por Pérola Mathias
Foto: Luiza Sigulem
O universo da música de Tom Zé é épico. E não é no sentido do trocadilho com o termo freudiano que o próprio inventou para falar dos compositores de sua geração, mas no de que ele mergulha fundo na história do homem, reconstituindo possíveis caminhos e influências que desembocam em sua própria história, origem, língua, cultura e família. E, segundo o próprio, tudo começou com a leitura “O Homem”, segunda parte do livro Os Sertões de Euclides da Cunha. Ao identificar seu universo àquela representação de um homem do sertão num passado não muito distante, começou a conectar signo e significante. Um universo de palavras, vocabulário e imagens se abriram, e a identificação com o que conhecia, de seu mundo infantil e adolescente, o fascinou. Foi um fenômeno ocasionado pelo entendimento da linguagem, suas propriedades e possibilidades.
É através desse viés, da visão de Tom Zé sobre a formação da língua brasileira, histórico-sócio-filosófica-culturalmente, expressa em canção de 2003, que o diretor de teatro Felipe Hirsch decidiu abordar a obra do compositor. Negando-se seguir um caminho que lhe fora apontado pelo próprio Tom Zé de, talvez, escolher debruçar-se sobre aquela que ele mesmo considera sua obra prima, o disco de 1976 Estudando o samba. Felipe Hirsch buscou destrinchar “Língua Brasileira”, a música, como forma de destrinchar a pluralidade de nosso idioma, para muito além de algo implantando de forma imutável pelo colonizador. Foi fundo em cada uma das referências apontadas nos versos do compositor.
A peça de Felipe Hirsch tem 2 horas e 40 minutos de duração e é dividida em duas partes. A primeira e mais longa é composta pela interpretação de diferentes textos em mbya guarani, iorubá, grego, latim, tupi, protoindo-europeu, galego-português, crioulo caboverdiano, quimbundo, dentre outras, intercalados com músicas do próprio Tom Zé – incluindo as inéditas para o disco que vai ser lançado a partir do mote da peça. Ao longo de toda a primeira parte, não se entende nada ou quase nada do que é falado, apesar de a tradução aparecer projetada no fundo do cenário preto de Daniela Thomas e Felipe Tassara.
Assistimos aos atores falando nas diferentes línguas, criando uma espécie de babel, demonstrando um aprendizado e um esforço técnico tremendos. E ver esse resultado é realmente fascinante, mais do que o enredo que se forma ali. Depois de 40 minutos em que a atenção fica dividida entre a atuação, tentar fruir o espetáculo como um todo e ainda tentar ler as traduções e conectá-las de alguma forma, estamos cansados e sem saber qual o rumo que aquele roteiro vai tomar. Porque é complexo mesmo. Já nos primeiros versos da canção de Tom Zé que dá nome à peça, ele diz:
Quando me sorris,
Visigoda e celta,
Dama culta e bela,
Língua de Aviz…
A canção nasce da fala. E cada língua tem sua sonoridade própria, sua melodia. Tom Zé por diversas vezes declarou que sua música é uma “descanção”, que quando estudava na Escola de Música da Universidade da Bahia, estudava matemática moderna - associada ao dodecafonismo ali ensinado como forma de não conformismo aos padrões. Criado no seio de uma família grande, politizada, numa cidade marcada pela migração, reconhece a importância da tradição oral em sua formação. Já na peça, é um tanto difícil de acompanhar a música de cada idioma falado porque se trata de trechos curtos, descontinuados, e não de diálogos. Claro que se entende que o objetivo é reconstruir e mostrar – sonoramente, sobretudo – o DNA de nossa língua, suas diferentes raízes (a maioria reconstruída através de muita pesquisa) e seu caráter sempre mutável.
Saindo da caixa escura do teatro, é interessante perceber que a peça de Hirsch foi lançada num momento em que os portugueses vêm tendo reações xenófobas com o português brasileiro, seja com o que chega até lá via vídeos virais da internet ou pelo intenso fluxo migratório daqui para o país. Mesmo antes, não era raro encontrar portugueses ressentidos em saber que temos um “Museu da Língua Portuguesa”. É de dar nó na cabeça que o colonizador enxergue sua língua, que por sua vez é fruto de outras tantas misturas, invasões, ocupações, convivências etc., como algo que seja mais autêntico do que uma derivação sua. Fora a falta de compreensão de um fenômeno estrutural maior, é como se fechassem os olhos para um passado de exploração, sem enxergar um futuro que ficou arrasado pela perpetuação da desigualdade gestada.
No intervalo da peça, o fumódromo se divide em quem “infelizmente” deu uma cochilada e os curiosos. E o retorno à sala do teatro tem aquele clima “bora lá, vamos ver aonde isso vai dar”. Como um todo, ao tentar reconstituir ao público a bricolagem que resulta, todo dia, no português organismo vivo que falamos, é possível sentir uma certa exaustão com a quantidade de informação, de assistir a idiomas que não entendemos. Ou talvez essa percepção pessoal seja uma não capacitação pessoal aos graus da antropofagia contemporânea.
Da epopeia de Os Sertões que configura um ponto chave para o desenvolvimento da personalidade e do trabalho de Tom Zé, a “Língua Brasileira” desemboca na epopeia contracultural de Panamérica, de José Agrippino de Paula. Alcançando aí seu momento de catarse, o encerramento se dá com “Tropicalia Jacta Est”, gravada no disco de 2014, Tropicália Lixo Lógico.
A teoria de Tom Zé de a Tropicália ser o “lixo lógico” de tudo que ocorreu culturalmente naquelas décadas, sobretudo na Bahia, é que, como ele já declarou, Caetano Veloso e Gilberto Gil realizaram a Segunda Revolução Industrial. Tirou o Brasil de um atraso, cuja maior expressão naquele momento era o nacionalismo folclórico que tomava parte da chamada MPB. Como sabemos, a MPB ficou associada ao projeto cultural de formação de uma identidade brasileira formulada por Mário de Andrade; enquanto que os Tropicalistas adotaram a filosofia antropofágica trabalhada sobretudo por Oswald de Andrade, via a encenação do Teatro Oficina para a peça O rei da vela. Cem anos depois do evento marco do modernismo brasileiro, o maior consenso que se tem sobre o período é o de que o movimento tropicalista foi o último a expressar e formular sua influência. Pela ocasião do centenário, Daniel Brazil chegou a escrever que Tom Zé é a “mais perfeita tradução” do espírito modernista na música brasileira contemporânea, que ele “cria e regurgita de forma sonora as onomatopeias de inspiração futurista que se manifestam em vários momentos na poesia de Mario, Oswald, Menotti Del Picchia, Ronald de Carvalho e outros modernistas”.
Na canção “Língua Brasileira”, a narrativa de Tom Zé termina com uma cartomante vendo “nosso destino ou um samba canção”. Na peça de Hirsch, o trecho final da epopeia contemporânea de José Agrippino de Paula, traz uma espécie de fim da Terra:
A grande fenda aberta no solo mostrou as nuvens e o céu azul. A multidão de animais, coisas e objetos caía, e aquele bloco fragmentado de homens, mulheres, caranguejos, ossos, fios, mortos, feridos, latas, armações de aço, formigas atingiu o céu azul e aberto e a parte da frente do bloco que caía [...] Nós formávamos um grande bloco fragmentado que viajava lentamente.
Enquanto que para o Brasil, com a sorte lançada lá atrás, “Tropicalea Jacta Est”, renasce um brilho de esperança, forjado na tal “segunda revolução industrial” por todos nela envolvidos: “quando Baco bicou no barco/ Tinha Pigna, Campos in”. Os atores cantam em coro enérgico até as cortinas descerem.
“Língua Brasileira” é interpretada por Pascoal Conceição, Danilo Grangheia, Georgette Fadel, Laís Côrtes, Amanda Lyra e Rodrigo Bolzan, cujas atuações são um espetáculo à parte. Bem como a banda formada por Luiza Brina, Fabio Sá, Thomas Harres e Fernando Sagawa.
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