóris perfeito


Nem os jasmins mais finos da rainha

da Inglaterra nem o santuário mais belo da Índia

ou da Indonésia tem os olores fragrantes, invictos,

como os encontro no templo de teu clitóris.


Palácio dos deuses do feliz Olimpo.

Ponto de ouro de vinte e cinco quilates finos.


Botão de rosa ainda em casulo,

mas com pensamentos perversos, únicos,

e vida e ares próprios de universo.


Esse é teu clitóris, mulher, teu clitóris.

E não te envergonhes; é o tesouro perfeito

com que te coroaram os deuses.


Se existe um ponto no céu

onde se ouvem as cítaras dos astros

e a música das constelações: é aí teu reino.


Simples e breve, e sensitivo até o delírio,

cabe aí o prodígio e o mais belo

do paraíso.


Sei que amas meu dedo inquisitivo,

minha língua de víbora, meu nariz de crocodilo

pronto para o agrado e o mordisco.


Sei que lhe apraz ser o tamborete,

a campainha viva que clama

e o rigor religioso, rito e coro

na pedra do sagrado sacrifício.


Sei que lhe apraz a saliva da minha garganta,

a dulcíssima sucção, o leve dente,

o suave belisco.


O circunlóquio da minha língua, a saliva dos meus lábios,

meu suor, meu arquejo de homem ajoelhado

e vencido.


Sei que gosta de me fazer seu escravo,

acorrentar-me a ele como fera faminta,

o pássaro que bebe orvalho.


Sei que todas as suas artimanhas e feitiços

de serpente buscam minha hipnose

em roçadas e gozos, e roçadas perfeitas.


Torcendo minha língua de orquídea,

embriagando-a em devaneios,

afogando-a em ondas de méis e fogo e vida.


Sonhando o contato, o calafrio, o ingresso,

com entrada e saídas vibrantes, estocadas

breves, depois potentíssimas.

Chovam para ti estas loas

corolas de lilás aturdidas,

nêsperas carnívoras

que são quase súplicas e badaladas

ébrias

para teu ventre disposto e teu ídolo.


Chovam para ti

este sax e trombone, com violino e teclado,

entrando e saindo de teu templo

como um gnomo alado,

com unhas,

rabo

de madrepérolas e delírio.


Olho do infinito, baba de vinho,

bosque em incêndio.


***


Ode a meu falo ereto


Ode a meu falo ereto e alado.

Ode à sua vida triste, sem amor e sem indulto.


Ode a seu ser mendigo e em eterno desabrigo.

Ode à sua trompa de terno elefante de circo.


Ode a meu fungo em incêndio, sua cabeça de bebê

e sua forma de torre do medievo, sempre

invejado.


Angelical e terrível e bom como o céu.

E sinistro como um anjo cego.


Ode a meu talo de jade, sensitivo, capcioso e sincero.

Meu dente humano, perfeito e cheio de projetos.


Árvore de flores em primavera, ferida;

pena me dá vê-lo tão solitário,

sem ninho e sem verbo.


Meu falo elevado e perfeito

como o ouro de um sanguinário ídolo;

sempre a rezar, sempre a rogar

como adorando-se a si mesmo;

meu falo soberbo e coroado;

deus em incêndio, deus em levitação

sempre em espera, em riste, todo um raio

sempre em festa, faminto, em desforra.


Ode a seu porte sagrado e a seu decoro.

Sua idiossincrasia de filósofo sem logos.

Sua visão econômica, direta na fonte.


Seu coração de punhal, sua eterna sede em chamas,

e a eterna espera que não lhe consola

porque demora ou não chega.


Mas amo sua força e fortaleza

por ser de meu corpo e de minha estrela.

Por ser de meu sangue cósmico

como sou eu de seu planeta.


Nem grande nem muito pequeno,

mas cariciável monstrengo, e astutíssimo

como o duende a quem amariam

a Cinderela ou a Branca de Neve.


Louvado por mim, por ser de meu seio em meu osso,

louvado

como ao gênio da lâmpada sempre subindo;

só lhe falta o delicado, porém doce inferno.


Fêmea que lhe dê carinho, abrigo e beijos.

Fêmea que lhe dê alento e amor e mel em seu

fundo recinto.


Ode a meu falo morno e cálido,

bonito e prístino;

cada célula sua, cada batida

e cada brilho, é um reino

numa constelação de labirintos.


Como não amas, menina, seu olho ciclope,

Como não adoras seu ar de dragão alado.

Como não te apiedas de sua tristeza sem ninho.

Se só clama de ti para ser parte de teus sonhos.

Ser algo teu, acorrentado, íntimo

e feroz e terníssimo hieróglifo.


Meu falo vigilante, ateu, porém religioso e místico

assim que eu durmo;

meu falo elegante e vaidoso como arbusto recém florido.

Raio que não se enverga aos ventos vindouros.


Flecha de fogo buscando rachar os céus.


Ode à sua solidão e seu ardor

e à sua febre de desejo e sigilo;

valente como o tigre,

alado e sempre

vigilante e em ardil como um deus ressentido.


Nada sinistro, nada falso nem pervertido

nem enfermo; sempre em vigor e saúde

de fortaleza e elmo,

como um bom anjo do medievo.


Meu pobre falo sempre vigilante

como o dardo aceso e discreto,

como um cataclismo desvelado por sua flor a fio,

o clitóris de ouro inchado, sonhando,

sempre sonhando a pedra do doce sacrifício.


E a fundição esquiva,

e a febre e o ciúme de prodígios;

e o afiado projeto vertical

e os dois adágios acesos

mas em agonia, em mel, perfeitos.


Esperando o céu,

o gemido,

o alarido da garça em incêndio;

o abraço acolchoado

o mordisco ereto,

o contra-beijo

e os ventres em contrabaixo;

e em bom recato, o acesso, o pandeiro

e o anjo cego, ouriçado:

Céu entrando em outro céu!

E o paraíso renovado e em renovação perpétua.

E aplaudo!


Ode a meu falo ereto, pantagruélico

e caramelado.

Ode à plenitude de seus projetos sidéreos,

interoceânicos.

Formoso e luzente como um príncipe egocêntrico.

Um transatlântico em festa.

O fosfórico raio.


***


O raio


O raio avança, não cessa; o raio delira

E flameja; o raio corre a dez mil milhas

por segundo e passa incendiando mundos,

alamedas; cruza e desborda sobre as igrejas;

o raio marcha calcinando epitáfios e estrelas,

enlouquecido e choroso com suas lanternas;

o raio trespassa limites, culminâncias; e uiva,

todo amor e chamas, porque a tristeza o mata.


O raio remexe sobre as plumas do galo;

o raio lhe incendeia as esporas e cristas;

o raio treme, se incendeia em si, e se evola

em feridas mensageiras pombas, em silentes

incertezas e em sucessivos deslumbramentos;

gira em surpreendentes espelhos e se sublima

em estranhas circunferências,

enreda-se sobre as torres e plumas

das catedrais e em tudo geme e reluz;

sua inútil lágrima brilha em poeira de madrepérola;

sua inútil couraça de guerreiro é uma amêndoa;

o raio ruge e uiva como cachorro sem dono;

relincha como cavalo ferido a chicotadas;

chora como condenado em esterco e atoladeiro.

E é inútil sua súplica e sua fulgurante tristeza.


O raio marcha, alucinado, com tambores

e faróis, por amor, sempre em pé-de-guerra;

o raio é escândalo e pirilampos por onde passa;

o raio é rio de ideias e soberbas metáforas

descabeladas, alucinante como as constelações;

o raio ruma e se eleva sobre vitrais;

estruge e estala com pandeiros loucos e salto alto;

o raio é todo fulgor e lúcidos tambores;

o raio chora como homem só porque é homem

e lhe dói arder em tantas labaredas, sozinho.


O raio se encabrita como potro livre no campo;

o raio racha o couro do céu a limpas porradas;

o raio é serpente e larga cabeleira de estrelas;

o raio bufa como um touro e é seu coração

um diamante; em sua pena reluz um morango;

o raio treme e

na noite brama um mar de confidências;

o raio avança por pontes e avenidas;

o raio refulge estrelas e cruza solitárias pontes;

o raio é súplica, loucura de amor impenitente;

escudo de amor, veado púrpuro e pé-de-guerra;

o raio maquia seu rosto e é todo flechas

e arrasa e flui e grita em desborde

e te busca em delírios e flamejantes campanadas;

o raio, coração que não se acalma, incendeia

agitando, rasgando pelas janelas da tua casa,

amor, e não te encontra.


***


Amiga


O resplendor da tarântula

no reflexo azul do pântano.


Espera o raio e a chegada do macho.

As crias e a cena do puro desejo.


Amiga, até o dilúvio.

Amiga, até a volta da arca.


E quando nos encontrarmos,

melhor nem nos despedirmos.

Porque trememos, emudecemos.

Porque nos sacudimos, afetados,

e tudo nos parece claro e novo.

E todo verso é ameaça, raiva, desejo.

E sufocamos os sentimentos impuros,

as más tentações, o tato,

os fogos contaminados,

as flechadas alegações,

e o passo em falso, a valsa e

os rituais pagãos,

demasiado humanos.


E então nos despedimos sem o abraço.

Amiga até a fartura.

Amiga até a espinha.

Amiga até o fulgor do lírio emplumado.

Amiga até o encontro e o rechaço.

Amiga até o cravo de cheiro e o grão de bico.


Amiga até sangrar o cadafalso.

Amiga até o espasmo do gato.

Amiga até o estremecimento e o gemido

do raio alucinado.


E se dizemos: basta!

A amizade não tem diplomacias.

Não tem distâncias nem garras.

Nem fitas nem bobagens.


Porque quando nos encontrarmos

melhor nem advertimo-nos.

Porque nos agitamos, empalidecemos.

Porque nos afligimos.

Porque degustamos os suplícios turvos.

As graves tentações.

Os estrondos revigorados.

Os desejos reprimidos.

E dão ganas de matarmo-nos e desolarmo-nos.

E ganas do beijo, o não consentido.

E ganas de cheirar seu seio num talho.


E então

despedimo-nos, sem havermo-nos encontrado.

E é tudo proibido, proibido apaixonar-se.

A amizade é um patíbulo com carrasco.

É ameaça e é duelo com patíbulo surdo, cego,

e é forca que não tem preço.


Amiga até o cantar da ave em agonia.

Até o parir do gato escalpelado.

Até o espantalho que chorou.

Até o manúbrio no orgãozinho ferido.

Até o macaco e o periquito.

Até a salsinha e o pepino.

Até o canto do galo sem sua galinha.

Até o roçar e o beijo no focinho.


Amiga, não nos digamos, então,

nem como, nem até quanto.

Não nos digamos já chega, não tanto.

Porque será melhor — só isso — até quando.


A amizade tem tantos disparos e mordiscos.

A amizade tem partilhas e muitos arranhões.


Pois, não resisto.

Porque, senhora, não sou digno.

Sou só seu amigo, amiga minha.


Amigo até seu casaco e seu xale.

Amigo até o último voo do galo.

Amigo até o salto da espora que crava.

Amigo até a flor de seu palco.

Amigo até a açucena e o batráquio.

Amigo até o já chega e o ranger da espinha.

Amigo até a oração e o umbigo acariciado.

Amigo até a estaca e o martelo

que tem sangrado.


A amizade não tem relógios nem calendários.

Nem medalhas nem diplomas.

Nem persignar-se nem pompas.

Nem quadros de Chagall nem de Picasso.

Tem raptos e cromatismos loucos, estranhos.

Um ramo de gatos com unhas e relâmpagos.

Um lenço com mucos apaixonados.


A amizade é navio no céu agitado.

É um estribilho com um anjo cego e aturdido.

Um acordeão com tango e sem regresso.

Amiga, sem o até logo e o até sempre.

Sem o até quando, e a dor e o desvelo.

O único mal, apaixonar-se, todo feitiço.

O único mal, arrepender-se, todo fogo.

Quando é demasiado tarde. E dói

O rito, a medula e o cérebro.


Amiga até a clavícula e a espinha.

Amiga até o relincho azul do cavalo.

Amiga até o grunhir do porco enroletado.


Amiga até o café, salada e iogurte apaixonado.

Até hoje não tenho, mas devo

ou me penduro num lírio.

Até quando voltarmos, sem debut, num sorvo.

Até o adeus, se o desencontro se der.

Até quando o jamais acenda um círio.

Sem mar de pranto, sem sentimentos.

Amiga que foste, sem súplica, nem rogo.


Mas hoje, amiga, tu tens o que eu quero.

Amiga até aprisionar minha língua e meu desejo.

Amiga até os caninos, o lagarto e a lâmina.

Amiga até o esquecimento e o clavicórdio e o veneno.

Minha pequena, minha flor em incêndio.

Amiga até o adeus, com um inferno.

Assim, sem flechada nem mordisco.

Nem bofetada nem beijo.

Senão, a indiferença, o dilúvio;

e um cataclismo neste mortal desejo.



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